Os mesmos que pedem a cabeça do Ministro da Educação por causa de um erro ortográfico exaltam a pedagogia que gerou 60 milhões de analfabetos funcionais.| Foto: Agência Brasil

A notícia é esta: o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, escreveu um tuíte com um erro de ortografia. Em resposta ao deputado Eduardo Bolsonaro e falando sobre o investimento do governo em pesquisas sobre segurança pública, ele disse que era “imprecionante” o fato de não haver pesquisas sobre isso no Brasil. Não foi a primeira vez que Weintraub cometeu um deslize ortográfico. Em agosto de 2019, ele já tinha escrito “paralização” em ofício endereçado ao Ministro da Economia, Paulo Guedes.

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Erros ortográficos são corriqueiros na Internet, mesmo entre quem deveria dominar o uso formal do idioma, como jornalistas e escritores. Às vezes a culpa é da pressa, às vezes da distração; às vezes o corretor automático nos passa uma rasteira e às vezes parece simplesmente impossível lembrar como se escreve “exceção”. Mas, em se tratando de um Ministro da Educação, o erro parece imperdoável, tanto pela simbologia do cargo quanto pela implacável oposição política de quem até ontem defendia a revolta contra a opressão da norma culta da língua.

O mais curioso, ou melhor, impressionante nesta história é que os opositores de Weintraub passaram décadas exaltando uma tal sabedoria popular – manifestada no erro ortográfico e gramatical – como forma de resistência ao saber elitista dos opressores. O resultado dessa visão de mundo (e de pedagogia) é um exército de 60 milhões de analfabetos funcionais, muitos deles até com doutorado.

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Não por coincidência, os que hoje pedem a cabeça do ministro por causa de mais um erro ortográfico e veem nisso um símbolo inequívoco da incapacidade administrativa do homem designado para gerenciar a educação no Brasil são os mesmos que correm para defender o “glorioso” legado de Paulo Freire, autor do onipresente Pedagogia do Oprimido, uma espécie de manual de guerrilha da linguagem que, entre outras coisas, trata o idioma como campo de batalha entre opressores e oprimidos.

Forma provisória de saber

Para Freire, essa luta acontecia também (e sobretudo) na sala de aula. Daí porque ele pregava que o professor demonstrasse uma atitude mais compassiva em relação ao erro do aluno. Eu disse “erro”? Perdão. Para Freire o erro não existia senão como “forma provisória de saber”, como “ensina” o educador Julio Furtado no artigo “A Pedagogia do Erro”. Paulo Freire dizia ainda que “o processo de reprodução de respostas”, isto é, do conhecimento consagrado, inclusive o ortográfico, “fabrica a ‘burocratização da mente’, obstaculiza a reflexão e a capacidade criadora”.

Em condições normais, portanto, a esquerda paulofreireana que hoje aponta o dedo para Weintraub e que expressa toda a sua indignação pela inépcia, ou melhor, burrice mesmo de quem não sabe nem escrever, que analfabeto!, estaria elogiando a capacidade criadora do “imprecionante” de Weintraub, essa “forma provisória de saber” capaz de gerar uma reflexão sobre o porquê de escrevermos assim e não acim.

O problema é que a esquerda há muito deixou de representar os oprimidos, quanto mais de fazer parte da infantaria na luta contra a elite opressora. Munida de diplomas universitários dados no atacado e que atestam, com selo do MEC e tudo, a “burocratização das mentes”, a esquerda dita esclarecida agora usa o conhecimento ortográfico para expressar sua superioridade intelectual e principalmente moral diante daqueles que, pecado dos pecados, confundem fonemas idênticos.

Nem sempre foi assim. Quem não se lembra dos programas de Pasquale Cipro Neto, no qual o professor tecia elogios e mais elogios aos deslizes gramaticais nas letras dos “gênios” da música popular brasileira? O próprio MEC sob a administração de Fernando Haddad, cujo domínio da norma culta está bem longe da perfeição, adotou oficialmente o livro Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, que defendia o uso de expressões como “nós pega o peixe”. “A proposta da obra é que se aceite dentro da sala de aula todo tipo de linguagem, ao invés de reprimir aqueles que usam a linguagem popular”, disse a autora à época, para o delírio dos intelectuais hoje imprecionados com o erro de Weintraub.

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Isso sem falar em toda uma cultura anti-intelectual que vai do funk ao sertanejo universitário e que passa também pela literatura engajada, cultura essa que há muito tempo aboliu os plurais, a ortografia, a concordância e a regência corretas. Nesse meio, a norma culta é vista como a imposição de um padrão de beleza e, portanto, ela deve ser combatida a fim de se destruir o patriarcado, os brancos, a heteronormatividade, o capitalismo ou sei lá o quê.

Fábrica de tecnocratas

Não que o erro de Weintraub não deva ser apontado e devidamente corrigido. Talvez até com um pedido de desculpas - que mal há nisso? Até porque, excluída a hipótese mais provável de lapso (ative o autocorretor do celular, ministro!), o erro ortográfico de Weintraub aponta para um problema mais estrutural na educação brasileira, desde a redemocratização dominada pelos paulofreireanos e pelos poderosos sindicatos de professores Brasil afora.

A educação estatal há muito tempo abandonou a busca por um ensino humanista, que contemplaria a “perfeição idiomática” como forma de expressar a beleza. Hoje, desde o ensino básico, as escolas (inclusive as privadas, que precisam se adequar às diretrizes do MEC) estão voltadas para a formação de tecnocratas cuja maior ambição na vida é um cargo no funcionalismo público e uma aposentadoria daquelas polpudas. Daí a preocupação com a perfeição técnica da ortografia ministerial e o silêncio quanto a aspectos mais profundos dessa e de outras mensagens de Weintraub ou qualquer outra autoridade. Trata-se de uma educação voltada para a formação de cidadãos subservientes ao Estado, e não de seres humanos no sentido mais completo do termo.

De resto, a reação superdimensionada ao erro ortográfico de um ministro formado em economia e talvez não muito afeito às letras mostra apenas que a luta política no Brasil contemporâneo nada tem a ver com uma ideia de nação, muito menos com o fomento àquilo que o ser humano tem de melhor. A luta política é vulgar e rasteira e, sem o freio da honra, é capaz de usar qualquer deslize causado pela pressa, preguiça ou orgulho para destruir os que vê como inimigos.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]