Ouça este conteúdo
É estranho refletir que alguém que morreu em 1937 aos quarenta e seis anos de idade sem nenhum legado óbvio exerceu mais influência cultural do que a maioria dos seus sucessores, mas a "longa batalha" dos intelectuais de Antonio Gramsci continua a modelar nossa paisagem política, educacional e artística por vias lamentáveis.
Antonio Gramsci, filósofo, escritor, socialista e político italiano, foi preso pelo governo fascista de Benito Mussolini em 1926. A despeito de sua saúde muito frágil, seu encarceramento permitiu-lhe escrever uma série de Cadernos do Cárcere, que iria remodelar radicalmente a mentalidade de muitos teóricos e ativistas marxistas. De fato, a sua morte — que ocorreu uma semana após a sua soltura — conferiu-lhe o status de mártir, cujo espírito seria invocado pelos salões socialistas da Europa, bem como através das universidades e instituições educacionais do Ocidente. Em Gramsci, os intelectuais tinham encontrado um santo socialista que absolvia o marxismo de seus pecados stalinistas, a ainda mapeara o caminho de uma revolução lenta, porém firme, cujo resultado seria a tomada e o domínio dos bastiões da cultura, educação e política ditas "burguesas".
Hoje, a revolução gramsciana teve sucesso onde a maioria dos movimentos rivais falhou. Existencialismo, estruturalismo e pós-modernismo passaram, mas as ideias de Gramsci se tornaram um dogma entrincheirado através da academia e sociedade ocidentais. Por exemplo: a Teoria Crítica da Raça, a dita "lacração" ["woke culture"] e a dominância, através das artes liberais, de estudos que buscam desconstruir as estruturas patriarcais supostamente enraizadas testemunham a favor do que o escritor e acadêmico John Fonte já descreveu como o "longo alcance" de Gramsci.
O impacto da visão de Gramsci também é evidente na política, sobretudo nos EUA e na Europa, na forma de políticas feitas para reordenar a sociedade e alinhá-la segundo uma ortodoxia radical liberal. Isto inclui o ataque à família tradicional, o empurrão da religião para as margens e o "cancelamento" daqueles que questionam essa agenda extrema. [Por "liberal" entenda-se o significado que o termo tem nos EUA desde meados dos século passado, e que vem sendo exportado mundo afora neste século. (N. t.)]
Controlar a cultura
Há duas razões chave para a emergência de Gramsci como o sumo sacerdote da nova ordem cultural. Primeiro, ele abandonou o marxismo científico ou determinista, que enfatiza forças materiais, em favor de uma abordagem mais humanística, que enfatiza as ideias e a identidade. Depois, enfatizou a importância do intelectual a serviço da revolução.
Quanto ao primeiro ponto, se o marxismo tradicional considerou a "base" socioeconômica como a força motriz da história, Gramsci insistiu que a "superestrutura" ideológica é igualmente importante. Para ele, a marcha da história rumo ao seu desfecho socialista só pode ser alcançada quando o proletariado não só assumir o controle dos "meios de produção" materiais, mas também as forças da "produção cultural", tais como as artes, a educação, a mídia e os órgãos de conhecimento que uma sociedade usa para se perpetuar.
Essa versão adaptada do marxismo reconhecia que os humanos não adquirem identidade só por meio do seu envolvimento com o mundo material. Como Hegel entendera, há aspectos "espirituais" ou imateriais da nossa condição que são igualmente significativos, e que formam a nossa autocompreensão. É verdade que Gramsci seguiu Marx ao rejeitar a teoria hegeliana da auto-identidade como "falsa consciência". Para ambos, o aspecto espiritual da dialética de Hegel era a epítome da "alienação burguesa". No entanto, se Marx a rejeitou por inteiro, Gramsci viu que a identidade e o eu são tanto o produto daquilo que ele chamou de "ideologia" quanto dos fatores econômicos. Portanto, deu-se conta de que não é possível mudar uma sociedade sem mudar a maneira como ela percebe a si própria, bem como o que ela pensa de si mesma.
Gramsci se deu conta de que não é possível mudar uma sociedade sem mudar a maneira como ela percebe a si própria, bem como o que ela pensa de si mesma.
Isto explica a segunda razão para a influência de Gramsci: sua visão do significado do intelectual. Por "intelectual" ele não entendia alguém que se envolvesse exclusivamente em especulações teóricas, senão quem "exerce funções organizacionais em sentido amplo, no campo da produção, seja cultural ou político-administrativa". Nessa perspectiva, cada grupo social adquire uma identidade baseada nas funções daqueles que, de vários jeitos, reforçam essa identidade. Por trás de um padre, por exemplo, há uma rede administrativa que inclui não só funcionários clericais, como teólogos e acadêmicos que, através de ideias, dão à Igreja, seus ministros e aos fiéis leigos uma "homogeneidade e consciência de sua função". Sem o intelectual, as instituições seriam privadas de unidade e identidade ideológicas.
Por conseguinte, se a sociedade der uma guinada socialista exitosa, o "novo intelectual orgânico" deve ganhar uma posição privilegiada. Pois só quem domina as esferas cultural e acadêmica pode tomar a empreitada crucial de criticar as estruturas dominantes da sociedade e alterar de maneira firme sua autoimagem ideológica.
Hegemonia ideológica
Gramsci acreditava que a revolução socialista não era só contra o capitalismo como um sistema econômico, mas que se opunha igualmente àquilo que ele descreveu como a "hegemonia ideológica" da estrutura de classes capitalista. Em contraste outra vez com o marxismo clássico, sugeriu que, ainda mais poderosas do que as estruturas militares-industriais que sustentaram um sistema, eram os meios ideológicos de exploração pela classe dominante para reter o poder. Para Gramsci, a hegemonia é ao mesmo tempo causada e mantida pela manipulação sutil do "consenso popular" numa dada sociedade. Isto se consegue por meio da classe intelectual através das instituições educacionais, religiosas, culturais e cívicas da sociedade.
Assim, o reino daquilo que Hegel chamava de "consciência" (Geist) é de crucial importância, pois não é uma mera consequência de fatores econômicos e materiais subjacentes em jogo, mas é igualmente poderosa para dirigir mudanças sociais. Portanto, o que a revolução exige é a infiltração, por intelectuais orgânicos, da mídia, da Igreja, da academia e da esfera cultura, para "desmistificar" o que a estrutura burguesa de classes "legitimou" como realidade. Ao fazer isto, deve dar uma alternativa à hegemonia ideológica dominante. Isto, porém, não poderia ser alcançado em curto prazo por causa da natureza muito entrincheirada do capitalismo avançado e do seu controle hegemônico da sociedade civil. Em vez disso, o campo de batalha deve ser a arena das ideias e a cultura, onde o consenso popular se forma. Esta seria uma longa guerra, cuja finalidade seria o que Gramsci chamou de "transformação contra-hegemônica da consciência".
Enquanto o marxismo clássico previu que o capitalismo colapsaria por necessidade, Gramsci insistiu que o nascimento de uma verdadeira ordem socialista só seria possível por meio da ação humana. As mudanças históricas não acontecem por serem dirigidas por forças deterministas subjacentes, mas porque agentes humanos alteram ou transformam a consciência, ou ideologia, de uma época particular. No entanto, as armas dos intelectuais orgânicos não são militares, senão culturais, significando que estão envolvidos numa guerra cultural voltada para o enfrentamento da hegemonia da civilização burguesa.
Essa guerra deve ser lutada não num nível global, mas nacional, pois não pode haver um modelo predeterminado com o qual se possam transformar traços culturais específicos. A tarefa do intelectual é forjar uma guerra cultural contra o consenso de contextos particulares. Desse jeito, a revolução cultural de Gramsci mira em cada cultura nacional e busca mudá-la ao seu modo. Como dito antes, isto se faz minando o controle hegemônico de instituições culturais, acadêmicas, religiosas e políticas por meio da ordem "burguesa" em um dado lugar. Por conseguinte, será necessário um conhecimento de normas culturais locais para que possam ser desmistificadas à luz de alternativas revolucionárias.
O legado de Gramsci
O apelo de Gramsci — muito superior ao de confrades tais como o marxista francês Louis Althusser — não é somente por ele ter rejeitado o marxismo mecanicista e seus excessos revolucionários, mas por ter percebido algumas características redentoras na cultura burguesa. Um dos principais propósitos de tomar cada cultura nacional em seus próprios termos é que assim se revelarão os meios por que essa cultura se opôs à injustiça e à desumanidade. O fato de que um dado protesto social emergiu no contexto da cultura burguesa ao seu ver não o deslegitima.
Para Gramsci, as armas dos intelectuais orgânicos não são militares, senão culturais, significando que estão envolvidos numa guerra cultural voltada para o enfrentamento da hegemonia da civilização burguesa.
Assim, uma revolução cultural nacional-popular genuína tentará entrar em modos de protesto social já existentes, seja nas artes, na academia, em sindicatos ou movimentos de solidariedade. Sendo local e cultural, a revolução gramsciana se opõe à insistência marxista tradicional numa luta revolucionária que é global, historicamente determinada e negligente quanto à importância da ideologia e da consciência no enfrentamento do controle hegemônico.
Pode ser excessivo dizer que Gramsci reumanizou o marxismo, como se tal coisa fosse possível. Talvez, porém, seu maior êxito — a despeito de sua postura anti-hegeliana — foi mostrar por que a consciência (ou Geist) é a característica central não só da mudança, mas da experiência humana em si mesma. Em contraste com Marx, ele entendeu a noção hegeliana de que mudanças no mundo material são preditas por mudanças nas consciências. Em outras palavras, as ideias são importantes, e (como bem entendeu Hegel), conforme nossas ideias mudam, muda também a nossa realidade. Trocando em miúdos, o intelectual gramsciano concorda com Hegel quanto ao homem ser, como disse o próprio Gramsci, "acima de tudo o mais, mente". No entanto, diferentemente de Hegel, sua meta é usar as ideias como um meio para substituir uma "ideologia" por outra. Com esse modelo, a "transformação da consciência contra-hegemônica" não é um processo que conduz da alienação à identidade própria. Em vez disso, procura alienar as pessoas do seu próprio legado cultural, moral e político.
Enquanto Hegel buscou trazer o leitor do estranhamento à autoconsciência plena, Gramsci e seus apóstolos condenaram a autossatisfação hegeliana como complacência "burguesa". Se Hegel acreditou que só poderíamos estar em casa no mundo nos envolvendo a sério com o legado espiritual da arte, da religião e da filosofia, Gramsci acreditou que isso deveria ser subvertido — exceto, é claro, por aqueles pequenos bolsões de resistência socialista que podem ser encontrados às suas margens. Enquanto Hegel oferece reconciliação com a realidade, Gramsci toma como virtude o estranhamento, rejeitando "o melhor que foi pensado e dito" para preferir alternativas emancipatórias. Com isto, nega a pertença e a identidade em prol de uma forma de desabrigo espiritual que transforma as pessoas em "estranhas para si mesmas". Isto, porém, não resulta em "libertação" do controle hegemônico; em vez disso, amputa das pessoas o único meio que elas têm de adquirir um autoconhecimento genuíno.
O atual domínio do dito "marxismo cultural" nas instituições da civilização ocidental mostra que Gramsci teve êxito onde muitos confrades marxistas falharam de maneira abjeta. Sua insistência numa revolução material privada de conteúdo espiritual levou a um ganho político de curto prazo, mas nada mais. Gramsci, por outro lado, inspirou uma revolução que transformou radicalmente a paisagem cultural e política. Nem o observador mais casual das mudanças da academia em seus currículos e no cânone ocidental, sobre o qual foi fundada, pode deixar de ver o impacto da "longa batalha" dos intelectuais de Gramsci e de sua guerra contra nosso legado cultural. Até aqueles que nunca ouviram o seu nome podem ver com clareza as consequências para a arte, literatura e política, de uma revolução que almejou a ideologia em vez da verdade.
Se outrora as nossas instituições acadêmicas foram fundadas nos princípios de The Idea of a University, do cardeal John Henry Newman, hoje muitas delas negligenciam a busca da erudição e da verdade em prol de discursos politicamente carregados, enraizados na ideologia woke (lacradora). Os acadêmicos com uma mentalidade tradicional que protestam têm grandes chances de perder o emprego. Outrossim, o mundo da arte agora está dominado por aqueles que se consideram a vanguarda da justiça social. A arte não é mais a revelação de uma forma sagrada de vida, nem uma manifestação dos mais altos ideais aos quais a humanidade pode aspirar. Em vez disso, segundo uma convocação de museus dos EUA, o propósito do museu contemporâneo é se reconciliar "com comunidades pelas injustiças passadas", tendo a "descolonização" e a "justiça social" como princípios norteadores.
Gramsci pode ter morrido em falência, sem nenhuma herança óbvia. Mas o fato de ele ser hoje olhado como um santo mártir por uma geração inteira prova não só que ele levantou das cinzas de sua cela de prisão para se tornar o escritor marxista mais influente do século XX, mas que ele conseguiu semear a revolução na pátria do inimigo. Essas sementes enfim brotadas sugerem que a longa batalha de Antonio Gramsci acabou, e seu legado, por mais que seja lamentável, está seguro.
Este ensaio é uma parte da série Who’s Who da The Public Discourse que apresenta de modo crítico pensadores importantes que são referências frequentes nos debates políticos e culturais, mas cujas ideias podem não ser amplamente conhecidas nem compreendidas.
©2022 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês