Como todo jornalista de sucesso, o americano David Remnick costuma estar no lugar certo, na hora certa. Foi correspondente do “Washington Post” na ex-União Soviética de 1988 a 1992, período em que o Kremlin já começava a permitir uma cobertura mais livre de seus bastidores. Pouco depois, teve a oportunidade de presenciar in loco o desmoronamento do regime comunista e sua confusa transição para o capitalismo, que retratou no livro “O túmulo de Lênin”, clássico do jornalismo lançado originalmente em 1994 - e que ganhou sua primeira edição no Brasil em fevereiro de 2017, pela Companhia das Letras.
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O calhamaço de quase 800 páginas captura a atmosfera dos últimos dias do regime soviético pelo testemunho de seus personagens, sejam eles políticos (Mikhail Gorbachov, Boris Yeltsin) ou figuras anônimas (moradores de rua, padres, sobreviventes de Tchérnobil e até uma antiga namorada de Gorbachov).
A temporada soviética não apenas catapultou a carreira de Remnick - ela também o preparou, de certa forma, para o desafio enfrentado por todo jornalista americano atual. Depois de fazer a autópsia de um dos mais duros e sangrentos regimes da humanidade e de ver a esperança de uma próspera democratização nos anos 1990 dar lugar à autoritária Rússia de Vladimir Putin, ele pôde usar sua expertise em Estados opressores para cobrir melhor a presidência de Donald Trump - que, além de suas suspeitas relações com Moscou, vem promovendo uma guerra contra a imprensa e o Judiciário, dois dos pilares da democracia americana.
“A minha experiência por lá já está começando a me ajudar”, brinca ele, de Nova York, em entrevista por telefone ao jornal O Globo. “Mas é claro que ainda existe uma diferença entre uma democracia consolidada, como a dos Estados Unidos, e a de um Estado autoritário. A eleição de Trump trouxe muito pessimismo, mas ainda temos uma Constituição, instituições e seres humanos sobre os quais não se passa por cima tão facilmente.”
Fim da História
Quando escreveu “O túmulo de Lênin”, Remnick não imaginava que, duas décadas depois, a Rússia voltaria a ser um forte antagonista dos Estados Unidos, com acusações de tentar manipular as eleições do país e estar por trás da vitória do atual presidente americano. Ao voltar para a redação do “Washington Post”, já com o regime soviético definitivamente enterrado, o jornalista brincou: “É o fim da História”.
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Na época, fazia sentido. Esperava-se que os Estados Unidos se tornassem a única superpotência e que a Rússia caminhasse para uma tranquila democratização. Mas o mundo virou multipolar e a terra de Putin, um Estado autoritário e cada vez mais hostil ao Ocidente. Voltar ao livro de Remnick, vencedor do Pulitzer em 1994, ajuda a compreender o que deu errado nesse processo.
Os meandros econômicos que levaram ao colapso soviético são conhecidos. Porém, ao investigar os efeitos da liberalização promovida por Gorbachov nos anos 1980, o jornalista se concentra muito mais sobre as questões simbólicas dessa política, como a revelação dos horríveis segredos do passado do regime (com perseguições e matanças), do que seu impacto na economia. Segundo o autor, uma vez que o regime mostrou o que era, estava condenado. Como um personagem shakespeariano que calcula mal a sua jogada, Gorbachov tentou salvar a União Soviética ao ensaiar modernizá-la, mas acabou criando as bases para o golpe que a implodiu.
“Gorbachov permitiu ao povo entender uma parte perdida da História”, explica Remnick. “De uma hora para a outra, todos os mitos, os acobertamentos, as mortes em massa, tudo isso passou a ser questionado. Muitas pessoas viam pela primeira vez o fim da censura, da vida intelectual... E isso pode ser um processo doloroso. Ninguém estava preparado no início. Se você vive num regime autoritário, se sua vida é uma versão real de um romance do George Orwell (autor de “1984”), sua consciência não muda em cinco segundos.”
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Nesse sentido, o primeiro dos 27 capítulos do livro já resume o que está por vir. Remnick vai a uma floresta remota do país para descobrir a repercussão do golpe (que havia obrigado Gorbachov a renunciar) pela ótica de um oficial de carreira encarregado de exumar as ossadas escondidas de jovens oficiais poloneses secretamente massacrados por Stalin. Um cidadão soviético modelo, que teria dado a vida pelo regime, ele aparece literalmente desenterrando a História - a cada ossada encontrada, perde um pouco da fé na sociedade em que foi treinado a acreditar.
“Dermokratia”
Ao longo do livro, o autor retrata como a tão aguardada “demokratia” acaba se tornando uma “dermokratia” (“merdocracia”) para o russo médio. O estranhamento ao capitalismo e à abertura cultural é revelado em pequenos eventos: um homem entediado ao assistir a seu primeiro jogo de beisebol, uma plateia de cinema atônita diante do filme “Wall Street” (a versão de 1987) e o ressentimento provocado pela súbita chegada do luxo e do consumo ao país, reservados para poucos.
Apesar da transformação caótica e apressada, Remnick acredita que pelo menos um elemento marcante da antiga União Soviética sobreviveu aos dias atuais.
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“A KGB foi atacada nos anos 1990, mas nunca desapareceu e se tornou a instituição mais poderosa. Tanto que Putin saiu de lá, assim como muitas das pessoas que estão em seu governo. De certa forma, Putin representa uma restauração, não do comunismo como ideologia, mas como poder soviético. O que sobreviveu foi o autoritarismo. Ninguém liga mais para comunismo. Isso estava morto antes de estar morto.”
“É assim que o fascismo nasce”
Após o sucesso de “O túmulo de Lênin”, Remnick voltou a escrever sobre a Rússia em 1997, no livro “Resurrection”, desta vez focando na reestruturação do país, com suas novas elites e grupos mafiosos. Em 1998, foi convidado a editar a “New Yorker”. Em 2010, lançou “A ponte” (Companhia das Letras), uma biografia de Barack Obama.
Um dos jornalistas mais influentes dos Estados Unidos, ele causou comoção com um texto publicado na internet logo após a eleição de Trump, em que alertava: “É assim que o fascismo nasce”. Estaria ele testemunhando um novo colapso, agora o da democracia americana?
“Nesse texto, eu também disse que ainda não estávamos lá (num país fascista) e que poderíamos lutar para evitar o pior”, pondera o autor. “Está sendo encorajador ver o comportamento da imprensa, da Justiça e até de algumas pessoas no Congresso. Vivemos um momento caótico, mas o presidente ainda não tem os poderes de um ditador absoluto, e não acredito que ele os terá.”
Sobre Obama, com quem ainda tem contato, Remnick arrisca um palpite sobre os seus próximos passos no espectro político.
“Acho que ele ficará quieto por um tempo. Ficará sutil. Se a ocasião pedir uma voz, ele eventualmente falará.
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