Quando a Estação Primeira de Mangueira entrou no Sambódromo para homenagear a vereadora assassinada Marielle Franco (PSol), o presidente da agremiação, o deputado estadual Francisco Manoel de Carvalho, o Chiquinho da Mangueira (PSC), estava em casa. Ele cumpre prisão domiciliar desde janeiro, por decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ministro João Otávio de Noronha.
Antes disso, estava preso, desde novembro, acusado de movimentar, utilizando contas suas, de sua mãe e da própria Mangueira, R$ 3 milhões advindos do pagamento de propina. Esta não é a primeira acusação que recai sobre a tradicional escola de samba, fundada em 1928 e que se sagrou a campeã do carnaval de 2019 no Rio de Janeiro.
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Há dez anos, a polícia encontrou uma passagem secreta ligando um camarote da agremiação a uma casa da comunidade — por esse corredor, passaria, com frequência, o traficante foragido Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha, o chefe da venda de drogas no Morro da Mangueira e também um dos compositores do samba que a escola apresentou em 2008. Aposentado do crime, Tuchinha seria morto em 2014, alvejado por 13 tiros na Mangueira, na zona norte do Rio de Janeiro.
Mesada secreta
A Mangueira foi apenas uma das muitas escolas a homenagear Marielle, cuja morte completa um ano dentro de poucos dias, a 14 de março. A viúva desfilou com a escola, enquanto que a família da vereadora participou da apresentação da Vila Isabel, cujo samba-enredo abordava as marcas da escravidão.
Em São Paulo, a irmã e a filha de Marielle se apresentaram junto com a Vai-Vai, que apresentou um mosaico com uma foto da vereadora. E a Pérola Negra, que venceu o grupo de acesso da capital paulista, estampou a imagem de Marielle na última alegoria. Além disso, blocos e cordões de todo o país pediram justiça para o assassinato.
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No caso da Mangueira, o refrão do samba-enredo Eu quero um Brasil que não está no retrato afirma: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”. No entanto, a crítica social e o protesto contra a falta de informações sobre os responsáveis sobre o assassinato da vereadora partem de uma escola que é alvo constante de denúncias.
Em 2012, por exemplo, o Ministério Público estadual do Rio de Janeiro identificou que, somente no carnaval de 2010, foram apresentadas 14 notas fiscais falsas, somando R$ 1,25 milhão, em favor de seis escolas, incluindo a Mangueira. As notas foram emitidas por empresas de fechadas ou rapidamente desativadas logo após a festa.
Relação antiga
No Rio de Janeiro, o samba e a contravenção caminham juntos há décadas. Ficou mais forte em 1984, com a fundação da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa). “A união dos bicheiros em torno de uma entidade traria consequências definitivas para os rumos do carnaval carioca”, escreve o historiador Vinícius Ferreira Natal.
“Agora, de fato, quem ditaria as regras dos desfiles e negociaria com poder público e empresários seria a cúpula do jogo de bicho, embasada em uma ideia de legalidade e oficialidade. Seriam reconhecidos pelo poder público, sentar-se-iam à mesa com autoridades para negociação de repasse de verbas, mesmo sem deixar de praticar suas atividades consideradas ilegais perante o Estado.”
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Muitas lideranças das escolas de samba são acusadas de contravenção. O presidente de honra da Beija-Flor de Nilópolis, por exemplo, Aniz Abraão David, já foi detido em 2007 e em 2011, acusado de ligações com o jogo do bicho. Sua família tem forte atuação política em Nilópolis.
Curiosamente, a Beija-Flor venceu o carnaval de 2018 com um enredo em que criticava a corrupção.
Também já foram alvo de pedidos de prisão os presidentes da Imperatriz Leopoldinense, Luizinho Drummond, da Grande Rio, Hélio Ribeiro. O ex-presidente da Vila Isabel, Wilson Vieira Alves, cumpre pena de 23 anos por contrabando, corrupção e formação de quadrilha.
Sucesso na avenida
No mundo do carnaval, a Mangueira é muito bem-sucedida. Fundada por um grupo de sambistas que incluía Cartola e Carlos Cachaça, a agremiação soma 20 títulos – apenas a Portela, com 22 vitórias, supera a agremiação. Entre 1949 e 2006, seu intérprete oficial foi Jamelão.
Enquanto Chiquinho da Mangueira, eleito em 2013 com o apoio de Alcione e Nelson Sargento, responde à Justiça, o presidente em exercício é Aramis Santos. Chiquinho teria recebido a propina de Sérgio de Castro Oliveira, o Serjão, o operador financeiro do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Segundo a delação de Serjão, Chiquinho recebia uma mesada mensal de R$ 20 mil, que era utilizada para fechar as contas da escola de samba.
Além de receber propina, Chiquinho é acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de exercer influência para nomeações em 74 postos de trabalho do Detran do Rio de Janeiro. De acordo com o MPF, as vagas eram fornecidas em troca de votos favoráveis do deputado, e as pessoas indicadas por Chiquinho atuavam fazendo propaganda eleitoral para ele.