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Artigo

A moral de João Santana

João Santana no Roda Viva
João Santana no Roda Viva (Foto: Reprodução)

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Ao ver que o Roda Viva entrevistou João Santana, fui conferir se o período de pandemia tinha sido aproveitado para entrevistar gente em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, pois não é necessário ir ao estúdio. Mas não: ele estava lá em São Paulo, mesmo, e felizmente os jornalistas comungavam das minhas dúvidas relativas à sua situação jurídica. Prensaram-no, e ele, mui lépido e descontraído, exibiu a tornozeleira eletrônica. Explicou que estava preso em regime aberto, o que faz tanto sentido quanto estar morto em regime de vida. Enfim: coisas do nosso Brasil, que, segundo os especialistas, prende demais.

E João Santana é negro segundo os especialistas, então talvez deva estar solto por uma questão de dívida histórica. Talvez até mesmo devesse estar sem a dita tornozeleira, pois a CAPES premiou um sociólogo foucaultiano da USP por dizer que a tornozeleira eletrônica é um dispositivo neoliberal para monitorar negros e pobres. Convidaria o dito sociólogo, o Dr. Ricardo Urquizas Campello a emprestar seu ombro para João Santana chorar, mas ele é sincero ao dizer que não se vitimiza.

Quanto às questões legais, o ex-marqueteiro explica que pode sair da Bahia para trabalhar, e o Roda Viva é considerado trabalho. Os jornalistas dizem que ele elegeu Chávez e Maduro. Ele protesta, diz que não fez campanha para Maduro, lembra que o opositor de Chávez também tinha marqueteiro brasileiro, e diz que não se arrepende de ter feito campanha para ele, pois Chávez era bom para a Venezuela naquele período.

Para o biógrafo Joachim Fest, o maior feito político de Hitler é sua forma peculiar de revolução. Primeiro se elege democraticamente, depois desmantela as instituições via plebiscitos. Chávez era um notório antissemita, tutelado por um ideólogo neonazista chamado Norberto Ceresole, substituído, depois da morte deste, pelo “nacional-bolchevique” Heinz Dieterich. E, com o auxílio desse peculiar marqueteiro brasileiro, Chávez refez os passos de Hitler.

Não obstante Goebbels exista e seja mau, o legislador brasileiro parte do pressuposto de que ninguém é mau quando pode ser bom, e que o crime se explica por falta de oportunidades na vida. O legislador que permitiu o regime aberto na certa tinha em mente uma “vítima da sociedade” que se tornaria virtuosa ao encontrar um emprego. Alguma autoridade jurídica proibiu João Santana de trabalhar como marqueteiro e desfez o mal previsto pela nossa lei: deixar um Goebbels trabalhar enquanto cumpre pena. Como se o trabalho nunca pudesse ser demoníaco.

Moral humanista e moral sectária 

Desta vez comecei o programa em sintonia com os jornalistas. Eles não deixavam João Santana reduzir os crimes ao caixa dois, uma vez que o crime fiscal era cometido apenas para encobrir o saque gigante e sistemático do Brasil. Saque, diga-se, feito por aqueles que adoram imputar a portugueses do séc. XVI a pobreza dos brasileiros do séc. XXI.

Mas a sintonia não durou muito: eles tinham uma enorme dificuldade para entender que códigos morais não são absolutos. Na República, Platão já apontava a impossibilidade de uma associação de ladrões subsistir sem um código de ética interno. Ladrões decerto são imorais por roubarem suas vítimas, mas só são imorais porque tomamos a totalidade da Humanidade como a comunidade moral por excelência. Dentro de uma moral tupinambá, bom era aquele que matava, esquartejava e comia o inimigo. Desenvolver uma moral humanista deu trabalho – e é uma obra que o totalitarismo perverte.

Um terrorista islâmico que se explode não age segundo um código moral? O código de uma moral perversa, mas sem dúvida um código. Ele se sacrifica à causa; não se explode porque deu na telha. E mais: a autoimagem do terrorista é elevada, porque tem uma certeza absoluta dos seus ideais e de sua causa.

Por isso, não há nada de incompreensível em dizer que Dilma Rousseff era honesta em comparação aos demais petistas. A julgar pelo relato de João Santana, os petistas eram uma associação de ladrões sem nenhuma moral interna, e nem mesmo um mínimo de lealdade pessoal. Dilma teve consideração pessoal pelo seu marqueteiro-comparsa, e o alertou sobre as investigações. Já o presidente do partido, quando o comparsa estava na cadeia, declarou em público que o PT nunca teve um marqueteiro. Foi um motivo para ele aceitar delatar.

João Santana passou longos minutos tentado explicar aos jornalistas que Dilma, diferentemente de Lula ou dos demais petistas, tinha um código moral e uma autoimagem de honesta. Comparar Dilma com um terrorista não é nada de remotamente exagerado, porque ela de fato foi uma. Seu norte moral era o totalitarismo, e roubar o Estado para financiar a causa não conflita com sua moral pervertida.

Venhamos e convenhamos: algumas ações de Dilma são um mistério. Que seria da Lava Jato sem a lei de delação premiada, assinada por Dilma? O retrato dela pintado por João Santana ganha plausibilidade. É possível que ela seja um personagem trágico, que realmente acredita na própria honestidade. Devia se achar incorruptível enquanto metia a mão na Petrobrás para ajudar sua causa santa. Já a delação premiada seria para pegar os corruptos “de verdade”, os do PMDB e do PP, que não são movidos pela flama da ideologia. Quem sabe não esperasse que a Lava Jato, prendendo-os todos, deixasse o Brasil livre para se tornar o seu paraíso?

A mesma perplexidade que tenho com o legislador, tenho com os jornalistas. Eles não conseguem entender a cosmovisão de João Santana porque lhes falta imaginação, ou porque não querem crer que o Brasil teve um gangster como eminência parda?

A apreciação “técnica” da polítca 

João Santana quase sempre apreciava os fatos passados do ponto de vista que ele chamava de técnico. Por exemplo: uma propaganda em que dava a entender que Kassab poderia ser gay é o maior “erro técnico” da vida dele, não um golpe baixo. Os jornalistas não perguntaram por que era um erro técnico, mas dá para depreender o motivo com a resposta dada à jornalista furiosa, que mencionava uma propaganda contra Marina Silva. Segundo a propaganda petista relembrada pela jornalista, Marina Silva, por pregar a autonomia do Banco Central, tiraria a comida do povo para dar aos banqueiros, e a educação teria um corte trilionário – quando o orçamento daquele ano para a pasta nem chegava a um trilhão. Mentira gorda, portanto. João Santana não se abalou; disse que não se arrepende e faria de novo. Pela explicação “técnica” dele, Marina, apresentando-se como de esquerda, nunca aceitaria um debate aberto acerca do Banco Central, pois apareceria como uma liberal. Assim, ele poderia bater à vontade, que ela, covarde, não iria se defender. E acertou.

Porém, a isso ele acrescenta um arrazoado sobre as regras do jogo, que escancaram a sua mentalidade. Para ele, como para Carl Schmitt (o jurista do nazismo), a política é a substituta da guerra. Por isso, é válido combater o inimigo com “metáforas” e “exageros”, que é como ele chama as mentiras dirigidas contra Marina Silva. Os europeus, diz ele, fazem isso também.

Sem dúvida, é imoral o que ele fez com ela. Mas também é certo o seu parecer “técnico”: seus brios de esquerda a impediram de se mostrar liberal e se aprofundar no debate dos bancos. E assim entendemos por que foi um “erro técnico” insinuar que Kassab era gay: seu candidato era de esquerda, pega mal com o eleitorado cativo fazer algo que pareça homofóbico.

Além de padecerem da falta de uma moral mínima para sustentar uma associação, os petistas, para João Santana, são desorganizados. Como que para se desculpar, menciona que não sabia das dimensões e da desorganização do esquema da Odebrecht. Daí depreendo que, se eles fossem mais profissionais, talvez compensasse manter o bico fechado.

João Santana frisou muito que foi inocentado de acusações de corrupção. Fica a dúvida, portanto: será que sua boa organização, não sua inocência, foi o que impediu a Lava Jato de conseguir provar a sua culpa?

Os jornalistas deveriam ter insistido para que explicasse o que entendia por esquema desorganizado da Odebrecht. Eu tenho um palpite. Suponho que a “desorganização” inclua dinheiro desviado para partidinhos de linha auxiliar, como o PC do B e sua Avião. Se a Odebrecht dava dinheiro até para o PC do B, que normalmente se contenta com cargo e prestígio, talvez o PT tenha inflacionado a roubalheira de um jeito que não poderia passar despercebido. Quem quiser ficar roubando quietinho, não leve uma quantidade muito graúda do cofre, que dá na vista.

Ainda quanto à “técnica” (para usar a expressão de que ele gosta), ele considerou um erro a falta de entendimento entre Lula e Dilma. Ainda que não expressasse verbalmente, Lula tinha muito claro para si e para o seu círculo que ele queria de Dilma um mandato tampão.

Para ele, o maior erro de Lula é não apoiar Ciro Gomes. Acha que Jaques Wagner deveria sair candidato à presidência, e, calculista, considera que Lula querer banhar-se de urnas mais uma vez é um despropósito. Se ele perde, fica desmoralizado; se ganha, leva um país em chamas. A crer em João Santana, Lula é um ególatra que leva o PT à ruína. Bons, mesmo, são os peronistas. Cristina engole o ego, entra de vice e reina. Bons tecnicamente, diz ele, ao ser interrogado pelos jornalistas sobre a ruína argentina. De fato, os peronistas não largam o osso, e seu sucesso eleitoral num país ex-rico é um fenômeno a ser estudado, no qual há muito de propaganda e estratégia.

No mais, tratando de 2018, João Santana avalia como “erro técnico” a campanha do Ele Não, mas os jornalistas não o mandaram desenvolver. (Palpite: aqueles militantes detestáveis não têm senso de realidade e acham que o Brasil é um grande grêmio estudantil.) De resto, achei-o muito acertado em seu juízo acerca da eleição de Bolsonaro: não é que ele tenha sido um candidato atípico responsável pela própria eleição, atípica foi a própria eleição de 2018, com os partidos todos bagunçados no pós Lava Jato. Apontou que as eleições estaduais dos três maiores colégios eleitorais – São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro – refletiam isso. Minas que o diga!

“Tecnicamente”, a Lava Jato teria sido o movimento político que o superou na arte da propaganda, e que fez uso dos ensinamentos de Saul Alinsky. Conspiracionistas de direita adoram mencionar esse tal de Alinsky, e, se João Santana o cita com familiaridade, provavelmente estão certos em apontar a sua importância.

Quanto ao próprio Bolsonaro, João Santana aponta que está sendo feita uma transição do herói anticorrupção para o herói social. Transição arriscada, segundo ele, por falta de caixa e de tempo hábil para a recuperação econômica. Diz ele que, por isso, Bolsonaro não se reelege.

Enfim aparece a autoapreciação moral 

João Santana, se os jornalistas não o cortassem, teria se dito “um homem de esquerda”. Dizia “eu sou um homem de” quando se explicava em suas adesões à clientela. Jamais faria campanhas para a direita ou centro direita, e só daria conselhos a Bolsonaro para ele se estrepar – donde podemos concluir que, ao seu juízo, Bolsonaro talvez tenha feito muito bem em se transmutar em herói social, já que herói anticorrupção não cola de jeito nenhum, desde a saída de Moro. Também diz que Moro seria um mau candidato e não leva jeito pra política, o que pode significar precisamente o contrário.

A mentira é um privilégio do homem e um prazer do homem, diz ele, exaltado, ao jornalista Fernando Rodrigues. Este foi o único que conseguiu tirá-lo do sério. Fernando Rodrigues reclamava da desfaçatez com que João Santana, ex-repórter investigativo que descobriu casos de corrupção, ligava para os colegas indignado, reclamando das denúncias de caixa dois. Veja-se bem a canalhice: o ex-repórter ligava para os seus antigos colegas e amigos, e esbravejava com fúria santa contra as “calúnias” dirigidas à sua impoluta pessoa. Aí então, para se mostrar um homem moral, diz que foi graças à pessoa dele – João Santana – que Fernando Rodrigues e o Brasil ganharam a Lei de Acesso à Informação assinada por Dilma. Fernando teria pedido, e João teria feito lobby junto a Dilma. Ao cabo, João Santana padece da mesma autoilusão de honestidade que Dilma.

É um homem de esquerda, afinal.

A esquerda hoje 

São contrastantes as imagens de Lula e de João Santana. Um faz o que o outro se proibiu: vitimiza-se. Mistura vitimização com soberba, considera-se um Cristo pregado na cruz da Lava Jato. Tudo em Lula transpira a perda do senso de realidade. Desde 2018, ele não é outra coisa senão um Jim Jones com seguidores baratinados.

João Santana segue uma raposa. Começou com uma bancada enfurecida (exceto pela âncora, que fez o convite e não poderia se portar do mesmo jeito), e terminou exigindo a uma bancada risonha que divulgasse sua nova carreia de músico popular. Em sua autoapreciação moral, ele diz que padeceu de hybris, termo grego que os filósofos gostam de usar para designar soberba. Como ele continua se achando bom e honesto, continua padecendo desse mal.

A esquerda agora encontra-se partida. O petismo é um prédio em chamas, pois nem entre si esses ladrões conseguem ter lealdade, e agora seguem um louco. Enquanto isso, as raposas tentam se passar por centro e se organizar em torno de Ciro Gomes.

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