O cantor, compositor geralmente recluso e mal-humorado e aqui e ali gênio João Gilberto morreu no sábado, aos 88 anos, de causas ainda não divulgadas. O mundo todo se consternou e no Facebook e Twitter as pessoas passaram o fim de semana publicando fotos de discos e relatos de como a bossa nova era importante para elas e simbolizava tudo o que era belo, sofisticado, sensível e inteligente.
Aí perguntaram ao presidente Jair Bolsonaro o que ele pensava da morte de João Gilberto. “Era uma pessoa conhecida. Meus sentimentos à família, tá ok?”, disse ele, fazendo com que aquelas mesmas pessoas até então compungidas imediatamente se esquecessem não só da perda como também de todos aqueles sentimentos belos, sofisticados, sensíveis e inteligentes para atacar a ignorância de Bolsonaro com a virulência que o desconhecimento musical do chefe do Executivo aparentemente merece.
Ignorância que, convenhamos, não é novidade nem tampouco exclusividade brasileira. Líderes políticos, sobretudo líderes políticos em repúblicas democráticas, são notadamente ignorantes e só afetam cultura quando e se lhes convém. E há uma explicação para isso que é bem mais profunda e complexa do que simplesmente o desinteresse puro pela afetação cultural que geralmente move os enlutados de ocasião. Líderes políticos são entes necessariamente terrenos e lidam com o presente muito material e tangível. A eles, pois, as coisas da alma e do espírito raramente interessam.
De Collor a Bolsonaro
Vejamos o caso dos nossos líderes recentes. Fernando Collor, por exemplo, nasceu em berço de ouro e teve acesso a tudo do bom e do melhor, mas ficou conhecido por sua proximidade com as estrelas da música sertaneja da época. A versão collorida de sofisticação e sensibilidade era andar de jet ski pelo Lago Paranoá. Seu sucessor, Itamar Franco, também ele oriundo de um lar economicamente privilegiado, deu sua maior contribuição à cultura nacional aparecendo ao lado de uma modelo sem calcinha num desfile de Carnaval qualquer.
Fernando Henrique Cardoso seria (seria) a exceção a confirmar a regra de que os líderes políticos são necessariamente ignorantes. Afinal, ele fala inglês, francês, espanhol, publicou teses e subiu todos os degraus possíveis na escada que leva ao Paraíso Acadêmico. Mas há uma diferença entre sensibilidade e inteligência de verdade e a afetação intelectual que acomete nossos pós-doutores, sobretudo aqueles que se aventuram pelo pantanoso terreno da política.
Lula, por sua vez, popularizou não só o anti-intelectualismo como criou também todo um novo padrão estético que, nos últimos anos, acabou por traduzir o ethos do Brasil 2.0 – e que está em profunda contradição com os valores culturais que fizeram de João Gilberto gênio um dia. Ainda em 1981 Lula dizia que não gostava de ler e, já na Presidência, orgulhava-se da sua ignorância porque ela, aparentemente, o aproximava do povo.
Dilma Rousseff, coitada, tem uma visão tão ideologicamente compartimentada do mundo que a cultura, para ela, é tão-somente um instrumento revolucionário. E Michel Temer, a despeito do livrinho de poesia erótica, é a encarnação do bacharelismo – fungo nocivo que corrói a mente e o espírito de todos aqueles que veem erudição numa mesóclise.
Jair Bolsonaro, que passou trinta anos no Congresso Nacional, trabalhando incansavelmente como deputado, isto é, se elegendo e, no dia seguinte à posse, travando a contínua batalha pela reeleição, não poderia fugir à regra. Simplesmente porque ninguém mantém o poder lendo Fernando Pessoa antes de dormir. Ninguém é capaz de conquistar o voto de cinquenta milhões de pessoas fazendo referências à bossa nova.
Eis a essência do meu argumento aqui: há um bocado de hipocrisia, com um tiquinho de má-fé, nessas pessoas que exigem sensibilidade artística de líderes políticos, sejam eles Fernando Henrique Cardoso, Lula ou Bolsonaro. Porque a vida dessas pessoas gira em torno de valores contrários ao fazer artístico. O belo não lhes rende votos; o sofisticado passa a impressão de arrogância (o que não lhes rende votos); o sensível, de fragilidade (idem).
E a inteligência, no sentido mais abrangente do termo, simplesmente impediria que eles entrassem para o mundo político.
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