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Um livro que está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras promete demonstrar que o “instinto materno” é um “mito”, com a autoridade da “neurociência” (“O mito do instinto materno: como a neurociência está reescrevendo a história da parentalidade”, 2024). Chelsea Conaboy, a autora, é jornalista e usa sua própria experiência de vida para corroborar a ideia.
Conaboy teria usado “centenas de estudos, entrevistas com especialistas e dados científicos”, e afirma na obra que “nos primeiros meses como mãe, a preocupação era uma espécie de zumbido constante na mente, sempre lá”.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, a autora negou que esteja “tentando desacreditar o amor materno”. O que Conaboy realmente pretende com o livro é lançar dúvida sobre a ideia “de que o instinto materno é algo inato, automático e exclusivamente feminino”.
“A ciência conta uma história bem diferente: o instinto materno é uma ilusão”, afirmou a jornalista. Para ela, “as estudiosas feministas já sabiam e vêm discutindo há muito tempo: esse conceito não vem da ciência, mas de ideias religiosas e morais sobre o que é uma mãe e o que é uma mulher”.
O que é instinto, segundo os biólogos
Preocupados em fazer um contraponto ao que viam como uma onda de exagero da influência biológica sobre o comportamento humano, mas sem jogar a ciência biológica fora, o biólogo Peter Richerson e o antropólogo Robert Boyd publicaram em 2005 o livro “Não são só os genes: como a cultura transformou a evolução humana” (The University of Chicago Press, trad. livre, sem edição no Brasil).
O propósito da obra é demonstrar que, nos seres humanos, cultura e genética são fontes muito entrelaçadas de causas sobre o que somos: a cultura moldou nossa biologia e vice-versa.
É possível que uma das premissas de Chelsea Conaboy seja que, para ser um “instinto”, um comportamento humano deve ser completamente determinado por causas genéticas, ou “inato”. Boyd e Richerson, com base no eminente biólogo Edward O. Wilson, rejeitam essa ideia.
Tudo o que se quer sugerir quando se chama um comportamento humano de instintivo, afirmaram os cientistas, é que há influências biológicas envolvidas. Isso não significa que os instintos seriam “pouco modificados por contingências ambientais ou a cultura”. Os dois especialistas sugeriram que há dois grandes conjuntos de instintos humanos: “predisposições inatas e ‘instintos sociais’. Os primeiros são um conjunto de instintos antigos que compartilhamos com nossos ancestrais primatas. (...) Os últimos são um conjunto de instintos ‘tribais’ que nos permitem interagir de forma cooperativa com um grupo maior e simbolicamente marcado de pessoas, ou tribo”.
O que conta como “instinto materno” — inclusive nas mulheres que não são mães
Os instintos maternos fazem parte principalmente do primeiro grupo, o das predisposições inatas. Evidências para isso podem ser observadas em outras espécies de primatas: nos chimpanzés e outros macacos, são as fêmeas jovens, como as meninas humanas, que preferem “brincar de boneca” — ou seja, demonstram “um maior interesse em bebês”, enquanto os meninos/machos preferem “brincadeiras mais ásperas, com luta”, como colocaram Sonya Kahlenberg (Universidade de Manchester) e Richard Wrangham (Harvard) em um artigo de 2010 da revista Current Biology.
Como dito por Boyd e Richerson, é uma propensão, não uma lei sem exceções. Brincar de boneca é uma preferência de 75% a 80% das meninas, e brincar com carrinhos ou de “lutinha” é uma preferência de 80% dos meninos, como apontou uma revisão de 2020 da revista Archives of Sexual Behavior. Este padrão não é uma surpresa para os biólogos, e corrobora que as mulheres apresentam instintos maternos já na infância, muito antes de se tornarem mães.
Quando Chelsea Conaboy confessa que, ao se tornar mãe, sentiu preocupação pelo filho “como um zumbido constante na mente”, o que ela está descrevendo é nada menos que o instinto materno em ação — do tipo que é mais maleável ao ambiente, que no caso inclui sua decisão de ter filhos. Suas várias referências falharam em mostrar a ela que já existe entre os pensadores da biologia um entendimento sofisticado de instinto que não exclui a participação do ambiente, ou sequer da cultura, enquanto reconhece a influência dos genes.
De fato, a tendência materna a se preocupar (demais) com sua prole é quase um exemplo perfeito de instinto materno. “Uma mãe jovem e tímida”, escreveu Charles Darwin em 1871, “exortada pelo instinto materno, sem a menor hesitação correrá o maior risco por seu próprio filho”. Como ocorre em quase todo fenômeno biológico, isso é variável entre mães e dependente de contexto, mas o padrão geral corrobora a importância das emoções maternas para a sobrevivência e a reprodução.
Outras tentativas de negar a ciência da diferença dos sexos terminaram mal
Influenciada por um claro viés político no Ocidente, parte da divulgação científica tem com frequência insistido que as diferenças entre sexos são ou ilusões ou criações artificiais da cultura, sem participação importante da biologia.
Em 2015, um grande alarde na imprensa foi feito com um artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences pela equipe da pesquisadora israelense Daphna Joel. O artigo alegava que homens e mulheres são mais intercambiáveis que distintos no cérebro, e partilhariam de um “cérebro mosaico”, ou seja, com uma mistura de regiões mais típicas de um sexo ou outro.
O que essa cobertura ignorou foi que, na mesma edição da revista, foram publicadas respostas que desafiavam essa conclusão de Joel, como uma réplica que, usando os mesmos dados, adivinhou o sexo dos participantes do estudo por suas características cerebrais com precisão entre 70% e 80%.
O primeiro autor dessa resposta, o pesquisador Marco Del Giudice (Universidade do Novo México), tem mostrado em seu trabalho que somente 10% dos homens e mulheres são indistinguíveis em sua personalidade. A maioria segue padrões típicos para seu sexo, e o que é típico para o sexo feminino é vantagem em características psicológicas como “sensibilidade” e “cordialidade” que, se não são instintos maternos em si mesmas, participam de comportamentos que são.
Por que outros especialistas e divulgadores, especialmente aqueles com convicções progressistas, insistem que mulheres e homens são seres idênticos, ou menos distintos do que aceita o senso comum? A resposta pode estar em um erro denunciado pela filósofa da biologia Helena Cronin (London School of Economics): “a confusão entre igualdade e mesmice”. Consiste em pensar que, se homens e mulheres são iguais em direitos, devem ser iguais também em sua natureza íntima. Para a pensadora, “é um erro fácil demais de cometer se o seu ponto de partida é que os sexos são ‘na verdade’ os mesmos e que as diferenças são meros resultados da socialização sexista”.
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