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A obra de Giorgio Agamben e como a nossa democracia se transformou em um estado de exceção 

O filósofo italiano Giorgio Agamben | Reprodução
O filósofo italiano Giorgio Agamben (Foto: )

“Cristo diz: o mundo vai partindo, o mundo está velho, o mundo sucumbe, o mundo provecto respira ofegante, mas não tenha medo: tua juventude há de se renovar como uma águia”. 

Santo Agostinho, Sermão 81. 

Para entendermos corretamente a obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em 1942, e seus conceitos extremamente polêmicos – como os do “homo sacer”, “estado de exceção” e sua definição inusitada do que seria o poder –, sempre mal utilizados por uma esquerda que dá a impressão de ser culta e letrada, mas que não passa de beletrista ao extremo, é fundamental mergulharmos na experiência radical que Santo Agostinho teve quando proferiu o famoso “sermão sobre a queda de Roma”.

Esta expressão é também o título de um livro escrito pelo francês Jerome Ferrari que, por coincidência, é um filhote do ano de 1968. Sua estreia na literatura foi publicada em 2012 e foi agraciada com o prêmio Goncourt, a honraria máxima da literatura francesa. Trata-se de um romance de questionamento metafísico, inserido na tradição de Albert Camus, no qual percebe-se claras influências de ‘O Estrangeiro’ nele, especialmente no modo como Ferrari descreve a luz ofuscante que incide no cenário da trama – no caso, uma província localizada na ilha da Córsega, justamente o mesmo lugar onde nasceu Napoleão Bonaparte.

O tema principal do sermão agostiniano e da narrativa contemporânea é a impermanência das coisas deste mundo, o triste fato de que tudo é transitório.

Ferrari narra esta história por meio de dois personagens: o ancião Marcel Antonetti, sobrevivente de duas Guerras — a primeira foi a Segunda Guerra Mundial e a segunda foi a da Argélia, ao trabalhar como administrador burocrático —, e o seu neto, Matthieu, que, nos anos 2000, decide com seu amigo, Libero, abrir um bar na Córsega, no exato lugar onde seu avô nasceu. Marcel testemunha o adeus do mundo que conhecia, junto com uma aguda consciência do seu próprio fim; e o neto mal percebe que, apesar da sua “utopia de fanfarrão”, o seu próprio mundo também se despedirá, porém de uma maneira muito mais violenta.

Obviamente, o título do romance de Ferrari se origina a partir do famoso Sermão 81 de Santo Agostinho, o bispo de Hipona (354-430 d.C.) que, ao ser informado da invasão feita pelo “bárbaro” Alarico no território de Roma durante o ano de 410 d. C., proferiu esta brilhante peça de retórica e exortação cristã sob o peso da responsabilidade histórica que carregava sobre seus ombros.

Isto foi algo benéfico para a História ocidental, pois, graças a este mesmo peso, ele decidiu escrever ‘A cidade de Deus’, o grande tratado teológico-político que formata a psique coletiva das nossas mentes desde então. Assim como o livro de Ferrari, o Sermão 81 é sobre a despedida de um mundo, um mundo o qual hesitamos de admitir que também é o nosso — e, portanto, não queremos reconhecer que somos nós aqueles que lentamente desapareceremos, pois somos responsáveis pela nossa própria derrocada, como Agostinho articula com uma lucidez implacável:

“Falemos agora dos escândalos de que está cheio o mundo, da maneira como se propagam os escândalos e abunda o sofrimento. O mundo está devastado, esmagado como que num lagar. Vamos, cristãos, raça celestial, peregrinos nesta terra que procurais a vossa cidade no céu, que ansiais por vos juntardes aos santos anjos, compreendei que vós viestes a este mundo para partir. [...] 

Vós passais pelo mundo, lutando por aquele que criou o mundo. Não vos deixeis perturbar pelos que amam o mundo, os que querem ficar no mundo, mas, queiram ou não queiram, não vos seduzam. Estes sofrimentos não são escândalos. Sede justos, e eles serão antes provações [...]. 

Ora, dizem por aí que foi nestes tempos cristãos que Roma caiu. Mas talvez Roma não tenha caído. Talvez tenha sido castigada em vez de aniquilada, talvez emendada em vez de destruída. Talvez Roma não morra, se os romanos não morrerem. E na verdade não morrerão, se louvarem a Deus. Morrerão, sim, se O blasfemarem. Pois que é Roma senão os Romanos? Não se trata aqui de pedras, ou de traves, de grandes edifícios ou de extensas muralhas. Tudo isto fora construído de modo que um dia haveria de ruir. Quando o homem construiu, colocou pedra sobre pedra, quando destruiu, derrubou pedra após pedra. O homem fez, o homem desfez. [...] 

Pois tanto o mundo, que Deus criou para ti, há-de findar um dia, como a ti próprio, Deus te criou para um dia morreres. Até mesmo o homem, ornamento da cidade, o próprio homem que nela habita, que a rege e governa, veio para partir, nasceu para morrer, entrou para por ela passar. O Céu e a Terra passarão. Porque nos havemos de admirar se a cidade um dia chegar ao fim? Talvez não seja agora o fim da cidade, mas ele virá um dia, seguramente”. 

Agostinho aceita de que o fim de tudo (e de todos nós) está próximo, mas isto não implica que enfim teremos algum sossego.

Muito pelo contrário: a destruição de Roma confirma a evidência de quem vive neste mundo se encontra em um permanente exílio, em uma permanente deriva e que o nosso mundo não passa de uma representação mais completa (e complexa) de uma imensa Roma que pode ser destruída conforme a vontade de Deus, em um piscar de olhos.

Contudo era exatamente dessa forma que se pensava — e se imaginava — antes do surgimento daquilo que conhecemos como a modernidade. Agora, com o mundo do pós-moderno e da pós-verdade atingindo também o seu envelhecimento, não é mais a vontade de Deus que importa — e sim o acaso, a necessidade ou, até mesmo, a lei jurídica, talvez a única esperança que restou para regular a nossa desordem moral, conforme lemos nesta descrição de Ferrari dos tormentos de Marcel Antonietti, extraída do seu peculiar romance:

“Marcel está sozinho, e a hora da aposentadoria vem confirmar o que ele talvez tenha sempre sabido, nada aconteceu, as linhas de fuga são círculos secretos, cuja trajetória se fecha inexoravelmente e que o levam de volta ao detestável lugarejo da sua infância, com uma valise e, dentro da valise, sobre as roupas de lã e de linho, uma velha foto, tirada no verão de 1918, que fixou no sal de prata, ao lado da mãe e dos irmãos e irmãs, o rosto enigmático da ausência. O tempo agora é pesado, quase imóvel. À noite, Marcel passa sua velhice de um cômodo a outro da casa vazia, em busca da jovem mulher burra e sorridente que ele não se consola de ter perdido, mas encontra apenas o pai, que o espera em pé na cozinha. Nenhum som jamais escapa a seus lábios esbranquiçados, e ele observa o filho caçula através dos cílios queimados, ele o observa como para censurar tantos encontros malogrados com mundos que não existem mais, e Marcel se abate sob o peso da reprovação, sabe que ninguém renovará sua juventude e não o deseja, pois de nada serviria. Agora que conduziu os seus de volta à terra, um depois do outro, a missão extenuante que cumpriu há de caber a outro, e ele espera que sua saúde sempre vacilante e inalterável seja afinal vencida, pois agora, na ordem fixada pelo registro civil, chegou sua vez de avançar sozinho para o túmulo”. 

Homem sagrado

E o que fazer quando nem o “registro civil” pode nos dar esta segurança, e nem a lei garante o mínimo de ordem, porque ela própria se tornou a fonte e a origem de toda a desordem? O motivo de Marcel Antonietti viver em extrema tensão existencial durante boa parte do tempo se deve ao fato de mal saber que sua vida se passa naquilo que Giorgio Agamben chama de “estado de exceção”.

Influenciado por Michel Foucault (ao procurar fazer a “arqueologia” de conceitos filosóficos que sempre escondem os seus “arcanos”, os segredos de um poder que nos domina), Hannah Arendt (ao analisar o totalitarismo e a banalidade do Mal nascidos de regimes aparentemente democráticos) e Carl Schmitt (ao basear-se no conceito de “homo sacer” [homem sagrado] no questionamento sobre qual é a verdadeira soberania da lei), o filósofo italiano quer revelar a existência de um espaço indeterminado — o limiar — entre o que é a vida biológica (bios) e o que ele chama de “vida nua” (zöe), a qual seria comum a todos os outros animais e despida de quaisquer garantias de segurança ou sobrevivência.

Segundo ele, inspirado nas ideias de Schmitt, a soberania da lei é sempre determinada por outra soberania, que está fora do ordenamento jurídico. Portanto, para que a lei tenha eficácia, o soberano só pode ter a sua existência além dela – e é neste limiar que ocorre também o fato de que ele é um homo sacer, um homem sagrado que, devido a esta condição especial, jamais pode ser sacrificado; contudo, se isto acontecer, quem o fizer também não poderá ser punido.

Eis aqui o princípio do “Estado de Exceção”, desenvolvido por Agamben durante mais de vinte anos, no ciclo de livros denominado ‘Homo Sacer’, composto por nove tomos, publicados entre os anos 1995 e 2015 e sem nenhuma preocupação de seguir uma ordem cronológica de raciocínio (a saber, são eles: ‘Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua’; ‘O que resta de Auschwitz’; ‘Estado de Exceção’; ‘O reino e a glória’; ‘O sacramento da linguagem’; ‘Altíssima Pobreza’; ‘Opus Dei – Arqueologia do ofício’; ‘Stasis’; e ‘O Uso dos Corpos’).

É por causa dessa forma assistemática que o italiano consegue articular este estranho axioma que rege a vida moderna nas sombras, no qual a necessidade das circunstâncias impõe a força dessa exceção à justiça das leis, dando motivos aparentemente razoáveis para, por exemplo, a prática do assassinato justificado, de acordo com o ponto de vista daquele que administra essas mesmas leis.

Contudo, quando acontecerá o fim dessas mesmas necessidades circunstanciais?

Se o poder soberano é quem determina isso — e ele mesmo pode ser um homo sacer, insacrificável e não vingado, não responsabilizado e sempre no limiar dos dois tipos de vida —, portanto a necessidade pode ser permanente e, dessa maneira, o instituto jurídico do homo sacer se estenderá a todos os outros cidadãos que estão sob a vigência desta mesma lei.

Para Agamben, o principal dispositivo jurídico do mundo moderno é a ampliação do “estado de exceção” por todo o globo terrestre, transformando a quem quiser viver nele em um potencial homo sacer.

Este dispositivo sempre está disfarçado de (ou é falsamente protegido pelas) instituições democráticas, nas quais a nova lei não é mais o ordenamento jurídico tal como conhecemos, mas sim um lugar que parece ser o nosso mundo, quando, na verdade, tudo não passa de um grande símbolo que nos remete aos campos de concentração nazistas e comunistas, onde finalmente a bios se transforma em zoe, em que a vida biológica se despe de tudo o que supúnhamos entender e torna-se somente a vida nua.

Aqui, a lei, se não destrói mais o corpo nos nossos dias (e como se fazia nos tempos de Auschwitz), faz de tudo para criar um ambiente de “servidão voluntária” que força o homem a ser tão somente uma “mente servil”, conforme a descrição angustiante que Jerome Ferrari faz deste tipo de comportamento em seu romance, ao conectar a vida interior de Libero com as suas leituras do Sermão 81 de Santo Agostinho:

“Libero lia os quatro sermões sobre a queda de Roma com a sensação de cumprir um ato de alta resistência, lia A cidade de Deus, mas, à medida que os dias iam ficando mais curtos, suas últimas esperanças se diluíram na bruma chuvosa que pesava sobre as calçadas úmidas. Tudo era triste e sujo, nada estava inscrito no céu senão promessas de tempestade ou chuva fina, e os resistentes afinal eram tão odiosos quanto os vencedores, não eram patifes, mas eram risíveis ou fracassados, a começar por ele, todos treinados para produzir dissertações e comentários tão inúteis como irrepreensíveis, pois o mundo talvez precisasse ainda de Santo Agostinho ou de Leibniz, mas certamente não tinha o que fazer com seus miseráveis exegetas, e Libero vivia agora tomado de desprezo por si mesmo, por todos os professores, tanto os escribas como os filisteus, sem distinção, a começar por Judith Haller, e criticava Matthieu por continuar a vê-la, ela que oscilava o tempo todo entre a burrice e o pedantismo, e nada escapava a suas efusões de desprezo, nem mesmo Santo Agostinho, que ele já não suportava mais, agora que tinha a certeza de entendê-lo melhor do que nunca. Já não via nele mais que um bárbaro inculto que se comprazia com o fim do Império, o qual marcaria o advento do reino dos medíocres e dos escravos triunfantes a que ele mesmo pertencia, seus sermões transpiravam um deleite revanchista e perverso o mundo antigo dos deuses e dos poetas desfazia-se sob seus olhos, submerso pelo cristianismo, com sua coorte repugnante de ascetas e mártires, e Santo Agostinho dissimulava o júbilo sob tons hipócritas de sabedoria e de compaixão, como é de praxe entre os padres. Libero concluiu a dissertação como pôde, num tal estado de esgotamento moral que a mera ideia de seguir adiante com os estudos tornara-se impraticável”. 

Mente servil e tutela moral

“A mente servil” é uma expressão surgida do título do último livro de Kenneth Minogue (1930-2013), lançado no final de 2010 como o derradeiro testamento deste estupendo cientista político australiano, autor de clássicos como ‘The Liberal Mind’ (1963) e ‘Alien Powers – The Pure Theory of Ideology’ (1985). O subtítulo de ‘The Servile Mind’ explica tudo: “Como a democracia corrói a vida moral” — que é justamente o processo de embotamento espiritual de Libero e também de Matthieu Antonetti em ‘O Sermão Sobre a Queda de Roma’.

Para Minogue, o Ocidente (composto pela Europa, pelos Estados Unidos e o restante do continente americano) se caracteriza justamente pelo fato de que dá ao ser humano uma “vida moral”, mais especificamente uma vida interior que lhe permite ter a chance de escolher entre as paixões que o dominam por completo e as virtudes que o edificam como uma personalidade autônoma e individual. Esta “vida interior” depende de uma certa hierarquia de valores, de uma “gradação” a qual faça o homem verificar que existe um “certo” e um “errado” objetivos e os quais depende apenas dele escolher entre esses dois polos.

Minogue afirma que a democracia, com sua obsessão pela igualdade — uma intuição extraída diretamente de Alexis de Tocqueville em seu ‘A Democracia na América’ (1835/1840) —, amputa esta noção de hierarquia e, consequentemente, a própria possibilidade de escolha que seria o fundamento da “vida moral”.

Aqui temos então um paradoxo: a democracia reconhece que o cidadão não consegue mais escolher entre o certo e o errado; logo, para ajudá-lo a conquistar a sua liberdade — fruto da igualdade dada como direito absoluto —, ela decide promulgar leis que o orientarão no modo como trilhará este difícil caminho.

Ou seja: a intenção primeira da democracia é tutelar o cidadão. Porém, justamente por causa dessa tutela, o cidadão perde ainda mais a noção de uma “vida moral” e torna-se voluntariamente uma “mente servil”, para assim não prejudicar o regime de lei democrática e, sobretudo, a si próprio. Com isso, ao não saber mais fazer a escolha correta e objetiva entre o certo e o errado, o governo democrático se vê na obrigação de criar mais leis para que o cidadão consiga praticar tal decisão no seu cotidiano.

Na verdade, esta “instrumentalização da natureza humana” é uma camuflagem para aquilo que podemos chamar de totalitarismo “softcore”, a ditadura de camisinha, na qual a democracia sufoca o ser humano por meio de carinhos, elogios e afagos — e depois cobra o seu preço sem misericórdia.

Como se procurasse uma nova forma de se auto-destruir, o cidadão decide perder a consciência do que realmente existe na sua vida, em especial a noção da virtude e da grandeza moral, e assim como Libero, Matthieu e Marcel Antonetti, abandona a sua liberdade interior em função de uma aparente liberdade exterior que o aprisiona cada vez mais nas prisões da sua psique.

Unindo aqui as ideias de Giorgio Agamben com as de Kenneth Minogue (aparentemente antípodas), além das reflexões dramáticas articuladas por Santo Agostinho e Jerome Ferrari, não seria um exagero afirmarmos que nós somos, sim senhor, os criadores do nosso próprio “estado de exceção”. Sim, nós somos os nossos próprios carrascos nazistas e comunistas. Sim, nós provocamos a queda das nossas pequeninas Romas.

Mas a admissão destas conclusões trágicas implica, por sua vez, em outra pergunta impertinente: se assumirmos que somos as mentes servis deste tempo e que não temos como escapar dos nossos respectivos “estados de exceção”, será que fazer nada, sabendo que seremos massacrados na nossa “vida nua” pelo poder burocrático organizado – isso não aumentaria ainda mais a nossa servidão?

Campo de concentração apocalíptico

Se levarmos às últimas consequências a afirmação categórica de Giorgio Agamben de que todo o globo terrestre é um gigantesco “estado de exceção”, de que vivemos em um campo de concentração apocalíptico e que todos nós somos homo sacers em potencial, então entraremos naquele perigo do quietismo político que o filósofo britânico Michael Oakeshott já nos avisou que seria como uma das “nêmesis” da prudência do ceticismo diante do poder. O italiano parece se esquecer que, além da vida biológica e da vida nua, há também a “vida moral” da qual Kenneth Minogue é um dos seus defensores.

De acordo com o autor de ‘The Servile Mind’, o fundamento dessa vida moral, além da hierarquia de valores, é a ambivalência que temos de ter quando harmonizamos os princípios da realidade e as circunstâncias concretas históricas – aquilo que Aristóteles chamava de sinderesis, a prudência prática.

É esta mesma ambivalência que tanto a democracia igualitária como o perpétuo “estado de exceção” querem destruir com suas leis abstratas, sem nenhum apoio de uma verdadeira justiça. Ao mesmo tempo, Minogue afirma que, se quisermos rever a nossa vida moral, teremos de recuperar — ou até mesmo restaurar — a noção da nossa liberdade interior, que nunca será um direito dado e escrito em um pedaço de papel travestido de lei, e sim uma conquista a qual se demora vários anos para ser realizada a contento.

Giorgio Agamben elucida este impasse explicitado por Minogue em um outro livro memorável seu, ‘O reino e a glória’ (2011), no qual ele analisa as implicações do termo oikonomia (economia), tanto nos aspectos técnicos como teológicos. Sua conclusão é igualmente surpreendente: a “disposição das coisas deste mundo”, a sua economia interna, que a “máquina governamental” tenta impor à população global — e da qual o “estado de exceção” seria uma das suas expressões mais recentes e radicais — é a forma como a “glória de Deus” (kabod em hebraico) conseguiu se exteriorizar e que, se acontecesse de outra maneira, seria incapaz de ser exprimida ou até mesmo compreendida.

Tendo isso em nossas mentes, não à toa que, no sermão que deu sobre a queda de Roma, Santo Agostinho afirmou que, com o fim do seu mundo, só a glória divina pode nos sustentar. Mas será que isto é uma realidade de fato? Agamben explica que, entre a oikonomia divina e a humana a qual tenta imitá-la, há um espaço vazio, um limiar, que é o próprio espaço onde se localiza o centro desta glória sempre procurada por todos nós.

Descobre-se então que o centro desta glória é nada mais, nada menos que a zoe aiônios, a vida eterna, onde coincide a vida biológica (bios) e a vida nua (zoe) que antes estavam divididas por causa da “máquina governamental” que tomou conta do globo terrestre.

Para Agamben, a política (e, consequentemente, o estudo do seu objeto principal, o poder) deseja agarrar o arcano maior desta glória, o seu segredo principal, o seu centro indizível — no caso, a imortalidade a qual todos nós aspiramos.

Mentalidade coletivista

Esta nova vontade de poder (libido dominandi) é a principal força em um planeta onde o “estado de exceção” se tornou a regra maior e a “mente servil” é a única consciência individual possível — e cujo fim último é ter o domínio deste centro secreto glorioso que, afinal de contas, quem o possuir terá mais do que ter o poder em si.

Na verdade, esse sujeito será o próprio ‘Senhor do Mundo’, tal como o romance escrito pelo inglês Robert Hugh Benson (1871-1914), filho de um arcebispo anglicano, convertido ao Catolicismo. Depois de ter sido ordenado padre em 1904, publicou, em 1906, este romance que fala sobre o fim de um mundo — e que se conecta de forma misteriosa com as meditações de Santo Agostinho, Jerome Ferrari, Giorgio Agamben e Kenneth Minogue.

Contudo, para isso ocorrer a contento, Benson cria um mundo alternativo, algo que o aproxima do gênero da ficção científica, mesmo que lide com assuntos que vão além dela. Também teve uma carreira literária profícua — escreveu outros romances e vários contos que envolviam o sobrenatural — ao mesmo tempo em que ficava apreensivo com as mudanças da sociedade inglesa onde vivia, em especial as que iriam culminar na Primeira Guerra Mundial, ocorrida justo no ano de seu falecimento.

A trama de ‘O Senhor do Mundo’ se passa em uma Europa que já está completamente dominada pela ideia de mentalidade coletivista e onde a Inglaterra é liderada por políticos socialistas que defendem claramente a eutanásia como meio de deixar a sociedade mais produtiva, deixando a religião em segundo plano (em especial, a Igreja Católica), preferindo sociedades maçônicas como as instituições que governam a comunidade pelas sombras.

O povo não tem mais noção do que seria ter um sentido para a sua existência coletiva ou individual. Esta situação é representada, no romance, por três personagens: o parlamentar Oliver Brand, fervoroso defensor da ideologia socialista; sua esposa Mabel, que enfrenta uma angustiada crise de fé depois que sua mãe falece; e o padre Percy Franklin, que vê o Cristianismo em geral se tornar cada vez mais irrelevante na sociedade onde vive, em que os padres perdem a noção das suas vocações espirituais e o fiel abandona a Igreja em favor de uma estabilidade material que o governo sempre oferece e cumpre.

Esses três personagens, contudo, não são os centrais para a narrativa de Hugh Benson. O verdadeiro personagem do romance é um sujeito misterioso chamado Julian Felsenburgh (o nome é uma alusão óbvia ao imperador romano Juliano, também conhecido pelo apelido “O Apóstata”, devido à sua incansável perseguição contra os cristãos). Ele é apenas um nome, e nada mais. Ninguém sabe de onde veio, como surgiu, o que deseja. As informações sobre sua pessoa são sempre desconexas, desencontradas. Até mesmo ninguém sabe como é sua aparência: quando o descrevem, é sempre como se estivesse envolto em uma aura resplandecente, um halo, que guarda o seu rosto e permite apenas que as pessoas vejam o seu longo cabelo, cuja inusitada mancha branca indicaria uma espécie de sabedoria além deste mundo (em um detalhe prenhe de sarcasmo, Hugh Benson faz que o padre Percy tenha a mesma mancha branca no seu cabelo, indicando que ele e Julian são duplos que lutarão pela existência deste mundo).

Felsenburgh é visto como o Novo Messias, aquele que finalmente cumprirá a “Segunda Vinda” prevista no Livro do Apocalipse. Nesse ponto, o livro de Hugh Benson não deixa de ser uma interessante antecipação ao poema de W. B. Yeats intitulado com esta mesma expressão escatológica, publicado em 1919, quinze anos após o lançamento de ‘O Senhor do Mundo’, no qual vislumbramos a chegada de “um vulto de leão com rosto de homem”, dono de um “olhar vago, impiedoso como o sol”, que, com suas “lentas coxas move, tendo em torno/ Sombras de iradas aves do deserto”, semelhante a uma “besta bruta, de hora enfim chegada” e que “rasteja até Belém para nascer”.

Tanto no poema de Yeats como no livro de Hugh Benson, há a expectativa da chegada de uma espécie de Besta do Apocalipse, de um Anticristo que, no caso, resolverá os temores da humanidade rumo a um governo mundial, ecumênico, que unificará não só as religiões do mundo como também resolverá os paradoxos da condição humana por meio da crença de um progresso tecnológico irrefreável.

Por coincidência, é a mesma situação descrita pelo filósofo Vladimir Soloviev (1853-1900) no seu pequeno, mas poderoso livro ‘Breve relato sobre o Anticristo’ (1899), em que há assustadoras semelhanças entre o personagem de Soloviev — um guru religioso que se opõe ao Papa romano e à Igreja Ortodoxa russa numa espécie de religião política que hipnotiza toda a sociedade —, e o Julian Felsenburgh de Hugh Benson. Não é por acaso que Soloviev teria uma grande influência sobre Fiodor Dostoievski no famoso episódio do Grande Inquisidor, central para a compreensão do épico ‘Os irmãos Karamazov’.

Sem dúvida, Felsenburgh tem muito do Anticristo de Soloviev, mas o fascínio que ele provoca em personagens como Oliver e Mabel Brand é semelhante com a atração provocada pelo Grande Inquisidor por quem leva as suas ideias às últimas consequências. É um feitiço que provoca, como afirma os versos do poema de Yeats, a falta nos melhores, pois “os piores se enchem de intensidade apaixonada”.

Uma das grandes estratégias que Hugh Benson cria para aumentar a tensão no seu romance é o fato de que ele nunca apresenta Felsenburgh diretamente. Este personagem é sempre visto de maneira oblíqua, de forma indireta. Não conseguimos compreendê-lo porque ninguém consegue apreendê-lo com seus próprios olhos. Além de ser um hábil recurso narrativo, mostra também que Hugh Benson teve a mesma intuição profunda de Giorgio Agamben sobre os mecanismos simbólicos que alimentam o poder.

Rosto enigmático da ausência

Na conclusão de ‘O reino e a glória’, afirma-se que este vazio localizado no centro da glória de Deus (kabod) revela uma “inoperosidade” na “máquina governamental” que, como já sabemos, tenta imitar a “máquina providencial” em todos os seus detalhes. É esta mesma “inoperosidade” que alimenta e nutre o poder – e ela é tão essencial para a manutenção da sua lógica plena de paradoxos que deve ser mantida a qualquer custo.

Para sustentá-la, deve criar-se um símbolo que preencha esta imagem, de forma antinômica – e este símbolo é a imagem do “trono vazio” (em grego: hetoimasia tou thronou). Este símbolo atinge sua máxima intensidade no seguinte trecho do Apocalipse, em que a glória de Deus (kabod) é descrita com todos os poderes de expressão que a linguagem é capaz de ter, sempre tendo como centro desta descrição a imagem do trono (Ap. 4:1-11):

Depois destas coisas, olhei, e eis que estava uma porta aberta no céu, e a primeira voz que ouvira, voz como de trombeta, falando comigo, disse: Sobe aqui, e mostrar-te-ei as coisas que depois destas devem acontecer. 

Imediatamente fui arrebatado em espírito, e eis que um trono estava posto no céu, e um assentado sobre o trono; 

e aquele que estava assentado era, na aparência, semelhante a uma pedra de jaspe e sárdio; e havia ao redor do trono um arco-íris semelhante, na aparência, à esmeralda. 

Havia também ao redor do trono vinte e quatro tronos; e sobre os tronos vi assentados vinte e quatro anciãos, vestidos de branco, que tinham nas suas cabeças coroas de ouro. 

E do trono saíam relâmpagos, e vozes, e trovões; e diante do trono ardiam sete lâmpadas de fogo, as quais são os sete espíritos de Deus; 

também havia diante do trono como que um mar de vidro, semelhante ao cristal; e ao redor do trono, um ao meio de cada lado, quatro seres viventes cheios de olhos por diante e por detrás; 

e o primeiro ser era semelhante a um leão; o segundo ser, semelhante a um touro; tinha o terceiro ser o rosto como de homem; e o quarto ser era semelhante a uma águia voando. 

Os quatro seres viventes tinham, cada um, seis asas, e ao redor e por dentro estavam cheios de olhos; e não têm descanso nem de noite, dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, e que é, e que há de vir. 

E, sempre que os seres viventes davam glória e honra e ações de graças ao que estava assentado sobre o trono, ao que vive pelos séculos dos séculos, 

os vinte e quatro anciãos prostravam-se diante do que estava assentado sobre o trono, e adoravam ao que vive pelos séculos dos séculos; e lançavam as suas coroas diante do trono, dizendo: 

Digno és, Senhor nosso e Deus nosso, de receber a glória e a honra e o poder; porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade existiram e foram criadas. 

Segundo Agamben, o trono da glória está pronto desde sempre e desde sempre espera a glória do Senhor. “Segundo o judaísmo rabínico”, escreve, “o trono da glória é, como vimos, uma das sete coisas que YHWH criou antes da criação do mundo. No mesmo sentido, na teologia cristã o trono está pronto desde a eternidade, porque a glória de Deus é coeterna com ele. Portanto, o trono vazio não é um símbolo da realeza, mas da glória. A glória precede a criação do mundo e sobrevive ao seu fim. E o trono está vazio não só porque a glória, mesmo coincidindo com a essência divina, não se identifica com ela, mas também porque ela é, em seu íntimo, inoperosidade”. O vazio – e o rosto enigmático da ausência – são a figura soberana da glória (kabod).

O vazio que Hugh Benson descreve no halo que circunda Julian Felsenburgh no seu romance O Senhor do Mundo é o vazio o qual é também a essência do poder – mas é também o vazio que consome a Roma decadente de Santo Agostinho, o “estado de exceção” de Agamben, a Europa de Jerome Ferrari e a democracia corrompida de Kenneth Minogue.

Todos convergem para um rosto enigmático da ausência que ainda nos instiga a procurar por algum sentido. Por isso, este Anticristo moderno nunca é descrito diretamente. Como o próprio título do romance sugere, ele se tornará nada mais, nada menos que o “Senhor do Mundo”, o homem que unirá a humanidade em um Estado Global, em uma nova religião política que só nos dá duas alternativas: ou a permanência deste mundo em uma utopia perpétua ou a sua destruição que também nos levará à morte definitiva das civilizações. Para Hugh Benson, só existe a última opção, na confirmação daquele famoso adágio: sic transit gloria mundi — assim passa a glória do mundo.

Eis aqui a razão principal pela qual as civilizações morrem, pois, como se fosse o “novo tempo do mundo”, nessas épocas repletas de pensamentos apocalípticos como a nossa, vários pensadores e cientistas decretaram o fim de inúmeras coisas: o fim da história, o fim do romance, o fim da ciência, o fim das ideologias, o fim da política, até mesmo o fim do mundo apesar deste continuar aqui a todo vapor.

E os motivos são inúmeros: são os germes, é a economia, é a política governamental, a pura incompetência humana, a destruição da linguagem, o excesso de programas de TV, os videogames, a pornografia, o cinema, etc. Tanto a esquerda como a direita esquecem-se que as civilizações morrem por um motivo mais complexo e também mais simples: elas morrem porque perderam a substância religiosa que as animavam.

Esta é a ideia do escritor David P. Goldman, conhecido nos meios republicanos americanos como Spengler – uma homenagem ao famoso autor alemão de ‘A Decadência do Ocidente (1918-1923)’.

Em seu livro ‘How Civilizations Die’ (2012), Goldman também se baseia nas ideias do filósofo judeu e alemão Franz Rosenzweig que, no seu tratado chamado ‘A Estrela da Redenção’, publicado postumamente após a morte do autor, mas escrito durante a Primeira Guerra Mundial, argumenta que a civilização (em especial, o Ocidente) seria determinado pela aceitação ou recusa das suas três religiões principais: o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo (que Rosenzweig considera como uma pálida imitação do Judaísmo).

Goldman segue o mesmo caminho de raciocínio, mas mostra que é a nossa sociedade quem decidiu pelo equívoco maior, ao estudar as taxas de natividade da Europa e dos EUA, e relacionando-as com o modo como a economia reflete uma opção preferencial pelo desastre ao usar do Estado de Bem-Estar Social como se fosse uma organização religiosa que supre as incertezas existenciais da sociedade.

De acordo com esta perspectiva, as taxas de fertilidade nos EUA e na Europa caíram assustadoramente e o número de idosos aumentou exponencialmente — e tudo isso devido ao fato de que os jovens resolveram abandonar a religião em suas respectivas sociedades, algo refletido na economia e na política dos seus países.

Contudo não pensem que isto não é apenas algo que atinja a sociedade ocidental; Goldman mostra que isso também ocorre com a sociedade muçulmana, onde o Irã tem uma taxa de fertilidade baixíssima (apesar de ser um dos países que mais tem prostitutas por metro quadrado) e onde o resto do Islã se deixou contaminar pelas ideologias ocidentais revolucionárias, como o marxismo e o desconstrucionismo, perdendo o seu caráter tradicional e tendo somente a solução de uma jihad radical, numa espécie de suicídio coletivo que fere tanto quem está vivo como quem irá nascer.

Por outro lado, o judaísmo, para Goldman, também não está isento dos seus problemas, mas eles são poucos. De todos os países do Oriente Médio, Israel mantem um constante crescimento de sua taxa de fertilidade e o mesmo pode ser visto nos EUA em algumas localidades onde as comunidades religiosas mantêm a sua importância na vida em sociedade.

David P. Goldman explica com mais clareza algo que Giorgio Agamben ainda não conseguiu compreender na sua análise deste mundo em busca por um rosto enigmático que represente adequadamente a ausência de uma divindade. Trata-se da amargurada constatação de que as civilizações morrem porque elas perderam a noção do transcendente, da religião que envolve a sociedade em um relacionamento pessoal com um Deus vivo.

Quando não se tem mais a noção disso, as opções são as religiões políticas, como as ideologias revolucionárias (nazismo, comunismo) ou as utopias inatingíveis, como o sonho do Estado Universal, que infecta a facção do partido democrata dos EUA e a União Europeia, ou o populismo conservador de um Donald Trump, transplantado agora em cores tupiniquins com a eleição de Jair Bolsonaro.

É claro que, se o leitor não achar isso o suficiente, há sempre a conversão ao Islã Radical, amante de uma jihad, a guerra santa que deveria acontecer no coração do fiel, mas, devido ao encontro com as ideologias revolucionárias do Ocidente, prefere a violência transfiguradora do real, abusando de atos de terrorismo que moldam um estado de terror global, criando novos homo sacers.

Ao contrário de Agamben, o diagnóstico desta situação foi descrita com agudeza, sem perder a percepção da nossa ambivalência moral, pelo Papa Bento XVI no famoso e polêmico discurso de Ratisbona, proferido no dia 12 de setembro de 2006, cinco anos depois do atentado contra o World Trade Center, no qual ele argumenta que a principal diferença entre o Islã e o Ocidente era na harmonia entre fé e razão, sendo que o primeiro se caracterizava pela violência à vontade do ser humano, ao seu livre-arbítrio:

“Recentemente li a parte – publicada pelo professor Theodore Khoury (Münster) – do diálogo que o douto imperador bizantino Manuel II Paleólogo teve com um persa erudito sobre cristianismo e islão e sobre a verdade de ambos, talvez durante os acampamentos de inverno no ano de 1391 em Ankara. O diálogo cobre todo o âmbito das estruturas da fé contidas na Bíblia e no Alcorão, detendo-se principalmente sobre a imagem de Deus e do homem mas também – e repetidamente, como era de esperar – sobre a relação entre as três “Leis” ou três “ordens de vida”, como então se designava o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Alcorão. 

No sétimo colóquio (διάλεξις – controvérsia) publicado pelo Prof. Khoury, o imperador aborda o tema da jihād, da guerra santa. O imperador sabia seguramente que, na sura 2, 256, lê-se: “Nenhuma coacção nas coisas de fé”. Esta é provavelmente uma das suras do período inicial – segundo uma parte dos peritos – quando o próprio Maomé se encontrava ainda sem poder e ameaçado. Naturalmente, sobre a guerra santa, o imperador conhecia também as disposições que se foram desenvolvendo posteriormente e se fixaram no Alcorão. Sem se deter em pormenores como a diferença de tratamento entre os que possuem o “Livro” e os “incrédulos”, ele, de modo surpreendentemente brusco – tão brusco que para nós é inaceitável –, dirige-se ao seu interlocutor simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: “Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava”. O imperador, depois de se ter pronunciado de modo tão ríspido, passa a explicar minuciosamente os motivos pelos quais não é razoável a difusão da fé mediante a violência. Esta está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma. Diz ele: “Deus não se compraz com o sangue; não agir segundo a razão – “σὺν λόγω” – é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar corretamente, e não da violência nem da ameaça... Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa...”. 

Nesta argumentação contra a conversão através da violência, a afirmação decisiva está aqui: não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. E o editor, Theodore Khoury, comenta: para o imperador, como bizantino que cresceu na filosofia grega, esta afirmação é evidente; mas não o é para a doutrina muçulmana, porque Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está vinculada a nenhuma das nossas categorias, incluindo a da razoabilidade. 

Aqui gera-se um dilema, na compreensão de Deus e consequentemente na realização concreta da religião, que nos desafia hoje de maneira muito direta: a convicção de que o agir contra a razão estaria em contradição com a natureza de Deus, faz parte apenas do pensamento grego ou é válida sempre e por si mesma? Penso que, neste ponto, se manifesta a profunda concordância entre o que é grego na sua parte melhor e o que é a fé em Deus baseada na Bíblia. Modificando o primeiro versículo do livro do Gênesis, o primeiro versículo de toda a Sagrada Escritura, João iniciou o prólogo do seu Evangelho com estas palavras: “No princípio era o λόγος”. Ora, é precisamente esta a palavra que usa o imperador: Deus age “σὺν λόγω”, com logos. Logos significa conjuntamente razão e palavra – uma razão que é criadora e capaz de se comunicar, mas precisamente enquanto razão. Com este termo, João ofereceu-nos a palavra conclusiva para o conceito bíblico de Deus, uma palavra na qual todos os caminhos, muitas vezes cansativos e sinuosos, da fé bíblica alcançam a sua meta, encontram a sua síntese. No princípio era o logos, e o logos é Deus: diz-nos o evangelista. Este encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não era simples coincidência. Na realidade, há muito tempo que esta aproximação se tinha iniciado. 

Na sarça ardente, o nome misterioso de Deus – que O separa do conjunto das divindades com múltiplos nomes, afirmando d’Ele apenas «Eu sou», o seu ser – apresenta-se, face ao mito, como uma contestação, que está em íntima analogia com a tentativa de Sócrates para vencer e superar precisamente o mito. Ora, o processo iniciado na sarça ardente alcança, no âmbito do Antigo Testamento, uma nova maturidade durante o exílio, quando o Deus de Israel, agora privado da Terra e do culto, se anuncia como o Deus do céu e da terra, apresentando-se com uma fórmula simples que prolonga a frase da sarça: «Eu sou». Em paralelo com este novo conhecimento de Deus, cresce uma espécie de iluminismo que se expressa drasticamente na derisão das divindades como sendo apenas obra das mãos do homem (cf. Sal 115). Assim, durante a época helenista, a fé bíblica – não obstante o desacordo em toda a sua dureza com os soberanos helenistas que queriam obter pela força a sua adequação ao estilo grego de vida e ao seu culto idolátrico –, estava interiormente caminhando ao encontro da parte melhor do pensamento grego até chegar a um contato recíproco que se verificou depois especialmente na literatura sapiencial tardia. Sabemos hoje que a tradução grega do Antigo Testamento realizada em Alexandria – a “Setenta” – é mais do que uma simples (no sentido de avaliar de modo pouco positivo) tradução do texto hebraico: de fato, trata-se de um testemunho textual único no seu gênero e um passo específico e importante da história da Revelação, no qual se realizou de tal forma o referido encontro que acabou por ter um significado decisivo para o nascimento do cristianismo e sua difusão. Trata-se, no fundo, do encontro entre fé e razão, entre iluminismo autêntico e religião. Ora, o imperador Manuel II, verdadeiramente partindo da natureza íntima da fé cristã e, ao mesmo tempo, da natureza do pensamento grego já fundido com a fé, podia dizer: Não agir “com o logos” é contrário à natureza de Deus.” 

A compreensão adequada da experiência religiosa passa não só pela harmonia entre fé e razão, mas também pela compreensão da violência e da irracionalidade humana e, quiçá, metafísica, tal como o vazio da glória percebido de relance por Agamben em sua meditação sobre a natureza do poder. Sem termos uma visão correta do que é o problema do Mal, jamais perceberemos o que é a soberania do Bem.

O filósofo francês da Renascença Jean Bodin afirmava que o primeiro sintoma de que a sociedade está doente é quando ela menospreza a existência do Mal. É o que acontece conosco nos nossos dias. Preferimos nos render aos senhores do mundo e aos estados de exceção que governam as nossas paixões porque não conseguimos suportar que, afinal, não se trata do fim do mundo: trata-se apenas do nosso próprio fim – e não queremos aceitar tal evento. Não agir contra o logos não é apenas agir contra a natureza de Deus, mas sim contra a nossa própria natureza.

E é também querer perder o fundamento que orienta as hierarquias entre o certo e o errado – os alicerces da nossa “vida moral”, como Kenneth Minogue nos ensinou. Perder a fé, desprezar a razão, ou acreditar somente na razão e inflar ainda mais a sua fé, por meio de um racionalismo na política, é o desequilíbrio que danifica a nossa civilização como um todo. O Ocidente pratica suicídio espiritual sem ter a mínima noção das suas consequências. E talvez para salvá-lo temos de ter a assustadora presciência de que só a travessia do Mal, mesmo que aconteça neste estado de exceção comandado por mentes servis, dentro do vazio do poder, nos fará encontrar alguma luz.

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pesquisador pela FGV-EAESP.

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