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História

A pandemia de coronavírus sob uma perspectiva histórica

Seja qual for sua opinião sobre nossos problemas atuais, vamos resolvê-los de uma forma que honre nossos antepassados. (Foto: Biblioteca do Congresso Ameriicano)

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Desde a Grécia e Roma Antiga, ao menos, surtos avassaladores de doenças acometeram a espécie humana. Até pouco tempo, epidemias de cólera, varíola, febre tifoide, febre amarela e gripe eram comuns e, ao longo do século, tiraram juntas a vida de centenas de milhões de seres humanos. Às vezes essas pragas se tornavam desastres conhecidos como pandemias, se espalhando para bem longe do ponto de origem e acometendo boa parte do mundo.

A mais infame e temível dessas doenças talvez tenha sido a peste bubônica, ou Peste Negra, da baixa Idade Média. Surgida na Ásia, onde ela aparentemente matou milhões de pessoas, a doença chegou à Europa em 1348. Nos seis anos seguintes, estima-se que ela tenha matado 25 milhões de europeus, ao menos um terço da população do continente. Nos séculos seguintes, houve até 40 outros surtos menores de peste bubônica na Europa e Ásia.

A América do Norte não ficou imune às doenças do Velho Mundo. Na verdade, os colonos europeus sem saber trouxeram muitas dessas doenças com eles, como a varíola e a gripe para o Novo Mundo nos séculos VII e XVIII. A febre amarela provavelmente chegou às Américas graças ao comércio de escravos e se tornou fonte de epidemias em cidades como Nova York e Nova Orleans. Em 1793, um surto de febre amarela na Filadélfia matou quase 10% da população da cidade e levou o presidente George Washington e o governo federal a fugirem daquela que então era a capital do país.

A pandemias mais mortal na história dos Estados Unidos ocorreu há pouco mais de cem anos, quando a Girpe Espanhola (ela era assim chamada) surgiu misteriosamente e invadiu todos os continentes da Terra. A primeira onda da doença parece ter ocorrido nos Estados Unidos na primavera de 1918, já perto do fim da Primeira Guerra Mundial. Na época, o exército norte-americano estava treinando centenas de milhares de recrutas em mais de 40 acampamentos, antes de enviá-los em navios abarrotados para a zona de batalha na Europa. Na primavera, muitos desses soldados pegaram a gripe e alguns a levaram para a Europa, mas relativamente poucos morreram. Muitos civis também adoeceram, mas a maioria sobreviveu.

Durante algum tempo, no verão de 1918, a pandemia parecia ter perdido força. Mas no fim de agosto — na Europa, no leste dos Estados Unidos e numa parte da África — ela voltou, depois de sofrer uma mutação. Essa segunda onda foi muito mais mortal do que a primeira e se espalhou como um tornado silencioso. Atingindo primeiro marinheiros norte-americanos do porto de Boston, em 27 de agosto, ela entrou no continente. De acordo com a Sociedade Histórica da Nova Inglaterra, em 8 de setembro a gripe espanhola chegou a Camp Devens (a cerca de 65km de Boston), onde havia 50 mil soldados estacionados. Em 23 de setembro, mais de 10.500 deles adoeceram. Em 29 do mesmo mês, eles morriam a uma taxa de 100 por dia.

Ao longo do litoral atlântico e além, a pandemia se espalhava com uma incrível velocidade e violência, acometendo a população civil. Na Filadélfia, onde a doença chegou num navio de turismo em setembro, centenas de trabalhadores do porto se infectaram rapidamente. Apesar desse alerta, o diretor de saúde pública da cidade se recusou a cancelar um desfile organizado para arrecadar dinheiro para o esforço de guerra. Ao menos 200 mil pessoas se reuniram para ver o desfile no dia 28 de setembro. Em uma semana, 45 mil moradores da cidade estavam gripados. Em seis semanas, 12 mil deles morreram, a maior taxa de letalidade de qualquer cidade norte-americana.

Quando a segunda onda da pandemia perdeu força, no começo de 1919, pelo menos 45 mil moradores de Massachusetts tinham sucumbido à doença. Quando a terceira onda da doença acabou, na primavera de 1919, estima-se que entre 500 mil e 675 mil norte-americanos tenham morrido, numa época em que a população dos Estados Unidos era menos de 1/3 da de hoje. No exército, que enviou mais de um milhão de soldados para lutar na Europa na Primeira Guerra Mundial, houve mais mortes por causa da gripe do que por ferimentos de guerra.

Os Estados Unidos não foram o único país a sofrem com a catástrofe. Os historiadores estimam que a Gripe Espanhola tenha matado de 40 a 50 milhões de pessoas no mundo todo (o número talvez chegue a 100 milhões), provavelmente superando a assustadora marca da Peste Negra. Como o vírus atingia sobretudo os jovens adultos, eles morreram em maior número. Acredita-se que até 10% dos jovens de todo o mundo tenham sucumbido à doença. No final das contas, quase 1/3 ou mais da população mundial foi infectada (embora a maioria tenha sobrevivido). A pandemia de gripe de 1918–1919 é considerada “a doença mais mortal na história da Humanidade”.

O que podemos aprender?

O que nós, em meio à nossa própria pandemia, podemos aprender com o que o mundo enfrentou há um século? Como historiador, fico impressionado com as muitas diferenças. Em 1918, a comunidade médica norte-americana não tinha conhecimento nem recursos para combater a nova ameaça. Eles não sabiam o que causava a doença nem como curá-la. Não havia vacina alguma contra gripe. A indústria farmacêutica e a rede de laboratórios médicos que consideramos normais hoje estavam nos estágios iniciais em 1918.

Além disso, a quantidade de médicos e enfermeiras nos Estados Unidos era incrivelmente baixa. Muitos dos mais jovens estavam servindo no exército e em outras organizações na Europa. A falta de médicos civis contribuiu para sobrecarregar o sistema de saúde quando a pandemia atingiu as cidades maiores.

Em 1918, o ambiente de comunicação — tão importante para as medidas de saúde pública — tampouco era semelhante ao nosso. Telefones e carros eram raros, as estações de rádio ainda não existiam e a principal fonte de informação para os cidadãos comuns era o jornal local. Se você queria se comunicar com amigos ou parentes que viviam em outros lugares, tinha apenas um jeito: enviar uma carta. Hoje, claro, vivemos numa época de saturação de notícias e de comunicação instantânea, na qual as manchetes nunca param. Ficamos sabendo de desastres distantes (como uma epidemia na China) com facilidade. O mundo todo se transformou em “nossa vizinhança”. Não era assim em 1918.

Como os Estados Unidos eram muito menos urbanizados e conectados em 1918, a reação do povo à pandemia daquele ano foi muito menos centralizada e coordenada do que estamos vendo em 2020. Ainda que o governo federal tivesse um Serviço de Saúde Pública que dava recomendações e divulgava relatórios, a burocracia federal (exceto pelo Departamento de Guerra e órgãos menores envolvidos no conflito) era minúscula em comparação com a de hoje. Daí porque boa parte da responsabilidade no combate à pandemia recaiu sobre as autoridades municipais, não sobre o Tio Sam.

Na verdade, durante algum tempo em 1918, autoridades de saúde federais e municipais — incluindo o cirurgião-geral dos Estados Unidos — deliberadamente menosprezaram a gravidade da pandemia por medo de afetar o moral de guerra e de levar o povo à histeria. No verão e até mesmo no outono, várias autoridades insistiam que a gripe era apenas uma variação da gripe comum e que “não havia motivo para alarme”, desde que “precauções comuns” fossem tomadas. Hoje ninguém acusaria o sistema de saúde norte-americano de menosprezar o perigo. Ao contrário, o sistema está sendo criticado por usar modelos estatísticos que supostamente exageram a ameaça.

Fechamento da economia

O interessante é que uma das medidas que as autoridades de saúde pública não tentaram em 1918 foi suspendem a atividade econômica como forma do que na época era chamado de “contenção das multidões”. Durante o pior da pandemia, muitas (mas não todas) cidades fecharam escolas, igrejas e locais de diversão, e colocaram os doentes de quarentena. Algumas cidades ordenaram que lojas e outras empresas alterassem o horário de abertura e fechamento para diminuir o movimento do transporte público. E a doença em si temporariamente atrapalhou os negócios, já que muitos trabalhadores doentes estavam incapacitados para o trabalho. Mas, até onde sei, nenhuma autoridade em 1918 propôs o que está sendo feito em 2020: um fechamento deliberado e obrigatório da economia nacional numa escala jamais vista na história.

Por que não? Dois motivos principais. Primeiro, depois que entrou na guerra, em 1917, a administração Wilson deu início a um programa inédito de intervenção na economia norte-americana. Ela nacionalizou ferrovias, passou a controlar a produção e o consumo de alimentos e impôs um regime rígido de regulamentação e de “socialismo de guerra” a fim de mobilizar os recursos para o conflito. Wilson dizia que essas medidas eram essenciais para derrotar as massas e o exército da Alemanha imperial. Para a maioria dos engenheiros e administrações bélicos norte-americanos, ganhar a guerra contra o inimigo humano era fundamental e o surgimento de uma doença virulenta era um problema secundário a ser resolvido localmente, como sempre é o caso.

Além disso, um dos principais objetivos da mobilização de guerra de Wilson era aumentar drasticamente a produção de alimentos, navios, armas e outros produtos de que os Estados Unidos e seus aliados precisavam para vencer. Esvaziar as fábricas e mandar todos ficarem em casa talvez retardasse a pandemia de gripe, mas também faria com que o país perdesse a Primeira Guerra Mundial. Duvido que a ideia de impor um “distanciamento social” tivesse ocorrido a alguém.

O segundo motivo para o governo federal não ter tomado nenhuma medida drástica no biênio 1918–1919 talvez possa ser encontrado nas atitudes e prioridades do comandante-em-chefe do país. Durante os 15 meses em que a gripe espanhola assolou os Estados Unidos, o presidente Woodrow Wilson, apesar de saber da situação, não fez nenhum pronunciamento público. Concentrado em ganhar a guerra e criar uma nova ordem mundial, ele deixou que o exército e outras instituições cuidassem da emergência de saúde pública. Sendo justo com Wilson, temos de notar que em 1918 os norte-americanos não consideravam o presidente alguém que tinha de consolá-los. Só recentemente é que passamos a esperar que nossos presidentes “sintam nossa dor”, visitem locais de desastres naturais como inundações e furacões, e digam palavras de compaixão às vítimas (além de lhes prometer ajuda federal). Em 1918, aparentemente ninguém criticou Wilson por seu silêncio. Hoje essa distração presidencial seria condenada.

Há outra diferença entre o passado e o presente que merece ser mencionada. Se os Estados Unidos de hoje, com sua população maior, sofressem uma taxa de mortalidade semelhante à de 1918–1919, as mortes provavelmente excederiam os 2 milhões de pessoas. Enquanto escreve este texto, as mortes por Covid-19 ainda não chegaram aos 80 mil e o surto parece estar perdendo força em alguns lugares. De acordo com esse padrão, a pandemia de 1918 é muito maior do que sua sucessora. Esperamos e oremos para que — ao contrário do que aconteceu em 1918 — o vírus atual, depois de recuar, não volte com uma segunda onda mais mortal no fim do ano.

Isso aponta para outra diferença importante. Em 1918, os Estados Unidos estavam envolvidos numa guerra gigantesca contra um inimigo externo. Era esse conflito — não a batalha contra a gripe — que dominava as manchetes e despertava o fervor patriótico da maioria dos norte-americanos. Já em 2020, os Estados Unidos não estão envolvidos numa guerra, com sua incansável pressão por união nacional. Ao contrário, a luta contra a Covid-19 ocorre num ambiente político marcado pela desunião, polarização e rancor partidário como não se via há muitos anos. Inicialmente, há algumas semanas, parecia que o surgimento repentino da Covid-19 podia se transformar no “choque externo” que libertariam os norte-americanos de suas paixões políticas, unindo-os num esforço concentrado contra uma ameaça comum. Exceto se houver um fortalecimento perigoso do vírus, uma pacificação nacional parece cada vez mais improvável.

Ainda assim, uma análise de alguns aspectos de 1918 e 2020 talvez nos dê alguma esperança. Em 1918, o povo norte-americano enfrentava problemas semelhantes aos nossos atuais— e ele os superou. Naquela época, como agora, a pandemia era mais grave nas regiões urbanas. Naquela época, como agora, o sistema de transporte de massa — bondes, ferrovias e navios em 1918 e voos internacionais em 2020 — facilitaram imensamente o contágio. Naquela época, como agora, autoridades sem qualquer conhecimento médico promoviam o que hoje chamamos de “intervenções não-farmacêuticas”, como máscaras, higiene e a prática do distanciamento social. Sobretudo no auge da crise de 1918, a maioria das pessoas se comportou estoicamente e enfrentou a situação apesar das mortes que foram bem maiores do que as nossas.

Inspiração

Várias pessoas também fizeram outra coisa que deve nos inspirar para sempre. Na Filadélfia, por exemplo, no soturno outono de 1918, quando a pandemia estava fora de controle, um comitê de cidadãos se voluntariou e organizou uma comitiva médica para cuidar de cada bairro da cidade. Famílias aceitaram crianças órfãs em suas casas. Padres em carroças iam de rua a rua, pedindo aos traumatizados que lhe entregassem os corpos que elas guardavam em casa. Na Filadélfia e em outros lugares, enfermeiras cujas próprias vidas corriam risco cuidavam corajosamente dos doentes e dos moribundos. O exemplo delas aumentou o prestígio da profissão. Em Boston, professores — temporariamente desempregados porque as escolas estavam fechadas — só recebiam salário se trabalhassem no esforço contra a doença. Apesar do risco, muitos se ofereceram para ajudar as cansadas enfermeiras.

Hoje em dia, incontáveis norte-americanos estão reagindo à pandemia com a mesma compaixão e inteligência. Os exemplos são muitos. Médicos, enfermeiras e outros profissionais estão trabalhando duro em hospitais cheios, enquanto pessoas do lado de fora aplaudem. Músicos estão realizando concertos nas ruas e em centros de alimentação. Os formandos do ensino médio estão doando seus jalecos a hospitais que estão com falta. Voluntários estão dando comida a pessoas solitárias presas em casa. Empresas farmacêuticas e outros setores estão correndo para desenvolver remédios antivirais e fabricar aparelhos médicos. Hotéis e donos de trailers estão oferecendo espaço para a equipe médica que não quer voltar para casa e correr o risco de infectar seus familiares. Igrejas estão usando o Zoom e outros aparelhos para superar o isolamento e estimular a fé dos irmãos e irmãs.

Durante mais de um século, historiadores e visitantes estrangeiros percebem e se maravilham diante do espírito norte-americano de voluntarismo, apoio mútuo e comunitarismo em tempos bons e ruins. Há alguns anos, Herbert Hoover chamou isso de “individualismo à pele”. Mas ele não se referia ao egoísmo, à competição desenfreada, e sim a algo mais nobre: iniciativas conjuntas para resolver problemas tomadas por norte-americanos simples, livres e inteligentes — pessoas que não esperam que uma autoridade distante lhes diga o que fazer. Era esse o espírito, dizia ele, que os pioneiros exibiam quando viajavam em carroças para colonizar o oeste.

Para Hoover, a principal característica do sistema político norte-americano era o que ele chamava de “autogoverno do povo fora do governo”. É uma estrutura impressionante. Repetidas vezes na nossa história — incluindo momentos de dificuldade como em 1918 — pessoas “comuns” surgem para superar obstáculos e melhorar a vida dos outros. Esse espírito ativo e generoso está vivo ainda hoje.

Nos próximos meses, os norte-americanos provavelmente enfrentarão várias dificuldades, tanto médicas quanto econômicas. Nessa época, pode ser útil lembrar a nossa história e das palavras de um antigo hino religioso: “Ilumine o Seu Cantinho”. Seja qual for sua opinião sobre nossos problemas atuais, vamos resolvê-los de uma forma que honre nossos antepassados — com determinação e dignidade — e vamos fazer nosso melhor para “iluminar o cantinho” onde vivemos.

George H. Nash é historiador.

© 2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês

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