“Amputação”: ilustração do britânico Thomas Rowland, 1786| Foto: Domínio público
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Amos Wilson não era um homem feliz. O que seus pais (na verdade, seu pai) tinham na cabeça quando lhe deram um nome desse? Ele sofreu gozações por causa do nome na infância e nunca se recuperou da zombaria. O menino, afinal de contas, é o pai do homem.

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Mas há outra razão séria para a sua infelicidade. Agora, aos quarenta anos, nunca conhecera o que todo homem deseja: realização sexual. Por alguma razão que ele mesmo não conseguia compreender, não encontrava nenhuma satisfação em nenhuma atividade sexual, a menos que se imaginasse amputado. Sabia que, segundo os padrões alheios, isso era algo estranho, bizarro. Mas quem de nós consegue explicar os próprios desejos, ou como e por que surgem?

A fantasia toda está muito bem, é melhor do que coisa nenhuma. Mas não é uma substituta para a realidade. Na meia idade, Amos tinha se cansado de seus fingimentos. Por que deveria ser condenado a uma vida de segunda só por ter, sem culpa nenhuma, desenvolvido um desejo atípico que, se realizado, não causaria dano a ninguém mais? Todo homem tem direito à realização.

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É claro que ele não contou a ninguém do seu desejo. Todos no banco em que trabalhava pensaram que ele era um camarada decente, perfeitamente normal, exceto pelo fato de que ele nunca se casara – e nem isso, nos dias de hoje, pode mesmo ser considerado anormal. Hoje os homens não se comprometem mais, porque sempre pode aparecer algo melhor.

Já era tempo de sair do armário, pensou ele. Não queria morrer sem ter vivido. Seu primeiro passo, então, foi contar ao médico. Afinal, amputação é um procedimento médico.

O Dr. Smith era um médico à moda antiga: acreditava que os pacientes tinham o dever de seguir as ordens do médico, pois a maioria de suas ordens fazia bem aos pacientes. Mas as suas maneiras eram abrasivas, e ele dava a impressão de não suportar os tolos (noventa e cinco por cento da população) de bom grado. Era preciso coragem para lhe fazer confidências.

Amos reuniu essa coragem. Ao chegar ao consultório do Dr. Smith, sentiu-se inspecionado de cima a baixo já antes de se sentar. O Dr. Smith o encarava do topo de seus óculos dourados em forma de meia lua, que lhe davam um ar de ceticismo implacável.

– Como posso ajudá-lo? – perguntou.

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Ao menos Amos não era um habitué entre os queixosos, tampouco um daqueles pacientes que veem a visita ao médico como o ponto alto da semana. Então havia ao menos uma chance de haver algo errado consigo, o que faria dele parte de uma elite entre os pacientes do Dr. Smith.

– Preciso de ajuda, doutor – disse Amos.

– Que tipo de ajuda?

– Tenho um problema.

O Dr. Smith balançou um pouco em seu assento, uma guindola. Ele não era um homem de abordar as coisas de um jeito sutil.

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– Que tipo de problema? – disse – Desembuche.

– Sofro dele há muito tempo –, disse Amos, parecendo sem jeito ou mesmo culpado – Por toda a minha vida, na verdade, ou ao menos desde quando cresci.

O Dr. Smith gastava sete minutos com cada paciente. No máximo, oito.

– Que problema? – perguntou – Não temos o dia inteiro.

E olhou para o relógio de pulso, não para se informar da hora, que ele já sabia pelo relógio de parede à frente que fazia um suave tic-tac, mas para mostrar que estava ocupado.

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Estranhamente, a rudeza do Dr. Smith facilitou a vida de Amos. Era agora ou nunca, e isso lhe infundiu a coragem dos desesperados.

– Eu quero tirar a minha perna – disse.

– O quê?

– Eu quero tirar a minha perna.

– Para quê? O que há de errado com sua perna?

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– Uma está sobrando. Sempre me senti assim, desde quando me lembro. Não é minha, é alheia.

O Dr. Smith tirou os óculos e os colocou cuidadosamente no topo da mesa. Nunca tinha ouvido nada assim.

– O que você quer dizer com isso? – perguntou. Afinal, duas pernas são o normal, não o objeto de um museu de patologias com gêmeos siameses em garrafas de formol.

– Sinto que deveria ter nascido com uma –, disse Amos. – O fato é que eu não posso fazer sexo adequado com duas pernas; tenho que imaginar o tempo inteiro que só tenho uma.

– Então você quer tirar a sua perna? – disse fraquinho o Dr. Smith.

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– Sim, – disse Amos – para eu fazer sexo normal.

– Sexo normal? O que você quer dizer com isso?

– Sexo que me satisfaça do mesmo jeito que satisfaz a todo o mundo. Afinal, é meu direito, e eu não vejo por que todos podem ter e eu não.

Amos estava se exaltando com a sua questão, agora que a trouxera. Começou a ver que fora oprimido por toda a sua vida. Perseguido, mesmo. Sentiu que o Dr. Smith estava no lado dos opressores.

– Quero uma amputação.

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O Dr. Smith reconquistou sua confiança e sua certeza. Dava para perceber porque ele pegou os óculos e colocou-os de volta na ponta do nariz.

– Está fora de questão – disse. – Nenhum cirurgião aceitaria cortar fora uma perna perfeitamente saudável.

– Nem se eu pagasse? – perguntou Amos.

– Nem se você pagasse. Ele nunca mais poderia praticar medicina se alguém descobrisse que ele fez uma amputação só por dinheiro.

– Ele não estaria fazendo só por dinheiro – corrigiu Amos. – Ele estaria fazendo para me ajudar.

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– Os médicos não estão aqui só para dar aos pacientes o que eles querem, sabia? – disse o Dr Smith. Ele também podia se exaltar com a sua questão: – Temos que fazer o que é certo para os pacientes, e cortar membros perfeitamente saudáveis não é o certo. E se você viesse aqui e pedisse para cortar fora as suas duas pernas?

– Seria ridículo, e, de todo modo, eu não pedi isso.

– E o que você faria depois de sua perna ser cortada fora? Você seria um deficiente, um aleijado.

– As pernas artificiais estão muito boas hoje em dia –, disse Amos. – Há pessoas andando com elas por aí sem que você nem saiba. Eu só tiraria a minha perna quando quisesse fazer sexo.

– E quem iria querer sexo com um perneta, sobretudo quando soubesse que ele amputou a perna de propósito para se excitar?

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Amos ficou frio e racional, ao contrário do Dr. Smith.

– O senhor pode se surpreender ao saber que há mulheres por aí que só querem fazer sexo com pernetas. Eu não vejo por que privá-las da sua satisfação também.

– Amputações naturais – disse o Dr. Smith. – É diferente. Cortaram a perna deles por razões estritamente médicas; não para satisfazer perversões sexuais, sejam próprias ou alheias.

Amos ficou horrorizado com a força do preconceito do Dr. Smith. E ele é um homem instruído!

– Meu corpo pertence a mim –, disse Amos, – e é a minha perna. Eu posso fazer o que quiser com ela, e isso não é da conta de ninguém.

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– É da conta de todo o mundo quando você pede a alguém para cortá-la.

Amos nunca foi um grande filósofo, mas súbito descobriu que era.

– Médicos fazem um monte de operações por razões não-médicas – disse. – Lifting, por exemplo.

– Isso é para aprimorar, não para mutilar.

– A quem compete dizer o que é aprimoramento? – perguntou Amos. – Só ao paciente. Ele é quem tem que decidir. E eu posso dizer que minha vida seria muito melhor com só uma perna.

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O Dr. Smith estava exasperado.

– Amputar a perna é irreversível – disse.

– O lifting também. Tirar apêndice também.

– Isto é para salvar a vida.

– O lifting não é. E eu conheço muita gente que tirou o apêndice cujo apêndice era normal.

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– Isso não causa dano. Ninguém precisa de apêndice.

– E eu não preciso da minha perna. Ao contrário! Ela trava o caminho da minha felicidade. Me impede de ter uma vida normal.

– Amputados não têm uma vida normal.

– O que você está dizendo? Que amputados não são normais?

– Vou encerrar esta consulta – disse o Dr. Smith. – Não chega a lugar nenhum. Você não pode cortar a perna fora e não há nada mais a dizer.

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Amos se levantou para sair.

– Veremos – disse, com uma dureza adamantina em sua voz.

A caminho de casa, Amos deu um replay na consulta no vídeo de sua mente. Concluiu que, de um ponto de vista estritamente dialético, e tomando em conjunto, ele levou a melhor; mas ganhar uma discussão não é o mesmo que conseguir o que se quer. Ademais, há coisas que ele deveria ter dito e não disse. E se, por exemplo, o Dr. Smith usasse o argumento de que amputados impõem custos aos outros por precisarem de ajustes especiais? Era melhor estar preparado de antemão para a luta vindoura.

Qual era a resposta? Sim, era isso: todos os ajustes necessários aos supostos amputados voluntários deveriam já ter sido feitos, de modo que outro grupo de amputados não fizesse diferença. Ademais, ajustes são feitos para resgatar alpinistas, e quais benefícios os alpinistas trazem à sociedade? Por que só aqueles que querem ter apenas uma perna sofreriam discriminação?

Amos começou a alimentar a raiva ao pensar no assunto. As pessoas são tão pequenas, censórias e intolerantes! Lhe julgam sem nem saber nada sobre você; sem fazer nenhum esforço para imaginar como seria estar no seu lugar. Simplesmente presumem que todo o mundo é ou deveria ser igual a elas. Não querem ninguém diferente.

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Mas o que fazer quanto a isso? Amos decidiu testar o Dr. Smith outra vez; dar-lhe uma nova chance. Talvez ele repensasse as coisas que disse e mudasse de atitude, ainda que isso pareça bem improvável.

O Dr. Smith não mudou de ideia. Pelo contrário. Disse que Amos deveria esquecer tudo e cuidar da vida da melhor maneira possível. Não queria mais saber do assunto e sua decisão estava tomada.

Sua teimosia enfureceu Amos, que em geral não se enfurecia rápido.

– Se você não me ajudar, vou tomar minhas providências – disse.

– O que você quer dizer com isso? – perguntou o Dr. Smith.

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– Eu vou me amputar – disse Amos. – Tem um médico russo que tirou o próprio apêndice num submarino quando estava debaixo do gelo.

– Não seja ridículo. Era um homem instruído.

– Eu posso aprender.

De fato, ele já tinha comprado alguns livros de anatomia e de cirurgia ortopédica (os órgãos internos não lhe interessavam). Pensou em praticar primeiro com um ou dois cães ou gatos, mas isso era ilegal e aborreceria demais os donos caso descobrissem. Já havia misérias demais no mundo sem precisar aumentá-las.

Leu sobre guerras. Especialmente as do século XIX, quando volta e meia bolas de canhão e projéteis arrancavam braços e pernas de soldados. Muitos sobreviveram, ainda que sem transfusão de sangue e antibióticos.

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As esperanças de Amos de prescindir de medidas extremas foram alimentadas brevemente quando, por acaso, lera no jornal sobre um cirurgião disposto a amputar membros para gente como ele (veja só, Dr. Smith, há outros como ele); mas suas esperanças levaram um balde d’água fria ao continuar lendo e ver que o cirurgião sofreu processos disciplinares e ouviu que, se insistisse (ele fizera por dinheiro), ficaria proibido de exercer a medicina.

Não havia nenhuma perspectiva de ajuda oficial, então. Amos teria de arranjar as coisas por conta própria. Decidiu que o melhor método seria o treino; não dá para conseguir uma amputação melhor do que isso.

Provavelmente nem doeria; ao menos, não no início. Não se as histórias dos campos de batalha forem dignas de confiança. Os soldados cujos braços ou pernas foram arrancados amiúde nem percebiam no começo, não até serem tirados do campo. Era só quando os médicos e os outros começavam a peruar que eles começavam a sofrer, e naquela época era fácil controlar a dor. Bastava tomar remédios até a dor passar sozinha.

Mas aí ocorreu a Amos que ele deveria agarrar a oportunidade de fazer algo pelos outros. Não só para si; na verdade, por seu país e pela humanidade como um todo. Percebeu que até então só vinha pensando em si mesmo. Mas é claro que há outros sofrendo igual a ele. Lamentavelmente, o público era ignorante, desinformado, indiferente ou hostil. Havia uma oportunidade de ouro para fazer algo. Pela primeira vez em sua vida, tinha uma chance dessa. Amos começou a pensar em si mesmo como o líder de um movimento, o Herzl dos amputados.

Como começar a campanha? O óbvio seria escrever um artigo para o Clarion, o famoso jornal especializado em consertar os erros e lutar pelos oprimidos, dando voz aos sem vozes. Uma vez por semana, permitia que um completo desconhecido publicasse seus rancores. (Desde que, para serem apaziguados, tais rancores precisassem de uma reforma radical.) O artigo também constaria no site do jornal, que era lido em todo o planeta.

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Embora ele nunca tenha escrito nada antes, a paixão fez a caneta de Amos fluir.

“Nos orgulhamos”, escreveu, “da suposta tolerância da nossa sociedade. É verdade que em alguns assuntos somos mais tolerantes do que antes, mas não foi um padrão difícil de alcançar, e ainda há muito por fazer. É hora de quebrarmos o último tabu.”

Amos estava bem contente com isso. Acertou em cheio o tom, pois o jornal estava em busca de novos tabus para quebrar. Deu a eles um senso de propósito.

“Algumas pessoas”, continuou, “entre as quais estou, só podem obter satisfação sexual se tiverem somente uma perna. Não é culpa nossa sermos assim; é um fato da nossa natureza sobre a qual não temos nenhum controle.

“Nascemos assim.”

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Amos em seguida ficou filosófico:

“Todos concordam que uma existência sexual realizada é uma precondição da vida boa, sobretudo nos dias de hoje, quando estamos cercados por imagens sexualizadas. Mas isso nos é negado pela ignorância e preconceito, principalmente, mas não só, da classe médica. Não desejamos nem causamos dano aos outros, o que (se fizéssemos) seria a única razão para nossos desejos serem negados de modo justificado. Enquanto todo o mundo recebe assistência pública para ter uma vida plena e satisfatória, nós somos os únicos excluídos, por causa do profundo preconceito que existe contra nós. Somos o objeto da mais nua e crua discriminação. Somos os crioulos do sexo.”

A expressão lhe agradou, ainda que fosse ousada e ele duvidasse de que o Clarion iria admiti-la. Ele não quis usá-la de um jeito racista, claro. Bem o contrário. Mas o uso da palavra em qualquer contexto era tabu. Quando o artigo foi publicado, porém, a palavra foi deixada – após uma longa discussão entre os editores. Só mudaram para “Nos sentimos os crioulos do sexo.”

O artigo teve um impacto imenso. Houve milhares de comentários dos leitores: desde manifestações de apoio (pelo menos um teve coragem de sair do armário) até aqueles que achavam que todos os membros do autor, além de outras partes, deveriam ser amputados sem anestesia. O próprio Amos se viu cercado por pedidos de entrevistas. Tornou-se celebridade da noite pro dia.

As entrevistas eram todas iguais.

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– Quando você se deu conta, pela primeira vez, de que queria ser um amputado?

– Você acha que é normal querer ser um amputado?

– Você acha que quantas pessoas são iguais a você?

– Deveria existir amputação por demanda?

A repetição permitiu que Amos refinasse as respostas. Logo ele se sentiu como um toca-fitas se repetindo mais e mais. Disse que a amputação deveria ser feita sempre por um cirurgião qualificado porque, do contrário, as pessoas iriam morrer, seja por suicídio ou por operarem a si mesmas. Isto, por sua vez, as faria recorrer aos trilhos do trem ou a gente sem qualificações.

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– Você conhece casos de pessoas que fizeram mesmo isso? – sempre perguntavam. – Se sim, quantos?

Com uma paciência que de modo algum correspondia ao seu real estado de espírito, responderia que era impossível dizer, porque o assunto era um tabu tão grande que nenhuma pesquisa séria havia sido feita. Autoamputações seriam registradas como acidentes, em vez do que elas realmente são.

No entanto, era óbvio para Amos que, após a comoção inicial, o interesse iria se esmaecer. A atenção pública era como uma borboleta que se esvoaçava de flor em flor e dificilmente voltava. Era necessário mais.

Ao menos vinte pessoas com os mesmos interesses de Amos, por assim dizer, o contataram. Decidiram formar uma associação chamada UPE, Unípedes Por Escolha. Isso iria distingui-los dos amputados que sofreram algum acidente ou que tiveram uma gangrena por diabetes e fumo. Por sorte, um dos vinte era um expert em design de sites, e logo havia muito daquilo que ele chamava de tráfego. A maioria dos visitantes do site apenas estava curiosa ou concupiscente, esperando um frisson de nojo ou desdém, uma oportunidade para exercer o seu sarcasmo. Afinal, todos precisam se sentir superiores a alguém, e a maioria dos que visitaram o site pôde dizer a si próprio e aos outros: “Ao menos eu não sou assim!”

Mas cada vez mais havia pesquisas de gente interessada a sério. Escreviam que estavam desesperados e perguntavam se podiam tirar as pernas. O site começou a agir como uma troca de informação. Listavam-se os nomes dos cirurgiões e clínicas no exterior que, mediante pagamento, estavam dispostos a fazer amputações. A isso seguia-se um vívido debate sobre a injustiça disso. Por que só os endinheirados têm direito a amputações? Ademais, havia alertas sobre alguns dos cirurgiões e clínicas do estrangeiro: eles aceitavam o dinheiro, mas podiam ser perigosos. Começaram a aparecer histórias sobre morte por hemorragia e infecção, e até de prisões e detenções em terríveis celas escuras, bem como das propinas necessárias para escapar. Ir para o estrangeiro, então, não era a panaceia que foi mostrada no começo.

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Era óbvio para Amos e para aqueles que ele agora chamava de colegas que o único caminho a buscar era um serviço de amputação apropriado em seu próprio país. Teria de ser alheio a interesses comerciais, claro, pois nada seria mais fácil para o lobby anti-amputados do que imputar corrupção aonde quer que o dinheiro mudasse de mãos. O serviço, então, seria feito por adeptos da causa, aqueles que amputassem por convicção. Mas cirurgiões competentes não bastavam; era igualmente importante que as amputações fossem feitas de maneira responsável, não numa fantasia passageira. Portanto era necessário envolver psiquiatras e psicólogos para assegurar que aqueles que quisessem tirar uma perna (ou, menos comum, um braço) fossem mentalmente estáveis, de personalidade normal e totalmente cientes das implicações da operação.

O primeiro problema era encontrar um cirurgião disposto. Isso apesar do fato que havia um número crescente de gente (sete oitavos dela, homens) que manifestava o interesse em ter um membro tirado. Houve uma breve fagulha de esperança quando um cirurgião numa pequena cidade em Gales declarou que estava disposto, mas a esperança logo se extinguiu quando ele foi forçado a se retratar e enviado a um curso de ética médica. No entanto, seu martírio, muito divulgado, se revelou um mal que veio para bem, porque deu ao grupo a oportunidade de divulgar a triste penúria das pessoas iguais a eles. O grupo começou uma petição a favor do cirurgião que foi assinada por mas de mil pessoas; e, ainda que não tenha produzido nenhum efeito tangível nos círculos oficiais, começou a mudar a atitude do público geral, ou daquela parte que falava de assuntos abstratos como direitos. Agora, quando assunto aparecia em jantares festivos (o que acontecia com uma frequência surpreendente), as pessoas começaram a dizer: “Afinal, por que não?”

Mas ainda que Amos tenha ficado contente, e até orgulhoso com o progresso alcançado, ele estava impaciente porque o relógio não tinha parado de bater e ele não se enxergava mais como um jovem. Um eventual triunfo na luta pela liberdade era ótimo, e seria uma coisa boa, mas dificilmente poderia satisfazê-lo pessoalmente. Seu colega mais próximo no movimento, que ele só encontrava pela tela do computador, sugeriu que eles precisavam de um golpe de publicidade.

Qual seria?

Amos e seu colega divisaram um plano. Amos seria o primeiro, mas não o último, a fazer uma autoamputação numa linha de trem. É claro que ela teria de ser perfeitamente planejada, não um ato impulsivo. Ele faria isso na presença do seu colega, que se chamava Sam. A primeira vez em que eles se encontraram em pessoa seria nos trilhos, mas antes se certificaram de que tinham aprendido como estancar o sangramento e aplicar bandagens de pressão. Amos inspecionou as linhas férreas locais à procura de um lugar apropriado para a operação. Teria de ser isolado o bastante para ficar longe de olhos bisbilhoteiros, mas com acesso fácil à ambulância que Sam chamaria imediatamente à aproximação do trem amputador. É claro que Sam iria sumir tão logo a ambulância aparecesse, para evitar qualquer possível imputação de crime. E também teriam de encontrar alguém confiável para filmar direto o evento (de preferência, com qualidade profissional) para postar na internet. Encontraram William, um estudante de estudos de mídia da universidade local, que também expressara o desejo de cortar fora a perna. O filme alertaria o mundo para o ponto aonde pessoas desesperadas podem chegar nas presentes circunstâncias opressivas. Chocaria e informaria ao mesmo tempo.

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Não duvidavam do sucesso, mas um único evento não era o bastante. Tinham que manter a pressão: o cadáver da sociedade moribunda precisava de choques repetidos para trazê-lo de volta à vida (se é que estivera mesmo vivo). Planejaram o que chamaram de “eventos futuros”.

O dia da primeira ação chegou. O local escolhido foi uma linha bem próxima a uma estrada, mas escondida por bétulas. Para a infelicidade de Amos, teria de ser uma amputação abaixo do joelho, porque seria muita trapalhada colocar uma de suas coxas nos trilhos, e era aconselhável deitar de modo confortável ao esperar pelo trem.

É claro que eles pesquisaram cuidadosamente os horários do trem. Selecionaram o trem que deveria fazer a cirurgia: um expresso de passageiros que não seria capaz de diminuir menos que oitenta milhas por hora entre o momento que o maquinista avistasse Amos e o alcançasse.

William filmou Amos por poucos minutos deitado no chão com uma perna estendida sobre os trilhos antes da chegada do trem. Amos pareca alegre e fez joinha com o dedo, embora se sentisse um pouco nervoso, é claro. Conseguiria se submeter a isso, ou mudaria de ideia no último momento? Estava determinado, mas nunca se sabe.

O trem se aproximou. Amos podia sentir as vibrações em sua perna quando o trem ainda estava longe. Sam chamou a ambulância de modo que ela chegaria logo depois de a cirurgia ser feita, e deu ao controlador a localização de Amos com coordenadas de GPS, além de detalhar com uma descrição verbal o local onde estava deitado. Sam colocou a mão no ombro de Amos para dar-lhe firmeza. Ele também queria que a ação fosse um sucesso.

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Tudo ocorreu conforme o planejado. O trem chegou na hora certa e não foi capaz de parar antes de remover a perna de Amos. William filmou, tomando o cuidado de não colocar nenhuma imagem de Sam aplicando as bandagens em seguida. A intolerância impôs a necessidade de anonimato.

O evento só teria conseguido a atenção do jornal local, e talvez nem isso, se não tivesse sido filmado e postado. Os médicos do hospital local ficaram perplexos com o que Amos fez (um hospital próximo tinha sido outro critério de escolha do local) porque nunca tinham visto um caso igual, tamanhas eram a sua inexperiência e falta de informação. Mas a fama de Amos não se espalhou até o filme da operação ser postado.

Primeiro Amos não sentiu nada: sua exultação conquistou as terminações nervosas. Depois começou a dor, mas ele foi tratado com drogas que o afastavam da realidade e o deixavam como que flutuando numa nuvem. Mas quando ele acordou da operação hospitalar para “limpar” o seu cotoco, como o disse o cirurgião, ele se deleitou ao descobrir que a amputação teve de ser estendida para cima do joelho, o que, é claro, era bem o que ele desejava. Ele tinha isso em muito maior estima do que o tipo abaixo do joelho.

Foi só depois da primeira postagem do vídeo que a fama de Amos se espalhou de verdade. Mas não era fama que Amos, Sam e William buscavam, mas sim aceitação e reforma social. Afinal, o que os outros tinham a ver isso, para imporem juízos morais? Um ser humano era constituído somente pela quantidade de membros? Alguém se recusou a obedecer ao Almirante Nelson porque ele só tinha um braço? É claro que seria diferente se eles estivessem reivindicando amputações para os outros, mas eles não estavam.

A segunda parte do plano foi posta em operação. Um rapaz de dezessete anos se voluntariou para ter a mesma cirurgia feita por um trem em movimento. Infelizmente, não houve esse sucesso e o rapaz sangrou até a morte. Por alguma razão, as bandagens não foram aplicadas direito e a ambulância se atrasou, e foi no atraso que a imprensa nacional focou. “Esse caso ilustra a loucura cruel e criminosa”, disse o editorial do Clarion sobre o assunto, “dos cortes orçamentários que sobrecarregam o serviço das ambulâncias até o ponto de ruptura. O fetiche fiscal mata.”

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Mas a morte do rapaz apenas acelerou o próximo estágio do plano, que Amos e Sam chamaram de “amputação em massa”.

O arranjo precisou de cuidados extra porque as autoridades ferroviárias estavam começando a colocar vigilância extra, instalando câmeras às pressas acima e abaixo das linhas. Mas é claro que tudo isso era em vão, porque era impossível cobrir mais do que uma pequena porção da malha, algumas câmeras não funcionavam, e a típica incompetência burocrática às vezes as colocava onde eles nunca pensariam em fazer uma ação – em lugares onde ninguém em sã consciência pensaria em amputar a perna. O plano precisava de um número maior de voluntários para assegurar o sucesso.

O grande dia enfim chegou: o dia que iria mudar a nação. Oito pessoas, só uma delas mulher, deitou seus membros, ou pôs seus membros em linha (literalmente), pela causa do progresso social e da realização sexual. (Só um dos membros era um braço.) Desta vez foi um grande sucesso, com só uma morte, e só porque o hospital local ficou sem ambulâncias. O evento foi um triunfo da determinação e da organização, conduzido no maior segredo, tendo escapado completamente às autoridades. Usaram uma sagaz tática diversionista, enviando um grupo de apoiadores para uma linha não muito distante de onde o evento real ocorreria. Ao anunciarem sua presença, chamaram a atenção da polícia e de outras autoridades para longe do local. Alguns diversionistas foram presos por invasão da propriedade ferroviária, mas esse leve martírio foi um pequeno preço a ser pago pelo sucesso de liberar o golpe teatral.

Dessa vez, o evento foi noticiado nacionalmente e ad nauseam. Membros do Parlamento apareceram na televisão para exigir que doravante os cirurgiões fossem obrigados a cortar fora os membros de quem quisesse ser amputado. Disseram que esse era o único jeito de parar a carnificina. Neurocientistas apareceram na televisão para demonstrar quais partes dos cérebros dos amputados acendiam ou deixavam de acender nas ressonâncias antes e depois de os seus membros serem cortados fora.

Amos, cuja ferida já tinha sarado o bastante e aprendera a manejar suas muletas antes de ficar pronto para as pernas artificiais de última geração, apareceu muitas vezes na televisão, usualmente descrito como a vítima do atual estado de coisas. Mas ainda que concordasse com os membros do Parlamento até onde iam, disse que era preciso mais do que uma reforma na lei. O problema fundamental, disse, era o que ele chamava de quadrimembrismo, a presunção de que seres humanos têm quatro membros e que qualquer desvio do padrão hegemônico era bizarro, anormal ou patológico. Por exemplo: as ilustrações de todos os livros infantis, exceto por A Ilha do Tesouro, só mostravam personagens com quatro membros, isto é, duas pernas e dois braços. Isso doutrinava as crianças com a ideia de que as pessoas com um ou mais membros faltando eram anormais de algum jeito. Ele também sugeriu que doravante a palavra “amputado” não fosse mais usada, já que tinha conotações pejorativas de deficiência. Sugeriu que doravante os amputados fossem conhecidos como membrodiversos. Quanto à inclusão da apotemnofilia e da acrotomofilia em manuais de psicopatologia, ele sugeriu que as páginas fossem arrancadas. A caça às bruxas medieval dos quadrimembristas aos membrodiversos tinha que parar.

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O governo passou rápido a lei, sem oposição, obrigando os cirurgiões a amputarem os membros dos adultos com mais de quatorze anos que os quisessem amputados (os pais dos adolescentes de quatorze anos, especificamente, não deveriam ser informados) e doravante estava inscrito no código de ética médica que nenhum médico poderia recusar assistência a tal pessoa para encontrar um cirurgião disposto a fazer a operação, doravante a ser conhecida como correção de membro. Quando a lei passou, milhares de pessoas saíram do armário atrás de uma correção de membro (em geral, pernas) e logo houve tanta gente esperando pela operação que isso se tornou uma desgraça nacional. A solução foi treinar enfermeiras para cortar pernas fora, mas os braços, sendo mais difíceis de cortar, continuaram a cargo de cirurgiões plenos.

Ainda havia muito a ser feito para combater o preconceito, mas Amos gostou de ver que as editoras agora imprimiam livros de Mamãe e Papai (ou só Mamãe) com menos que quatro membros, e alguns com membro nenhum. Em algumas escolas primárias, as crianças estavam tendo um curso contra o quadrimembrismo, e ele tinha esperanças de que esses cursos se tornassem compulsórios por toda parte.

Depois de uma prolongada licença motivada por ansiedade, dois dos três maquinistas cujos trens fizeram as cirurgias iniciais se mataram.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
©2023 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.
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