Albert Camus escolheu como epígrafe de A peste uma citação enigmática de Daniel Defoe: “É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”.
Trata-se, naturalmente, de uma chave para a interpretação do romance, mas não apenas isso. É também uma reflexão útil como ponto de partida para um exame de nossa relação simbólica com o mundo. Em tempos de pós-verdade e de pandemia do coronavírus, esse exame não é apenas necessário. Pode ser uma questão de vida ou morte.
A narrativa de A peste opera em uma dupla camada: a da crônica objetiva dos fatos ocorridos na cidade argelina de Oran, em um ano indeterminado da década de 1940, e outra, subterrânea e alegórica, que se dirige ao leitor bem informado da época, que pensava: “Não, este não é um romance realista sobre uma epidemia; é uma metáfora da ocupação nazista da França” (o livro foi escrito em 1943 e publicado em 1947). O próprio Camus referendou a tese em 1955, ao apontar como conteúdo subliminar do livro a resistência europeia à grave e contagiosa doença política do nazismo.
Mas esse paralelo, por si só óbvio e banal, não esgota o romance, apenas o contextualiza historicamente. O que importa e fica da leitura de A peste é a lição do protagonista Rieux, médico para quem a solidariedade é a única conduta humana aceitável diante da tragédia coletiva. Porque a doença nos reduz a todos aos divisores comuns mais básicos da existência: a dor e o sofrimento, a angústia e o medo, sentimentos que nos confrontam com o absurdo e a precariedade da condição humana. Mas também o amor e a solidariedade, únicos remédios, ainda que paliativos, para a consciência desse absurdo. Ou seja, ao mesmo tempo em que faz da epidemia a alegoria política de um tempo de guerra, Camus prega a união, naquilo que todos temos em comum, como a única saída para a crise.
Na vida como na literatura, precisamos lidar com o real, com a matéria concreta da existência, mas precisamos também elaborar essa matéria de maneira a lhe conferir sentido e valor. Mas não convém criar um abismo entre a percepção objetiva dos fatos e sua elaboração simbólica, sob o risco de perdermos de vez o contato com a realidade. Sobretudo em tempo de guerra, um equilíbrio entre as duas camadas é fundamental para nossa sanidade coletiva.
Sim, porque hoje também vivemos em um tempo de guerra, que divide e envenena a sociedade brasileira. Mas é uma guerra estranha, na qual a abolição da realidade se tornou arma rotineira. Não há fato que não possa ser sequestrado ou simplesmente negado pelos desejos e opiniões pessoais. As coisas não são como são, são como determinam os meus interesses individuais e os do meu grupo. A verdade se tornou uma questão de ponto de vista – ou de estar “do lado certo”.
A tal ponto o plano das narrativas se afastou do plano da realidade que até mesmo o sexo biológico vem sendo sistematicamente negado – e ai de quem ousar criticar isso. Em uma distorção curiosa do trecho de Defoe (aliás ele próprio autor de Um diário do ano da peste, sobre a epidemia de peste bubônica que devastou Londres em 1665), substitui-se o tempo inteiro aquilo que é por aquilo que não é: democracia vira fascismo, liberdade de expressão vira crime de opinião e qualquer discordância pode ser pretexto para “cancelamentos” e linchamentos virtuais, frequentemente seguidos de humilhantes rituais de expiação pública.
Li esses dias um artigo que afirmava, textualmente, que o coronavírus escolhe quem vai contaminar, com base na classe, raça e gênero. Só faltou chamar o vírus de fascista. Mas, como a peste que assola os habitantes de Oran, a covid-19 ignora solenemente qualquer tentativa de apropriação e manipulação simbólica. Ela joga por terra o “direito adquirido” de negar a realidade e de adaptá-la aos nossos caprichos.
Uma pessoa pode até fazer de conta que não importa a carga genética com que nasceu ou acreditar que todos que estão à direita de Stálin são fascistas. Mas tentar transformar o vírus em ferramenta de disputa ideológica e de divisão deliberada da sociedade não é apenas insano e ridículo; é irresponsável e perigoso.
Se existe uma metáfora útil em A peste, é esta: o medo deve levar à reflexão e à união. A epidemia apresenta uma oportunidade de reaproximação entre a realidade e a nossa percepção coletiva da realidade, de retomada da consciência de que sentidos e valores compartilhados são condições indispensáveis para nossa sobrevivência como sociedade.
Tentar transformar uma desgraça coletiva em ferramenta para mais um mesquinho embate político, como já vem sendo feito, não mudará o fato de que pessoas estão adoecendo e morrendo aos milhares, independentemente de suas convicções ideológicas ou do partido em que votaram.
O vírus é imune à lacração.
Luciano Trigo é jornalista e escritor, autor de “Guerra de narrativas – A crise política e a luta pelo controle do imaginário”, entre outros livros.