Não há como negar que o cinema, desde quando nasceu, foi utilizado para fins que ultrapassavam o mero entretenimento.
Obviamente que, na maioria das vezes, muitos detalhes políticos passam desapercebidos pelos fãs incontáveis da sétima arte do mundo. Na época da guerra fria, por exemplo, as indústrias dos quadrinhos americanos tiveram um trabalho cultural central ao erigir a URSS — e o comunismo em si — como inimiga do Ocidente livre.
Quem não se lembra de Soldado Invernal, inimigo comunista do capitão América nos quadrinhos e no cinema? O vilão interpretado por Sebastian Stan nas telas dos cinemas representa as forças soviéticas em uma batalha frontal contra o soldado especial dos EUA, Capitão América — interpretado por Chris Evans na recente franquia do filme —, símbolo de liberdade e força militar americana.
Há, por sua vez, filmes que também fazem a apologia do lado oposto da batalha, ou seja, o lado revolucionário e socialista. Filmes como “Diários de Motocicleta”, dirigido por Walter Salles; “Eu, Daniel Blake”, dirigido por Ken Loach; ou o longa que será lançado em 2018, sob a direção de Wagner Moura, sobre a vida do guerrilheiro Carlos Marighella.
As diversas ideologias criadas pela modernidade se valeram desse aparato publicitário para o alavancamento de seus ideais e bandeiras. O recém lançado filme da franquia Star Wars — “Os Últimos Jedi” — já começou a gerar rumores sobre as supostas críticas políticas que compõe o filme e todo o universo da obra.
Sou do time que pensa que nem tudo é ou deveria ser política; o marxismo trouxe à baila a ideia de que nada se ausenta da luta de classes, e que, por sua vez, ela seria “o motor da história e da política”. Deixando-nos a ideia asfixiante de que a cada passo que damos, ou palavra que falamos, estamos indubitavelmente fazendo política ou defendendo causas. Acredito que podemos assistir um filme e nos divertirmos sem que isso demande um ato de revolução; assim como podemos trocar o registro do chuveiro das nossas vizinhas sem que isso seja a evidência inconteste da luta de classes.
Mas como há várias teorias surgindo sobre as subliminariedades do conteúdo político de Star Wars: Os Últimos Jedi, creio ser interessante que eu elenque e contraponha com algumas impressões minhas sobre caráter político que a obra deixou transparecer. E com isso pretendo mostrar como certas interpretações, como as de Pablo Villaça, possui contradições gritantes e distorções dantescas, não somente sobre a obra em si, mas sobre sua interpretação política do filme frente a realidade política. A ele faltou o básico de percepção política, assim como o mínimo de agudeza ao mergulhar na crítica para além da superfície visível da obra.
Não quero aqui achar “pelo em ovo”, ficar divagando sobre o que havia na mente do diretor do filme ou analisar quadro por quadro buscando teorias da conspiração e mensagens subliminares. Apenas pretendo usar da analogia filosófica para encontrar no filme certos filetes interpretativos da sociedade, e assim mostrar como as interpretações ideológicas espalhadas pelas mídias sociais e salas de aulas, por vezes, podem assumir justamente a posição contrária no espectro das ideias.
A principal crítica social que emerge do filme parece ser as cenas do planeta-cassino, Canto Bight — recanto dos ricaços das galáxias —; que ali há uma crítica ao capitalismo me parece ser indiscutível, todavia, quem disse que os grandes capitalistas servem apenas às causas liberais e conservadoras? A visão tradicional do capitalismo apresentada pelo status quo marxista se mostra aporética na atualidade.
Ricaços se divertindo com champanhes caros, mulheres com grandes decotes e um Jockey alimentado com trabalhos escravos de crianças e violência aos animais. É isso que vemos ao assistir as cenas que se passam em Canto Bight; entretanto, devemos pontuar algumas coisas antes de analisar as cenas do planeta-cassino a partir de nossos tesões ideológicos.
Primeiramente, o cinema norte americano criticando o capitalismo talvez seja a maior hipocrisia de todos os tempos. Hollyood, por exemplo, é o lar dos artistas mais bem pagos do mundo; lá jazem mansões que deixariam castelos medievais parecendo miniaturas de LEGO, carros tão luxuosos que parecem artigos de ficção científica, grifes e restaurantes que vendem sobremesas mais caras que os alugueis de casas aqui no Brasil. Todos esses espaços frequentados por críticos do capitalismo e moradores da cidade do capitalismo.
Entre uma “lacrada” e outra contra o capitalismo no twitter; entre os choramingos sobre as misérias na África e as bufadas contra o conservadorismo de Trump, esses doutos diretores, roteiristas e escritores dão uma golada em um vinho de 5 mil dólares e uma tragada em um Gurkha Black.
O que alimenta esse mercado gigantesco do cinema americano senão o puro capitalismo? O luxo mostrado em Canto Bight, por exemplo, é facilmente superado pelas casas de muitos atores e diretores hollywoodianos críticos do capitalismo. Somente “Star Wars: o Despertar da Força”, bateu os 2 bilhões de dólares em arrecadações nas bilheterias do mundo, isso apenas nas bilheterias, sem envolver os mercados paralelos que agremiam o filme em si: o universo Geek, além dos mercados transversais ligados às salas de cinemas, shoppings, artigos colecionáveis, etc. Se há uma coisa que é basicamente a seiva do capitalismo nos EUA, essa coisa é a indústria cinematográfica. Como seria tal indústria sem o capitalismo, sem as grandes fortunas e a revolução industrial de outrora? Teríamos o avanço audiovisual que hoje ricos e pobres dispõe numa sala de cinema ao preço de 15 reais a sessão? Muita demagogia em um lugar só.
Capitalistas de outro mundo
Na trama, Finn e Rose vão ao planeta Canto Bight com a intenção de encontrar um decodificador designado, mas por fim eles encontram DJ na prisão — interpretado por Benicio del Toro —, não era o decodificador esperado, mas DJ afirma poder ajudar a dupla a alcançar a invasão da nave da Primeira Ordem a fim desativar o radar que detectava a nave da Aliança Rebelde mesmo na velocidade da luz. Rose, que já conhecia Canto Bight, afirma que os ricaços que lotavam o cassino eram vendedores de armas sujas para a Primeira Ordem, e que era dessa maneira que enriqueciam e mantinham seus luxos sórdidos; entretanto, ao contrário do que Rose acreditava, DJ, após vasculhar o sistema da nave roubada que eles utilizaram para fugir do planeta, diz que aqueles ricos que estavam no cassino vendiam armas sujas não somente para a Primeira Ordem, mas também para a Aliança Rebelde. Finn e Rose se assustam com tal informação revelada e deixam transparecer certa decepção. E aqui encontramos uma deixa para refletirmos.
As grandes fortunas nem sempre atuam culturalmente em favor de uma estrutura de livre-mercado — estrutura “capitalista” — como supõe os comunistas tradicionais; na guerra cultural que se segue em nossa realidade, os financiadores das ideias progressistas de cunho socialista são os grandes capitalistas. Uma realidade aporética e atormentadora para aqueles socialistas que tentam religiosamente se opor às grandes fortunas, eu sei.
Citemos alguns para exemplificar a afirmação: George Soros — através de sua fundação Open Society —, Fundação MacArthur, Ford, Rockefeller, entre outras; todas essas fundações que possuem bens e fortunas incontáveis, financiam abertamente as causas esquerdistas ao redor do globo. De ONG’s abortistas ao financiamento de partidos e estudos com fins programados, esses capitalistas injetam fortunas colossais a fim de mudar o panorama cultural e influenciar o pensamento público de várias nações.
O globalismo: união de grandes fundações e órgãos governamentais com o intuito de refundar costumes, criar uma nova ordem moral e um governo mundial, sustentam tais ideais de engenharia social, financiadas e erigidas pelas fortunas dos grandes capitalistas. O que seria da UNESCO, ONU, e de todos esses órgãos oficiais sem as grandes fortunas? Como imporiam suas verdades sem que montantes de dinheiros chovessem em seus colos?
Por fim, aquilo que DJ mostrou naquele momento para Finn e Rose é que as fortunas em si mesmas são artigos amorais, isto é: podem ser usados para fins diversos e não necessariamente para as causas ditas de direita. Se atualmente os capitalistas fossem todos liberais ou conservadores a esquerda teria que voltar a roubar bancos, mas hoje os banqueiros financiam as suas causas; André Esteves, o banqueiro do PT, que nos diga.
O paradoxo que muitos socialistas não enxergam — ou melhor: a verdade que eles não querem aceitar — é que a esquerda atualmente é mais “capitalista” que a própria direita. Aqueles que geralmente se identificam com o conservadorismo e o liberalismo político são as classes médias e baixas, aqueles que possuem uma riqueza histórica, moral e privada a resguardar; o povão está mais interessado em fazer a compra do mês, tomar sua cerveja final de semana e ir à missa ao domingo do que mudar a moral de seu vizinho. Quem tem tempo e dinheiro para investir em projetos de engenharia social e mudança de paradigmas morais são os ricos com fetiches progressistas e os socialistas de mansões; os pobres têm que acordar cedo para trabalhar e alimentar sua família.
Não estou aqui fazendo uma defesa formal do capitalismo, estou dizendo que o fato de existirem grandes fortunas acumuladas em mãos de poucos, além de diversões luxuosas para ricaços, não necessariamente quer dizer que a esquerda é a solução social. Pelo contrário, sem as grandes fortunas a esquerda hoje sobreviveria de que? Se amanhã as grandes fundações pararem de financiar as ONG’s, diretórios e partidos, o que seria da esquerda aqui no Brasil, por exemplo? Pois é, nem tudo que reluz é ouro; nem todo capitalista é de direita, acreditem se quiser!
A Primeira Ordem, organização que busca dominar as galáxias de maneira anexadora e totalitária, nos lembra muito o comunismo soviético pela sua configuração, modus operandi e despotismo ideológico. Não serei eu quem forçarei a amizade e falarei que o papel da Primeira Ordem em Star Wars é fazer uma crítica ao modelo soviético, deixo essas elucubrações para os demais críticos de twitter. Entretanto, a analogia é interessante e servirá como fim explicativo. Snoke — interpretado por Andy Serkis —, líder supremo da Primeira Ordem, é um comandante da legião do lado negro da força; ele é uma espécie de déspota intergaláctico que tenta dominar planetas e galáxias inteiras, além de tentar destruir a única resistência que sobrou, a Aliança Rebelde.
Snoke governa tudo com punhos de aço, doutrina as mentes de seus seguidores de maneira direta e poderosa, ao ponto de conseguir prever ações e interpretar seus movimentos antes que eles aconteçam. Um de seus mandados diretos, e o mais poderoso deles, é o exilado e rancoroso Ben Solo, agora o Kylo Ren — interpretado por Adam Driver. Como já escrevi em um ensaio para a Gazeta do Povo, a mentalidade esquerdista que reinava na URSS é muito análoga ao que Snoke mostra no filme.
O princípio totalitário que reinou na União Soviética era o do controle das mentes dos cidadãos e a tentativa de obter o controle ontológico sobre os indivíduos ao ponto que absolutamente nada fugisse do controle do Estado onisciente. Guiados via a doutrinação, agiam em vista do fim almejado — a revolução mundial, no caso comunista; ou a dominação das galáxias, no caso da Primeira Ordem — que deveria ser alcançado a todo custo. Nem que o preço fosse 100 milhões de mortos ou a aniquilação de galáxias.
Um ponto interessante a se perceber na trama é como se configura a luta pela república e como a Aliança Rebelde se modela a partir da resistência à um poder opressor de ordem oficial, poder esse muito semelhante ao poder estatal em nossa realidade social. O poder estatal em nossa realidade política, quando gerido por um ditador, se configura basicamente de tal forma: líder supremo + maquinário do governo; esse aparato utiliza a força militar para suprimir oposições, cercear as liberdades individuais básicas, suprimir as garantias democráticas e pensamentos destoantes da doutrina oficial. A Primeira Ordem, em Star Wars, se configura exatamente assim.
Joseph Campbell — antropólogo e teorizador do conceito: “Monomito” — foi o principal influenciador do diretor e roteirista George Lucas — criador de Star Wars. George Lucas fez de Star Wars o arquétipo do herói idealizado por Campbell em seu livro “O Herói de Mil Faces”; nessa obra Campebell coloca os fundamentos rotativos de seu conceito de monomito, ou seja, a estrutura ontológica do herói. Joseph Campbell, ao falar sobre Star Wars em seu livro “O poder do mito”, afirma que a ideia que sustenta a história é justamente esse embate entre o poder do maquinário estatal e sua tentativa de esmagamento do indivíduo e das liberdades.
“Star Wars certamente possui uma perspectiva mitológica válida. O filme encara o Estado como uma máquina e pergunta: ‘A máquina vai esmagar a humanidade ou vai colocar se a seu serviço?’” (CAMPBELL, 1990, p. 33).
Podemos perceber, então, que o embate entre Estado e liberdades básicas, tirania governamental e liberdades individuais, realmente costuram a obra de George Lucas; não se trata, pois, de enxergar coisas onde não há, mas de compreender mais profundamente aquilo que permeia tal universo da trama. O Estado como poder opressor e os indivíduos unidos a fim de eliminar essa ameaça surge em Star Wars e se une à realidade de maneira latente. Parece-me, após essa breve análise, que tanto na obra geek quanto na vida real, o Estado sempre representa um modelo de opressão e tirania contra os indivíduos que prezam por seus princípios, crenças e liberdades.
A Resistência surge em Star Wars como uma organização que busca tornar as coisas novamente democráticas, retornando à normalidade da velha república galáctica. Com o intuito de tornar as coisas novamente estáveis, a estratégia é manter aceso o lado bom da força; isto é: os princípios da liberdade, a defesa de uma ordem cósmica a partir da ordem Jedi, além de vencer o mal através de um embate militar frontal. Luke Skywalker, por exemplo, afirma que a Ordem Jedi é uma religião, o que faz dele um sábio que a Resistência tem como conselheiro, guerreiro e mantenedor das tradições de outrora. O próprio Joseph Campbell, que também é acadêmico em religiões comparadas, afirma que o divino faz parte do universo de Star Wars.
Na memorável cena na ilha de Ahch-To, um recanto escondido da ordem Jedi, Luke tenta se afastar dos problemas galácticos e da batalha da Resistência contra a Primeira Ordem, esperando a sua morte de maneira calma e isolada. Entretanto Rey vai buscá-lo na ilha a afim de obter treinamento Jedi e tentar convencê-lo a ajudar a Resistência naquilo que figurava como a última batalha entre as forças. Ao receber o treinamento, fica claro para Rey a transcendência dos ensinamentos de Luke, desde os livros sagrados da ordem jedi, assim como a estratégia de Luke de levá-la até os limites do bem e do mal para treinar sua resistência moral ao maligno.
Tais temáticas são basicamente de cunhos religiosos; ainda no livro “O poder do mito”, Campebell afirma:
“Todo indivíduo que teve uma experiência com o mistério sabe que há uma dimensão do universo que não corresponde àquela avaliável pelos sentidos. Há uma afirmação pertinente em um dos Upanixades: ‘Quando, diante da beleza do pôr do sol ou de uma montanha, você pára e exclama ‘Ah’, você está participando da divindade’”. (CAMPBELL, 1990, p. 225)
Fica claro, então, que a resistência possui três princípios básicos:
1) a busca pela velha república galáctica (democracia) que durante mil anos foi mantida em paz;
2) a luta pela liberdade como princípio ordenador das coisas e gérmen inegociável;
3) e a religião Jedi como arcabouço das tradições ancestrais e conhecimentos históricos.
Além disso, a ordem Jedi representa a força guerreira milenar da configuração republicana das galáxias. Alguma semelhança com a estrutura democrática ocidental: democracia, liberdade e religião (ou moral)?
Como afirmei no início do ensaio, sou partidário de que, quando adentramos às salas dos cinemas para assistir Star Wars, deveríamos antes ir preparado para nos deixar imergir num universo fictício onde o arranjo da história nos levará para umas boas horas de aventura, emoção e imaginação. Deixe a política para as reflexões posteriores; nem tudo é política, guardem isso.
A análise que fiz acima procura entender o universo de Star Wars em analogia com a nossa realidade política, e me permiti isso pois creio ser importante entender certas questões política que o filme traz em forma de filetes isolados. Porém, não quis e nem poderia adicionar ao enredo do filme impressões políticas minhas; não quis achar na obra aquilo que a obra não possui. Entretanto, tão importante quanto ensinar certo, é desmentir os ensinamentos errados. Muitos “críticos” pinçam partes de filmes e livros e usam como agasalhos para suas ideologias políticas, fazem isso com o intuito de justificar ou conquistar mentes pueris que se encontram prontas para se prenderem ao primeiro discurso inteligentinho que aparecer.
Há filmes que o caráter político é o cerne da obra; por exemplo, como assistir um filme da vida de Winston Churchill sem pensar politicamente? Como assistir “Diário de Motocicleta” e não pensar no comunismo e na revolução cubana? Obviamente que nesses casos o ato de envolver o pensamento político faz parte da interpretação da obra em si; entretanto, esses parcialismos erigidos por pseudo-críticos que querem justificar suas visões ideológicas em cima de Star Wars, isso não só é desnecessário como totalmente dispensável. A crítica ideológica de Star Wars em nada agrega à trama.
A política, ainda que costure o filme e nos permita reflexões como as que fiz acima, não é necessária. Para aproveitarmos bem esse magnânimo universo é necessário antes estarmos dispostos a nos desprendermos das nossas realidades políticas polarizadas de direita vs esquerda, conservadorismo vs liberalismo, Lula vs Bolsonaro.
Acredite, por vezes apontar para direita poder ser apenas o ato de escolher um sapato em uma vitrine, e não uma insurreição conservadora; assim como Snoke pode ser a personificação de Stálin, ou apenas um personagem fictício que nada quis transparecer em simbolismos políticos paralelos.
Star Wars seria muito melhor aproveitaa se críticos, fãs e o público em geral não agissem como proselitistas e politiqueiros.
Referência: CAMPBELL, Joseph. O poder do mito, São Paulo: Palas Athena, 1990
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