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Até ontem pouco se ouvia falar de Kiev e Kharkiv; a guerra acontece em regiões, culturas quase desconhecidas. Mas é difícil se abster de opinião quando o assunto toca a alma, que teme o sofrimento, o exílio e a morte. Humanamente, somos todos irmãos; convidados a sentir compaixão. Por isso – hoje – soa como declaração de impiedade confessar determinadas ignorâncias. Por exemplo: que não se entende de geopolítica, nem se conhece a ambição de Putin, nem jamais se importou com a Ucrânia.
No entanto, a nossa consciência não deve ceder à pressão popular de opinar sobre tudo; às vezes ter opinião é sinônimo de precipitação. O imediatismo pós-moderno pede que confundamos a liberdade de pensamento com a reprodução das opiniões de terceiros, das informações midiáticas que costumam tomar partido. De repente, damo-nos conta de que informação é diferente de conhecimento; e, sobretudo, que fatos espaçados são insuficientes para chegar a juízos acertados. Neste caso, deve-se entender a filosofia por trás do governo de Putin, que tem Alexander Dugin como o seu principal influenciador.
Apresentação da Quarta Teoria Política de Dugin
Putin é uma esfinge para o Ocidente. Afinal, somos inseridos no embate político a partir de três teorias: o liberalismo, o comunismo e o fascismo. O apoiador de cada via costuma discordar do outro com veemência; o debate está cada vez mais polarizado.
Não à toa o eleitor de Bolsonaro abomina Cuba, assim como o pró-cuba execra Trump. Mas o influenciador de Putin pensa com artifícios tão próprios, que é capaz de unir as ideias antagônicas, articulando o que teoricamente há de bom e de ruim em cada teoria política.
Heranças e críticas do fascismo e nazismo na visão de Dugin
Do fascismo, ele absorve o reconhecimento de que a política é um fenômeno cultural que deve harmonizar o abstrato e o concreto, o governo e o ethos, palavra grega que designa a síntese dos costumes do povo. Em termos práticos, isso significa que é imprudente adorar um modelo estrangeiro e aplicá-lo a outra nação sem emendas. Seria como importar a economia americana para o povo russo, que tem um estilo de vida completamente diferente do american way of life.
De modo que – na visão de Dugin – é preciso harmonizar os projetos políticos com a crença religiosa, a comunidade linguística, a vida diária e os recursos naturais do povo. Algo que os fascistas e nazistas sempre fizeram: governaram tendo em vista a restauração do ethos local. Exemplo disso é a utilização da ópera por parte de Hitler: o compositor alemão Richard Wagner escreveu peças famosas, que tratam de uma Alemanha mítica e predestinada à glória, e o ditador usou-as para a fundação do Terceiro Reich, na Ópera Estatal de Berlim.
No entanto, Dugin não se autodeclara fascista, posto que tem críticas à terceira via. Diz que o fascismo erra ao defender a soberania de um único ethos, de modo a oprimir as manifestações culturais de outros povos. Assim, o influenciador de Putin condena o racismo à sua maneira, que além de caracterizar a cor da pele, desdobra-se no racismo civilizacional, que divide os povos entre os civilizados e os bárbaros; cultural, que defende a existência de culturas superiores e inferiores; evolucionário, que confunde princípios darwinistas com teoria política; tecnológico, que entende o progresso como desenvolvimento técnico; social, que imagina a economia como a base da humanidade de modo a segregar ricos e pobres.
Heranças e críticas ao comunismo
Finalmente, com fortes críticas ao economocentrismo, Dugin elogia o comunismo. Ele diz que os discípulos de Marx identificam perfeitamente as contradições do capitalismo, o regime político que ao mesmo tempo defendeu a liberdade e escravizou os operários na Revolução Industrial. É fácil concordar que a jornada de trabalho – na ascensão do capitalismo – era desumana: o povo submetia-se a trabalhar até 16 horas por dia, com salários abaixo do nível da subsistência, entre outros aspectos degradantes. Além dos antigos problemas, ainda hoje impera a superficialidade da burguesia e a alienação da consciência.
Mas Dugin tem as suas críticas ao comunismo. Em primeiro lugar, condena a doutrina de que a história tem a sua base fincada no mundo material e são os modos de produção – em vez da consciência – que determinam a vida humana.
O influenciador de Putin também critica o fato de os comunistas pensarem que o futuro será sempre melhor, a ponto de desvalorizar a tradição e a religião, e deixar de reconhecer que algumas mudanças não são uma tocha de progresso, mas podem piorar a realidade social.
Depois, ele critica a obra marxiana que equipara a sociedade humana a um sistema mecânico, de modo a atuar independente do homem particular, cujas previsões acabaram em equívoco. Marx estava confiante de que as revoluções aconteceriam nos países industrializados, mas o socialismo foi aderido nos países agrários, dentre os quais a própria Rússia.
Finalmente, para Dugin, o pior do comunismo é o incentivo ao sectarismo, reduzindo as classes sociais antagônicas à condição de principal agente histórico.
Heranças e críticas ao liberalismo
Neste aspecto Dugin elogia o liberalismo, que não aceita reduzir o homem à vontade do Estado ou da classe, posto que valoriza a liberdade. Sem este elemento, a história deixaria de ser uma ciência humana para se tornar uma aritmética de fatos da natureza; mas a ciência histórica é a psicologia geral da humanidade. É impossível compreendê-la sem a ideia de liberdade; as figuras do gênio, do artista, do herói, do mártir e do santo.
No entanto, a concepção de liberdade do Liberalismo afasta o Ocidente do sentimento religioso fundamental para a libertação do ser humano. Como os liberais defendem a liberdade individual, acabam deslocando-a da ideia de pertencimento, comunidade e divindade, como se fosse possível ser autônomo. Mas quem é absolutamente independente?
Daí surge a crítica de Dugin. Ele diz que o excesso de subjetividade levou o Ocidente à sua própria ruína. Assim disse Sartre: “O homem é uma prisão sem muros.” O individualismo fez com que o ser humano desacreditasse nos princípios eternos, se dissociasse dos valores tradicionais, até sentir uma angústia existencial e uma desorientação diante de um mundo sem sentido. Portanto, o Liberalismo o aprisionou em seu próprio ego. Nas palavras de Dugin: “O individualismo ocidental confronta o holismo russo.”
Polêmicas de interpretação
Os seus defensores exaltam a inteligência duginiana, capaz de unir teorias políticas rivais. Eles elogiam a sua capacidade de ouvir os inimigos, aprender as técnicas deles com eles mesmos, algo tão raro neste mundo polarizado. Daí o perigo de ter um adversário como Putin, porque quando o seu opositor conhece as suas habilidades e fraquezas, como é mostrado na canônica Arte da Guerra, de Sun Tzu, vele é capaz de explorar as suas fraquezas físicas, psicológicas e econômicas.
Contudo, os críticos de Dugin afirmam que a Quarta Teoria Política não passa de um fascismo reformado. Foi uma formatação necessária, baseada no seguinte: como após a Segunda Guerra tornou-se ofensivo defender a Antiga Rússia e a Alemanha, o governo de Putin teria implicações geopolíticas sérias se continuasse cumprindo a agenda da KGB (Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti, ou Comitê de Segurança do Estado), da qual Putin foi agente, na União Soviética. De modo que seria mais conveniente adotar uma nova teoria, menos conhecida ao Ocidente, tal como a de Alexander Dugin.
Se os seus críticos estão certos, com nobres ideias, o cientista político cria uma justificação da guerra, a partir da união da teoria do conhecimento dos antigos eurasianistas, com acréscimos do tradicionalismo de René Guénon, da ontologia-fundamental de Heidegger, e de diversas correntes do estruturalismo, da sociologia e da antropologia.
Seja como for, fato é que o influenciador de Putin declara estar numa guerra eurasiana contra o Ocidente. Ele tem o objetivo de congregar diversas nações para resistir à Globalização e destruir a Ocidentalização. A sua guerra é contra o espírito moderno, que acredita estar restrito ao Ocidente. Assim, faz apelo aos russos, “convidando-os a rejeitar a corrupta elite pró-globalista, pró-ocidental, e a retornar à Tradição espiritual da Rússia (Cristianismo Ortodoxo e Império multi-étnico).”
Conjuntamente, convida “os povos muçulmanos e sua comunidade, bem como todas as outras sociedades tradicionais – chinesa, hindu, japonesa, etc. –, a unir-se nessa batalha contra a Globalização, a Ocidentalização e contra a Elite Global.”
Segundo ele, “o inimigo está lutando com novos meios – com armas informacionais pós-modernas, com instrumentos financeiros e com uma rede global. Os eurasianos deveriam ser capazes de combatê-los na mesma base e de apropriar-se da arte da ofensiva em rede.”
Quando tenta fazer determinadas alianças com as nações fora da Eurásia, é porque espera “sinceramente que os latino-americanos e também alguns norte-americanos honestos entrem na mesma luta contra essa elite, contra a pós-modernidade e contra a unipolaridade, pela Tradição, pela solidariedade social e pela justiça social.”
No Brasil, Olavo de Carvalho foi dos principais críticos de Dugin e Putin. Recém-falecido, o professor declarou: “Dugin é um pregador ostensivo da guerra e do genocídio. Ele confessa que odeia o Ocidente inteiro e que tem por objetivo declarado provocar uma Terceira Guerra Mundial, varrer o Ocidente da face da Terra e instaurar por toda parte algo que ele mesmo define como uma ditadura universal. Ele já disse que nada o entristece mais que o fato de Hitler e Stalin não terem se aliado para destruir a França, a Inglaterra e tudo o mais que encontrassem pela frente, distribuindo ao universo inteiro os benefícios que já haviam prodigalizado aos internos do Gulag e de Auschwitz.”
Diante dessas informações, finalmente, cabe refletir: qual é a sua vertente interpretativa? Você acha que a Quarta Teoria Política é um bom modelo para combater os males da modernidade, ou apenas um fascismo reformado? De que lado você está – na filosofia e na guerra?
*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia