Nota do editor: O artigo abaixo faz um contraponto à reportagem "Livro questiona teses sobre adoção por casais homossexuais", publicada na Gazeta do Povo no dia 27 de maio de 2019.
Ao início do século XX, o patrimônio jurídico brasileiro agitava-se com a possibilidade de chegada de um Código Civil. Clóvis Beviláqua, redator da primeira versão deste importante marco consagrado em 1916, costurou argumentos para a defesa do trabalho como indispensável para uma suposta guinada civilizatória no país.
Em uma iniciativa imortalizada em texto escrito – “Em defesa do Projeto de Código Civil Brasileiro”, de 1906 – o autor explica meticulosamente as escolhas legislativas tomadas. E quando trata da proibição do divórcio – que só viria a ser permitido, entre nós, em 1977 – carrega o tom para afirmar que a paz doméstica deve ser de extrema delicadeza para que a “animalidade humana” não vitime os filhos, estas “cândidas criaturas” que seriam arrastadas pelo desregramento de conduta parental caso o matrimônio pudesse ser dissolvido.
Com a pacificação do divórcio como medida necessária à realização da dignidade humana, o discurso apocalíptico de Clóvis Beviláqua se tornou, hoje, caricato. Mas, dentre outras lições históricas, segue útil para evidenciar como não é recente que no baralho político os atores centrais saquem uma carta coringa – o bem-estar de crianças e adolescentes – para apoiarem as suas próprias visões de mundo.
Hoje, paradoxalmente, ora os pequenos compõem um espectro indefeso, que deve ser resguardado de determinadas práticas e ideias consideradas subversivas; ora compõem um espectro ameaçador do qual devemos nos defender a qualquer custo. Por exemplo, ao se debater redução de maioridade penal, forjam-se, com frequência, figuras assombrosas de delinquentes mirins, em uma calorosa conclamação da sociedade para engatilhar as suas piores armas – e, em geral, para mirá-las contra uma certa juventude marcada econômica e racialmente. Ao se debaterem novos arranjos familiares, como adoção por casais homossexuais, acionam-se, por outro lado, nos contornos infanto-juvenis, figuras de vítimas em potencial de uso de drogas, de mau desempenho escolar ou de qualquer outra consequência considerada preocupante, em uma conclamação moralista da sociedade de proteger as “cândidas criaturas” com as suas pretensas armaduras.
Neste último caso, é custoso acreditar que tais narrativas se amparem em outros lugares que não o da homofobia. Bastaria testarmos a reação de nossos interlocutores com uma suposta pesquisa sobre se casais heterossexuais seriam ou não capazes de educar adequadamente os seus filhos. Haveria espanto frente a uma entrevista deste teor, porque se toma este padrão, equivocadamente, como o modo correto de se experimentarem os afetos conjugal e parental.
Pais heterossexuais não são garantia, por óbvio, de desempenho escolar exitoso ou de desinteresse em drogas. Ao revés, estes temas tocam vivências múltiplas de infância e de juventude, e dialogam com conjunturas complexas. A falta de investimento em educação emancipatória ou o fechamento radical de portas acadêmicas e profissionais para a juventude brasileira poderiam trazer bons debates sobre concretos problemas que se abatem sobre este público. Já a orientação sexual dos genitores só pode pulsar como risco para quem articula preconceito contra casais do mesmo sexo.
O exercício da parentalidade por casais homossexuais, apesar de evocar ferrenha argumentação contrária de pretensos paladinos da moral e dos bons costumes, é plenamente assegurado pelo ordenamento jurídico pátrio e por normativas internacionais de direitos humanos. O seu impedimento configura tratamento discriminatório, como bem lembraram o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 846.102 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Atala Riffo e filhas vs. Chile.
Mesmo que se considerasse relevante metrificar eventuais assimetrias entre os padrões de parentalidades por adoção, ainda é de se questionar a quais resultados se dedica espaço. Por exemplo, em pesquisa realizada pelo Evan B. Donaldson Adoption Institute, constatou-se que 60% das adoções feitas por homossexuais são interraciais. De acordo com a entidade, estes tendem a adotar crianças mais velhas, negras ou com algum problema de saúde, o que, certamente, coaduna-se com a concretização do prioritário direito à convivência familiar. Por esta perspectiva, a potência de uma família fora dos contornos hegemônicos pode significa aberturas a possibilidades mais plurais de paternidades e de maternidades.
No caso da homoparentalidade, questiona-se também frequentemente se a ausência do tradicional modelo marcado por figuras do gênero masculino e feminino pode eventualmente ocasionar efeitos danosos ao desenvolvimento ou tornar confusa a própria identidade sexual da criança, cogitando-se do “risco” de se tornar homossexual – como se a homossexualidade fosse um traço problemático de personalidade a ser repreendido.
Por outro lado, causa estranheza como quem angaria esforços para trazer um tom científico a essas preocupações não parece ter críticas tão ferrenhas ao abandono paterno nos arranjos familiares monoparentais femininos, os quais, muitas vezes, não são construídos por escolhas autônomas.
Segundo dados colhidos pelo Conselho Nacional de Justiça, mais de 5,5 milhões de crianças, no Brasil, não têm o reconhecimento da paternidade na Certidão de Nascimento. Na mesma toada, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2015, registrou um número de mais de 1 milhão de famílias formadas por mães solo em um período de dez anos. E esta questão se afigura conectada com a situação precária destas mulheres: de acordo com o próprio IBGE, mais da metade (56,9%) das famílias chefiadas por mulheres com filhos vivem abaixo da linha da pobreza. Às principais cuidadoras desta infância e desta juventude negam-se políticas públicas e se destinam narrativas cada vez mais violentas, como a de líderes políticos que a elas se referiram, em um passado próximo, como “fábricas de desajustados”.
Os padrões de heteronormatividade tóxica, cotidianamente, interrompem a vida de mulheres e pessoas LGBTI+. Só nos primeiros meses de 2019, foram registrados mais de 200 feminicídios no país. Além disso, em estudos encabeçados pelo Grupo Gay da Bahia, aponta-se que, em 2017, 320 pessoas foram mortas pela LGBTIfobia. Não à toa, discute-se no STF a possibilidade de equiparação dessas condutas ao crime de racismo, até que o Congresso Nacional legisle devidamente sobre.
Como se percebe, o pior efeito produzido às vivências de crianças e de adolescentes cuidados por casais do mesmo sexo pode não residir em casa. Reside, sim, em discursos e em práticas de ódio que insistem em apontar estes filhos como experiências desviantes.
É
verdade que a conjuntura política e jurídica contemporânea tem acrescentado riscos
graves aos horizontes de realização da infância e da juventude. Mas o aconchego
e o afeto familiares, independentemente de orientação sexual de seus membros,
não é um deles.
Ligia Ziggiotti de Oliveira é doutora em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, mestra em Direito das Relações Sociais pela mesma instituição, professora de Direito Civil da Universidade Positivo e do Centro Universitário Autônomo do Brasil, advogada e membro da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-PR e presidente da Comissão de Direito Homoafetivo do Instituto Brasileiro de Direito de Família do Paraná.
Francielle Elisabet Nogueira Lima é mestra em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito das Famílias e Sucessões, advogada e membro da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-PR, vice-presidente da Comissão de Direito Homoafetivo do Instituto Brasileiro de Direito de Família do Paraná.