Foi só a polêmica envolvendo a chamada “ração humana” aumentar que o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou, nesta quinta-feira (19), que desistiu de incluir o composto feito com alimentos perto da data de validade em escolas. O recuo veio um dia após Doria anunciar a ideia, sem avaliação prévia da Secretaria Municipal de Educação.
A discussão começou no dia 8 de outubro, quando o tucano gravou um vídeo durante um evento com lideranças religiosas, o Você e a Paz, no auditório Ibirapuera. Segurando um pote cheio de algo que parecia uma pipoca grande, ele anunciou o lançamento do programa Alimento para Todos. “Aqui você tem alimentos que estão sendo jogados no lixo, e que estão sendo reaproveitados, com toda segurança alimentar. São reutilizados e transformados num alimento completo, em proteína, vitamina e sais minerais”. O pote era decorado com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, e o prefeito aproveitou para garantir: “Este é um produto abençoado.”
Rapidamente, a “ração humana” do prefeito de São Paulo começou a receber críticas. O Conselho Regional de Nutrição de São Paulo divulgou uma nota em que afirma: “O CRN-3 se manifesta contrário à proposta, pois contraria os princípios do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), bem como do Guia alimentar para a população brasileira, em total desrespeito aos avanços obtidos nas últimas décadas no campo da segurança alimentar e no que tange as políticas públicas sobre as ações de combate à fome e desnutrição”.
O Ministério Público de São Paulo também abriu uma investigação sobre o composto alimentar.
Em reação, o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, correu para se manifestar a favor da iniciativa. Sentou-se ao lado do prefeito para uma entrevista coletiva, na quarta-feira (18). “Eu fico ofendido quando se diz que é ração. Desprezo ao pobre é negar o alimento, é a fome. Quando se fica politizando a fome do pobre em vez de socorrê-lo, isso sim é ofensa ao pobre, a sua dignidade”.
A fundadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns (1934-2010), defendia uma solução parecida ainda nos anos 1970, uma mistura de farelo de arroz e sementes moídas que ela chamava de multimistura.
Por enquanto, no entanto, segundo a prefeitura de São Paulo, a farinata deve ficar de fora do cardápio escolar. A prioridade em uma eventual distribuição será para famílias em situação de vulnerabilidade social.
Mas afinal, o que é o tal alimento? Ele é uma opção alimentar viável?
A discussão começou com a aprovação de um projeto de lei, apresentado em 2016 (durante a gestão anterior da prefeitura, portanto) e de autoria do vereador Gilberto Natalini (PV). O projeto 01-00550/2016 estabelece diretrizes gerais para a criação de uma Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos.
A proposta pede que a prefeitura atue na racionalização do manejo de alimentos e estimule a distribuição de alimentos que, de outras maneiras, serão desperdiçados. O texto não mencionava o produto que o prefeito mostrou em seu vídeo. “Nosso projeto é muito amplo no combate à fome e ao desperdício de alimento”, explica Gilberto Natalini.
Mas o que foi que Doria mostrou então? E por que o fez?
Aquela pipoca se chama farinata, e foi desenvolvida por uma instituição sem fins lucrativos chamada Plataforma Sinergia. A ideia é aproveitar frutas, legumes, verduras e mesmo produtos, como macarrões, que seriam descartados por não ter valor comercial. Processá-los e, assim, aumentar sua vida útil. Transformado em pó, poderia ser usado como complemento alimentar. Poderia enriquecer pães, sopas e bolos, por exemplo.
Não é uma ração humana, portanto, mas um granulado que poderia ser usado para reduzir o desperdício e melhorar a qualidade da alimentação de pessoas carentes. Natalini não menciona esse produto no projeto de lei, mas concorda com ele. “A farinata é uma das muitas formas que pode ser utilizada e é uma proposta positiva e factível”, afirma.
A proposta da prefeitura é coletar alimentos doados por feirantes, restaurantes e mercados e entregá-los para a Plataforma Sinergia, que produziria a farinata. Ela seria distribuída para igrejas, ONGs e abrigos da prefeitura.
Projeto ruim
Mas funciona? O produto poderia, de fato, enriquecer a alimentação?
“Esta é uma boa ideia e um mau projeto”, responde Celso Cukier, médico nutrólogo que atua no hospital Albert Einstein, de São Paulo. “A ideia essencial é boa: o pó, por ter menos água, forma um componente mais durável. Mas existem muitos pontos que a prefeitura precisa elucidar melhor”.
Por exemplo, diz ele, não existe na capital paulista um mapeamento sobre as pessoas que sofrem deficiência alimentar, quantas são, onde vivem e de que nutrientes precisam. Mesmo a iniciativa de levar o produto a creches e escolas é questionável, diz ele. “Se o prefeito diz que o pó é um complemento nutricional, está afirmando que hoje a merenda escolar é insuficiente. Se afirma que é suplemento, então as crianças estão desnutridas. Não existe um projeto detalhado para a implementação. Se existisse, poderia ser uma boa iniciativa”.
A farinata tem alguma coisa a ver com comida de astronauta?
Quem fez a comparação foi o próprio prefeito, durante uma viagem a Milão. “O alimento é liofilizado, o mesmo que os astronautas consomem em missões espaciais”. De fato, alimentos liofilizados são desidratados a baixas temperaturas, de forma a demorar anos para estragar – à medida que perdem água, demoram mais para estragar. É assim com a farinata.
Mas não é o caso das refeições servidas pela Nasa, a agência espacial americana, no espaço. “A comida de astronauta não é liofilizada, ela passa por outros processos bem mais avançados”, diz Celso Cukier.
“Astronauta nenhum comeria a comida do Doria”.
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