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Até pouco tempo atrás o nome de Anitta (nem sabia que se escrevia com dois “t”) não me dizia muita coisa. Lembrava-me algo relacionado a uma artista. Sabia que ela cantava e dançava e que suas músicas faziam sucesso. Explicaram-me depois que era funk o que ela cantava e que até o momento ela tinha conseguido ficar famosa e reunir uma boa quantidade de dinheiro. Não sabia muito mais sobre ela, até porque meu mundo e meus interesses estavam em outro lugar. Nada demais. Simples desinteresse ou, mesmo até, mundos separados. Nada contra nem a favor.
E, então, não mais que de repente, alunas, professores e colegas começaram a me perguntar o que é que eu achava do fato de a Anitta ter entrado para o conselho administrativo de um conhecido banco digital. Demorei um pouco para responder, explicaram-me melhor a coisa toda e, de novo e mais uma vez, as perguntas voltaram: pode uma coisa dessas? O que você acha? Faz sentido contratarem a Anitta?
E não sei bem por que comecei a ver, em todos aqueles e aquelas que me perguntavam, o rosto da Rainha de Copas. Aquela de “Alice no País das Maravilhas”que adentrou apressada num jogo de croquet, sentenciando a torto e direito: Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!!
Faz o quê? Talvez uns 20 ou 25 anos atrás, quando comecei a dar aulas de História da América, havia duas afirmações que funcionavam quase como um mantra: estou sendo neutro e não estou fazendo nenhum juízo de valor. Nos tempos que correm, se eu ousar (aliás, como ousei mesmo em algumas das minhas respostas) dizer uma dessas duas frases, acredito que não demorará muito para alguém me cancelar ou para ser chamado de lacrador (aliás, essa novilíngua, como diria Orwell, também não existia 20 anos atrás).
O cancelamento de Alice
Uma das primeiras coisas que a Rainha de Copas faz quando se encontra com Alice é perguntar-lhe quem são aquelas outras personagens (também cartas de baralho) que estavam no jardim e no jogo. Alice tentou explicar que não sabia de nada porque não as conhecia e porque tinha acabado de chegar, mas a Rainha nem esperou que ela acabasse a sua explicação e já foi sentenciando: que lhe cortem a cabeça! Que lhe cortem...
Alice bem que tentou explicar: Como é que eu vou saber?! Não é da minha conta. Mas não adiantou de nada. A Rainha já a tinha “cancelado” e estava se dirigindo para outra coisa, porque se a Rainha tinha algo claro era que a melhor forma de resolver os assuntos e os problemas era ficar furiosamente possessa, batendo com os pés no chão e gritando “Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!”.
De pouco adiantou eu responder que não tinha nada a ver com esse assunto da Anitta e que me parecia que ele era um problema dos diretores e gestores do banco. De repente, em quase todas as situações em que me foi feita essa questão, aparecia-me diante a Rainha de Copas: mas como assim?! Como você não acha nada?! De que lado você está?!
Parecia-me, claro, que de pouco adiantaria dar a mesma resposta que Alice deu à Rainha e explicar que simplesmente aquilo não era assunto meu e não me dizia respeito. Adiantaria de muito pouco porque, invariavelmente, nenhum dos que me perguntavam ficavam satisfeitos com a minha resposta e voltavam à carga pedindo-me uma opinião.
Sentença já está dada
E vi com uma profunda intuição que me encheu de pavor e de tremor, como talvez teria dito Shakespeare, que desde algum tempo, neste mundo em que nos tem tocado viver e em que estamos todos conectados, preciso ter uma opinião (não precisa ser algo muito fundamentado e pensado; basta que seja uma opinião e que seja postada ou tuitada) sobre tudo e todos: desde o problema dos uigures até o clima da Tanzânia, desde a última contratação feita por uma firma escandinava para seu conselho executivo até a cor da echarpe da Rainha da Inglaterra, passando, é claro, pelo fato do Sérgio Ramos não ter renovado com o Real Madrid. Como é que eu posso viver sem ter uma opinião sobre tudo isto? E mais, sem ter uma opinião sobre tudo?
Nos capítulos seguintes do romance, assistimos a um julgamento “extremamente sério e grave” para saber quem roubou as tortas da Rainha. Um julgamento com testemunhas, questões e perguntas, depoimentos e provas. Quem ler, poderia pensar que é uma das partes mais estranhas e surrealistas do livro todo, se não fosse pela CPI da Covid, que confirma e corrobora a intuição profunda de Lewis Carroll: a sentença já está dada.
A Rainha de Copas não espera sequer a que o júri forme um veredicto. Ela já tem a sentença pronta. Esse surrealismo todo que estamos vivendo me faz pensar que, na verdade, quem pergunta, quem questiona, quem quer saber o que é que pensamos sobre a Anitta ou sobre isto ou aquilo não quer saber nada disso. Quer apenas explicitar sua sentença. Informar a decisão que já tomou. Dizer-nos a todos e em alto e bom som que ele está do lado certo e que ai de você se estiver do lado errado, porque se estiver... cortem-lhe a cabeça!