A reforma da lei de aborto que o governo espanhol preparou não traz uma alteração significativa nos requisitos para abortar. Seus efeitos mais importantes serão de outra ordem, pois o novo texto legaliza uma certa concepção da sexualidade e habilita os poderes públicos a fomentá-la e implantá-la na educação, na saúde e em todas as políticas públicas.
O anteprojeto de lei foi apresentado à opinião pública como nova lei de aborto, mas na verdade o nome corresponde muito pouco à coisa. Ainda que se denomine formalmente "anteprojeto de lei orgânica pela qual se modifica a lei orgânica 2/2010, de 3 de março, de saúde sexual e reprodutiva e da interrupção voluntária da gravidez”, as modificações da regulação vigente em matéria de aborto se limitam a suprimir a necessidade do consentimento paterno para o aborto das meninas de 16 e 17 anos (voltando assim à redação original de 2010, modificada em 2015 por uma maioria do Partido Popular), eliminar o prazo de reflexão de três dias entre a solicitação e realização do aborto, e ainda a entrega obrigatória de informação às solicitantes de aborto sobre auxílios à maternidade.
Essas reformas são importantes por deixarem às claras a vontade governamental de eliminar todo tipo de barreira ao aborto, reforçando assim sua configuração legal como um direito subjetivo ordinário das mulheres. Mas, de um ponto de vista operacional, sua incidência sobre a realidade do aborto na Espanha vai ser nula ou mínima, já que a intervenção dos pais com muita frequência só acrescenta uma pressão extra sobre as meninas para abortarem; ademais, o prazo e o envelope fechado com informações eram, na prática, mero trâmite burocrático, já que não correspondiam a um esforço real de acompanhar uma decisão responsável e pensada. Todo o sistema legal da norma de 2010 estava organizado para facilitar e promover o aborto e continuará sendo assim… um pouco mais descaradamente.
As novidades da lei
No entanto, esta nova lei não será anódina, e sim transcendente, pois continua e aprofunda a incorporação, ao ordenamento jurídico, dos princípios ideológicos e da terminologia próprios da nova antropologia de gênero como alternativa imposta pelo poder à tradição humanista do Ocidente em matéria de sexualidade e direito à vida. Ademais, nesta nova lei se atribuem aos poderes públicos muitíssimas competências novas para intervir em todos os setores da vida social a fim de implementar e financiar políticas de doutrinação da nova antropologia.
Já no artigo 1 da lei 2/2010 na nova redação do anteprojeto se incorpora como objeto da norma “estabelecer as obrigações dos poderes públicos (…) em relação com a sexualidade e a reprodução”. Esta é a verdadeira novidade: habilitar os poderes públicos para se imiscuírem ativamente na conformação das ideias e na conduta da população em matéria de sexualidade e reprodução. Em consonância com esse propósito, dos 49 artigos da nova redação na lei de 2010, 33 têm como conteúdo mandados ou habilitações aos poderes públicos para intervir nas opiniões e condutas sexuais dos cidadãos; e sempre na chave de gênero e promoção do aborto (o qual é qualificado expressamente como direito humano) e a contracepção (configurada como serviço universal, público e gratuito), como se encarregam de esclarecer os artigos 2 (definições), 3 (princípios norteadores) e 5 (políticas públicas) ao demarcar conceitualmente a interpretação de se deve dar à peculiar terminologia da lei e os critérios para interpretá-la.
Assim, o anteprojeto obriga os poderes públicos a apoiarem as ONGs feministas que trabalhem na chamada "saúde reprodutiva" (art. 6), garantirem o acesso universal a práticas e meios de planejamento da reprodução nos serviços sociais, centros educacionais e farmácias (arts. 6 e 7), financiarem publicamente todo tipo de métodos anticoncepcionais (disposição adicional terceira), a impor a educação sexual – tal como a entende a própria lei – em todo o sistema educativo, incluindo alunos, pais, professores e profissionais de saúde (arts. 9 e ss.), financiarem publicamente a pesquisa com enfoque de gênero em matéria de saúde sexual (art. 11 bis), e promoverem e financiarem publicidade institucional nas matérias da lei (art. 27), etc.
Estamos então diante de uma nova lei recheada de intervencionismo administrativo posto a serviço de uma peculiar concepção da sexualidade que parece esquecer que, numa democracia, pode-se opinar sobre sexualidade em liberdade, e que o Estado não pode fazer sua uma determinada ideia da pessoa e de sua sexualidade para impô-la a toda a sociedade. O conteúdo desse anteprojeto é incompatível com o pluralismo ideológico que a Constituição garante, e revela a tentação totalitária subjacente às atuais teorias de gênero, como se vem denunciando desde diversas instâncias acadêmicas, religiosas e sociais (por exemplo, a plataforma feminista contra o apagamento das mulheres), tanto na Espanha como em muitos outros países.
A estratégia das "leis integrais"
De um ponto de vista estritamente jurídico, esse anteprojeto corresponde ao modelo das chamadas "leis integrais" (volta e meia criticado pelo Conselho Geral do Poder Judicial em seus relatórios sobre este tipo de normas). Trata-se de leis que pretendem regular integralmente uma matéria desde uma perspectiva ideológica monolítica e para isso estabelecem preceitos que se intrometem nos assuntos regulados por outras leis sem modificá-las, gerando assim grande insegurança e dificuldades de interpretação sobre a vigência e/ou prevalência de umas ou outras leis. Esta técnica foi usada em matérias como violência de gênero, infância, LGBTI ou o fenômeno trans; e volta a ser usada agora: legisla-se sobre temas já regulados na legislação de educação, saúde, trabalho etc. com critérios distintos dos das leis substantivas na matéria, mas sem modificá-las. Tenta-se assim introduzir a perspectiva ideológica peculiar dessas leis integrais em todo tipo de assunto, presumindo que o posterior ativismo político e midiático (e ainda o judicial) acabará impondo a releitura das leis tradicionais nas novas chaves ideológicas semeadas pelas leis integrais.
Trata-se, em escala nacional, da mesma técnica usada em nível internacional nas últimas décadas para provocar – com certo êxito até o momento – uma releitura dos direitos humanos na chave do laicismo de gênero: onde um tratado diz, por exemplo, "direito à vida", um comitê, ou uma resolução, ou uma declaração de princípios de sabe-se lá quem, interpreta que se está falando do direito ao aborto. Ato contínuo, citam esse comitê, ou resolução, ou declaração de princípios, como se fosse o próprio tratado, e afirmam que essa é a fonte do direito internacional aplicável na questão. Este fenômeno foi qualificado como depredação dos direitos humanos, isto é, como seu sequestro e reinterpretação por uma ideologia nitidamente anti-humanista, contrária à letra e ao espírito dos textos originais, que são a autêntica fonte do direito internacional na matéria.
A exposição de motivos do anteprojeto é um exemplo desse fenômeno: apresenta os conteúdos dessa nova lei como aplicação obrigatória do direito internacional em matéria de direitos humanos com um respeito à verdade das fontes claramente escasso, e com expressa manipulação das mesmas. Convém recordar que nenhuma norma de direito internacional, nem universal, nem regional, nenhum convênio nem tratado, reconhece o aborto como direito humano, nem obriga a legalizá-lo. Nenhum convênio nem tratado internacional reconhece nem a perspectiva de gênero, nem a chamada saúde sexual e reprodutiva. Nenhuma norma de direito internacional avaliza nem preconiza a imposição estatal de uma visão concreta da sexualidade.
Algumas questões particulares
À margem das já mencionadas modificações no regime jurídico do aborto, o anteprojeto introduz também algumas novidades normativas concretas em outras matérias que comentamos abaixo:
— Modifica-se a regulação do direito à objeção de consciência do pessoal de saúde com as mesmas chaves restritivas usadas na recente lei de eutanásia, criando um registro de objetores no qual se deverá fazer constar a vontade de objetar com caráter prévio e por escrito.
— Obrigam-se as comunidades autônomas a garantir o acesso ao aborto em centros públicos próximos ao domicílio da interessada, para evitar o que chama de “falta de equidade territorial” na prática dessas intervenções. [As comunidades autônomas são como que as unidades federativas da Espanha. Gozam de mais autonomia do que os estados brasileiros; e, embora seja uma monarquia parlamentar, nesse aspecto lembra o modelo federativo dos EUA, que permite uma grande variação legal dentro do seu território. (N. t.)]
— Criam-se serviços integrais de assistência em matéria de saúde sexual e reprodutiva, bem como um telefone 24 horas para informar sobre aborto.
— Incrementa-se o apoio público à contracepção: gratuidade da pílula do dia seguinte, que será distribuída nos centros de saúde e outros serviços especializados; distribuição gratuita de contraceptivos de barreira em centros educacionais; estímulo à contracepção hormonal masculina; financiamento público de contraceptivos reversíveis de longa duração; disponibilidade obrigatória de contraceptivos de emergência nas farmácias, etc.
— Estímulo à educação sexual na escola em todos os anos na chave de gênero, em linha com a última lei de educação (ley Celáa) e exigência de formação em matéria de aborto nas carreiras de ciências jurídicas, saúde, educação e ciências sociais, bem como nos pontos dos concursos públicos vinculados a essas carreiras.
— Criação da saúde menstrual como padrão de saúde com a consequente educação na matéria em todos os anos, o financiamento público de produtos menstruais e sua distribuição gratuita em centros educacionais, penitenciários etc.
— Regulação da responsabilidade do Estado em face das chamadas "violências obstétricas ou ginecológicas', isto é, atuações sem o consentimento informado das pacientes, aborto e esterilização ou contracepção forçadas etc. Esta previsão legal chama a atenção e foi criticada por organizações médicas, pois se refere a práticas que já são ilegais e parece insinuar que ainda assim são algo habitual que urge proibir.
— Reconhecimento da gestação por substituição [i. e., barriga de aluguel (n. t.)] como violência contra a mulher, mas com a única e tímida consequência prática de proibir a publicidade das agências de intermediação nessa matéria (proibição ineficaz na época da internet).
— Criação da situação de incapacidade temporal por menstruações incapacitantes, aborto – voluntário ou espontâneo – e a partir da trigésima nona semana da gravidez.
Avaliação final
Este anteprojeto é parte de uma profunda trama ideológica, banaliza ainda mais o aborto, aposta descaradamente na sexualidade sem reprodução e na contracepção, prevê um intervencionismo administrativo acachapante e pouco respeitoso com a liberdade e promove a doutrinação geral para a visão da sexualidade que o inspira. Sua operacionalidade prática dependerá de quem governe a cada momento, especialmente nas comunidades autônomas. É um perigo para o pluralismo e para a neutralidade ideológica das administrações públicas.
Não há aí nem vestígio do apoio à vida do não-nascido, nem à mulher grávida que possa desejar dar à luz o seu filho.
© 2022 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.