Ninguém consegue viver sem acreditar em algo. E se, por um lado, é impossível que G. K. Chesterton, o bem-humorado escritor britânico e árduo defensor do cristianismo, e Friedrich Nietzsche, o autor da “morte de Deus”, estejam simultaneamente corretos, a pós-modernidade provou ao menos que, se Deus está morto, é possível acreditar em qualquer coisa.
De um lado, marcas de cosméticos, academias, programas de emagrecimento e aplicativos de ioga prometem não apenas uma pele hidratada, alguma capacidade de concentração e músculos definidos, mas a suprema manifestação do Bem em um corpo inerentemente puro, corrompido pelo glúten ou pelo capitalismo e redimido por produtos que custam uma fortuna.
Do outro, militantes apaixonados que abraçam causas justas - a luta contra o racismo, o machismo e a homofobia - de forma análoga a radicais religiosos ávidos por caçar bruxas nos tribunais do cancelamento da internet. Estão na mira destes justiceiros qualquer herege que ouse desafiar sua sacrossanta mitologia da Queda através da opressão sistêmica de gênero, raça e orientação sexual, ainda que se prove que, em muitos casos, a “tríade” da diversidade não seja suficiente para explicar as condições dos desvalidos (ainda que façam parte da soma).
Lançado em junho deste ano, “Strange Rites: New Religions for a Godless World” (“Ritos Estranhos: Novas Religiões para um Mundo sem Deus”, em tradução livre), da teóloga americana Tara Isabella Burton, oferece um bom resumo das novas crenças que estão a pipocar pelos Estados Unidos - com um número presumivelmente grande no Brasil -, encantando uma geração de jovens “espiritualizados, mas não religiosos”.
E, do mesmo terreno millenial de onde brotam os evangelhos do bem estar e da justiça social, nasce também o que a autora chama de “tecno-utopismo”: a última atualização das crenças transhumanistas disponível no mercado, cujo Bem com “B” maiúsculo é a superação na natureza humana através da tecnologia.
A proposta não é nova: basta uma análise da indústria de Hollywood para notar que, cada vez que há uma nova tecnologia à vista, a humanidade (ou mesmo seus predecessores, como retratado em “O Planeta dos Macacos”) experimenta ondas de empolgação, terror e ansiedade diante das portas que se abrem (sempre manifestando sua tendência de deificar o batente). Com a internet, não foi diferente.
Segundo Burton, há 25 anos - quando a internet deixou de ser conversa de cientista e chegou ao povo - os críticos Richard Brooks e Andy Cameron identificaram o que eles viram como “uma tendência crescente no Vale do Silício e na América”. “Eles chamaram essa ‘mistura de cibernética, economia de mercado livre e libertarianismo de contracultura’ de ‘ideologia californiana’”, relata Burton.
“Essa ideologia californiana era, segundo os autores, uma (...) confiança profundamente enraizada tanto no potencial humano tecnologicamente assistido para a autotranscendência quanto na promessa moral do que tal transcendência poderia significar (...) Na utopia digital, todos serão modernos e ricos”, explica a autora.
Onipresente, onisciente e online
Enquanto a mitologia da justiça social localiza o Mal nas formas de opressão sistêmica baseada em identidade, desconfiando de qualquer possibilidade de conhecimento senão através da experiência individual (validando, portanto, qualquer emoção humana), o tecno-utopismo ao qual Burton se refere - por vezes chamado de trans-humanismo ou racionalismo - tem como inimiga a própria natureza do homem.
“A ideologia californiana trata todos os seres humanos, independentemente de seu contexto social, como mentes autônomas presas em corpos frágeis”, diz a autora. Burton afirma também que estes grupos são fundamentalmente anti autoritários e adeptos do libertarianismo.
Escreve a teóloga: “esses grupos celebram o potencial humano para reescrever a tradição e religar nossos corpos, mentes e percepções. De diferentes maneiras, eles valorizam a luta - indivíduos intrépidos rejeitando códigos estabelecidos, sejam eles sociais ou biológicos, e formando uma nova sociedade baseada em visões de liberdade humana".
Para estes tecno-utópicos, o “reino dos Céus” é um mundo no qual todas as limitações físicas e até psicológicas do ser humano são superadas por meio da tecnologia - seja através de criação de ciborgues (misturas de homem e máquina), como propõem as correntes trans-humanistas, seja através da “mera” superação das falhas humanas através da razão, como pretende o racionalismo.
Ray Kurzweil, inventor futurista americano, autor de palestras no TED Talks sobre como a tecnologia nos transformará, caracterizou este “fim da história” como a versão digital do reino celeste. “A singularidade [proporcionada pelo avanço tecnológico] nos permitirá transcender essas limitações de nossos corpos e cérebros biológicos. Vamos ganhar poder sobre nossos destinos, nossa mortalidade estará em nossas mãos”, promete.
A “porta estreita” pela qual passam os que “têm fome e sede de justiça” é coisa do passado: as virtudes que levam à nova vida eterna são curiosidade, pensamento crítico, perfeccionismo e racionalidade. Afetos, tradições, emoções: tudo é superado e substituído por contratos detalhadamente construídos para ajustar as vontades dos envolvidos. A igualdade será a óbvia consequência deste novo arranjo, tecido pelos novos semideuses da tecnologia.
Liberdade, igualdade e imortalidade. O que pode dar errado?
De acordo com a União Internacional de Telecomunicações, 4,1 bilhões de pessoas utilizam a internet - o que corresponde a 53,6% da população mundial. Ainda que as taxas internacionais de pobreza diminuam ano a ano, basta observar o “apagão” do ensino público (graças à falta de acesso à rede e aparelhos de qualidade) em meio à pandemia do coronavírus em países com grande desigualdade, como o Brasil, para perceber que o maravilhoso mundo dos ciborgues imortais está um bocado longe da realidade.
Pode-se considerar, contudo, que este “reino dos céus digital” não seja, de fato, destinado a todos. “Dentro da ideologia californiana, os melhores e mais brilhantes deveriam ter liberdade absoluta para moldar nosso mundo, com pouca ou nenhuma regulamentação ou impedimento para suas várias decisões, inovações e interrupções. Eles não estão apenas se tornando o que eles têm de melhor, mas otimizando o mundo para o resto de nós , descreve Burton.
O professor de ciência política da Universidade de Notre Dame, Patrick Deneen, autor de “Por que o liberalismo fracassou” (Editora Aynê), explica que a criação de uma “nova aristocracia” intelectual, com “permissão” para moldar o mundo ao sabor dos seus caprichos e sem qualquer, é, justamente, o resultado prático deste novo liberalismo aplicado.
Assim, o deslumbramento do público diante de novidades anunciadas por esta casta de “gênios salvadores”, que prometem toda sorte de melhorias, mistura-se à a sensação conjunta de apreensão e inevitabilidade, e chega à arte na forma de distopias cuja salvação ou perdição da humanidade está nas mãos das máquinas. Desde o “Frankenstein” de Mary Shelley, a humanidade teme o dia em que suas criações se virarão contra ela.
"Tudo deve ceder, em algum grau, a seu desenvolvimento (...) As ferramentas não estão integradas à cultura; elas atacam a cultura. Como consequência, a tradição, os costumes sociais, o mito, a política, o ritual e a religião precisam lutar para sobreviver" em um mundo que opera sob a ideologia do progresso que leva à "submissão de todas as formas de vida cultural à soberania da técnica e da tecnologia", escreve Deneen.
Há ainda o evidente problema das doenças mentais decorrentes do vício em redes sociais e o consequente estado de isolamento, narcisismo e desconexão com a realidade tão claramente retratado pelo documentário “O Dilema das Redes”, na Netflix. "O que essas críticas têm em comum é a suposição de que nossa tecnologia está nos modificando, frequentemente para pior. Somos os objetos de sua atividade e em grande medida nos vemos impotentes diante de seu poder transformador", avalia o professor.
A raiz do problema
É o próprio Deneen, contudo, quem propõe um outro ângulo para a questão da tecnologia. Em sua profunda crítica à ideologia do liberalismo, cuja raiz, para ele, é uma nova concepção de liberdade, o problema da tecnologia é muito anterior à internet, dado que esta está longe de ser a primeira invenção do homem. “Trata-se menos de uma tecnologia que 'nos molda' e mais de profundos compromissos políticos que moldam nossa tecnologia".
"A liberdade, da maneira como definida pelos originadores do liberalismo moderno, era a condição em que os humanos eram completamente livres para buscar aquilo que desejassem. Essa condição - fantasiosamente concebida como um 'estado de natureza' - foi imaginada como uma condição anterior à criação da sociedade política", explica.
Como Deneen explicou em entrevista à Gazeta do Povo, a crença de que a liberdade é senão a possibilidade de se fazer o que quiser - ao invés do cultivo das virtudes que impõem limites às paixões e vícios - é o que leva seus adeptos a não apenas desenvolverem tecnologias que não procuram o bem comum, mas depositar nas próprias criações a fé no desenvolvimento.
Por isso, o mestre em Economia e Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo (USP) Bruno Lincoln interpreta o liberalismo - o fundamento da tecno-utopia descrita por Burton - como um problema de matriz teológica. Recordando a história bíblica da Queda, Lincoln lembra que, para a tradição cristã, o homem é tentado pela gnose, a capacidade de conhecer o Bem e o Mal.
“O gnosticismo é uma das primeiras filosofias que atribui ao homem uma centelha divina, a possibilidade de alcançar a transcendência sozinho. O liberalismo é mais uma forma é mais grosseira de divinizar o ser humano”, diz Lincoln.
O antídoto para esta tentação, lembra Deneen, não é a supressão da individualidade nem a revolta contra qualquer tecnologia, mas o respeito ao que é muito anterior aos smartphones e às filosofias liberais: a cultura, a família, as tradições, a natureza. Nada que possa ser construído ou restaurado em cliques.
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