Há cem anos, em 1917, mais uma vez os militantes socialistas russos tentavam insuflar uma nova onda de revolta na Rússia, onda essa que já maturava há décadas, mas não encontrava expressão popular massiva. Dostoiévski já havia previsto, em 1872, em seu romance Demônios, que a Rússia respirava profundos ares de revolução socialista. Entretanto, em 1917, a revolta seria real e não aconteceria através de Piotr Stepanovich — personagem do romance acima citado —, mas através de Vladimir Ilyich Ulyanov, conhecido mundialmente como Lênin.
Pequenas revoluções, revoltas e agremiações socialistas se acumulavam naquele país colossal no fim do século XIX e início do século XX. O mesmo país que gerou homens como Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévsky e Alexander Soljenitsin, também gerou Vladimir Lênin, Nikolai Bukharin, além de ser o país que abrigou e levantou Josef Stálin ao status de “imperador” soviético.
Eis, aliás, o paradoxo das grandes nações: a capacidade gerar grandes homens, seja para o bem ou para o mal. Em outubro de 1917 a Rússia fabricaria, por fim, o sonho de muitos intelectuais contemporâneos: a revolução. E nutriria a nostalgia de muitos intelectuais de nossa era. A Rússia seria, de fato, o primeiro império socialista. Mas antes de contar sobre a nova Jerusalém política, falemos do messias político.
Lênin
A imagem de Lênin como sendo um messias político foi erigido por seus seguidores quando ele ainda estava na Suíça, no exílio. Ao retornar da Suíça, passando pela Alemanha, ele firmou um acordo com os alemães na intenção de derrubar o governo russo do momento — o governo dos liberais provisórios.
Prometeu retirar a Rússia da primeira guerra — o que era extremamente urgente para a Alemanha — e fazer o país da vodca e dos grandes literatos um parceiro comercial dos alemães. E assim, ao preço de 40 milhões de goldmarks, Lênin, financiado pelos alemães, se rebelou e fez aquilo que seria conhecido como o golpe derradeiro nos czares e nos liberais moderados: a revolução de 25 de outubro de 1917.
Tal revolução desemborcaria na fundação da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), em 1922, por isso trataremos, por vezes, a URSS como consequência simbiótica da revolução de 25 de outubro, pois, por fim, assim foi.
Para um maior aprofundamento histórico sobre o tema, recomendo as seguintes obras: Camaradas: uma história do comunismo mundial, de Robert Service; A Tragédia de Um Povo, de Orlando Figes; História da Guerra Civil Russa: 1917-1922, de Jean-Jacques Marie; História Concisa da Revolução Russa, de Richard Pipes.
O legado da revolução
Me soaria muito estranho se alguém comemorasse o início do genocídio nazista, ou a subida de Hitler ao grau de fuhrer alemão.
Da mesma forma que me soa estranho quando alguém comemora a revolução russa de 1917, mesmo sabendo que essa revolução desembocou em mais de 100 milhões de mortos.
Segundo “O livro negro do comunismo” — trabalho de pesquisa histórica liderado por Stéphane Courtois e mais dez pesquisadores especialistas em história do comunismo —, mais de 100 milhões de mortos é o exato legado do regime vermelho.
Ou seja, o comunismo deixou como espólio para a humanidade o maior genocídio em massa da história; seja o genocídio realizado por suas próprias vias na Rússia e URSS, seja por suas influências nos demais regimes comunistas ao redor do mundo.
Tal fato se apresenta unânime até entre aqueles que são simpáticos à essa ideologia; Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores comunistas da língua inglesa, chegou a afirmar ao Michael Ignatieff — jornalista e presidente do partido liberal do Canadá — que os milhões de mortos deixados pela URSS teria sido um sacrifício aceitável caso o comunismo tivesse vingado. Ou seja, para o historiador o fracasso do regime comunista não se fez pelos milhões de mortos sob sua tutela, mas simplesmente porque a ideologia não funcionou na realidade. Piedoso, não?
Mas ao que devemos nos atentar, por hora, é que nem o maior historiador comunista da segunda metade do século XX e início do século XXI negou o genocídio comunista — como ainda tentou justificar tal barbárie. Aliás, para se afirmar a realidade de tal genocídio não é preciso ser conservador, liberal, ou socialista, basta apenas ser sincero com a história.
Osvaldo Peralva, jornalista brasileiro que trabalhou no Kominform (serviço de informação do governo soviético), em seu livro “O retrato”, assim descreveu o aparato comunista soviético:
“Jamais potência alguma no mundo dispôs de uma arma tão diabólica, de um instrumento de ação tão efetivo e de tamanha amplitude como esse. Nem os maiores impérios, nem os mais poderosos trustes internacionais conseguiram esse grau de eficiência e essa capacidade de confundir os espíritos, deformar a opinião pública, apagar a lucidez do raciocínio em milhões de pessoas, desencadear, na base da falsidade e da mentira, tempestades de paixão coletiva, caluniando, denegrindo, infamando” (PERALVA, 2015, p. 257).
O plano
Com a tomada do governo pelos bolcheviques, o plano mais ousado da história humana tinha sido iniciado.
O comunismo bolchevique era muito mais que um mero transmutar ideológico de um sistema de mercado burguês para um plano socialista de economia, os bolcheviques queriam um novo homem, uma nova alma para os homens.
Lênin e companhia queriam um regime que derrubasse não só o capital, mas a própria transcendência da fé do povo, a cultura conservadora russa, a mentalidade tradicional dos indivíduos e tudo que pusesse em risco o edifício ideológico vermelho.
O plano do partido era criar um arquétipo ideal de sociedade comunista, mas antes era preciso preparar uma versão servil do homem comunista (Cf. TISMANEANU, 2015, p. 27).Uma Rússia enclausurada num embrame utópico requereria um povo insosso, amedrontado e sem vontade própria, uma Rússia onde uma piada contra o partido tem como consequência os gulags.
“Pode se imaginar, portanto, como é difícil, dificílimo mesmo, a um militante comunista que faça parte do Aparelho, opor-se a suas decisões. Esse militante, em geral, é uma pessoa sem vontade própria, nem consciência própria. Não se pertence: de unidade (indivíduo) converte-se em parcela inseparável de uma entidade (o partido). Em suma, o homem do Aparelho é, espiritualmente, um alienado. Eu era um homem do Aparelho” (PERALVA, 2015, p. 31. Grifos meus)
Como afirmava o filósofo Eric Voegelin, a intenção comunista tinha como base a mudança na estrutura ontológica do homem, intenção essa que o levaria a denominar tal empreitada de “gnose comunista” (Voegelin, 2015, p. 90).
O comunismo trouxe à tona, então, o audacioso projeto de engenharia social e ontológica; não seria a ideologia que iria se adequar à realidade do povo russo — como outrora era dito nas centenas de manifestos que circulavam Petersburgo —, seria o povo russo que, a todo custo, haveria de se adequar ao planejamento central e catequético dos teorizadores comunistas.
O ideal de igualdade chanfrado no peito dos bolcheviques não se trataria de uma igualdade econômica de maneira primeva — e nem secundária, como mais tarde haveríamos de perceber — mas sim de uma igualdade de mentalidade alcançada ao custo de sangue, doutrinação, medo e toda sorte de barbáries. Não obstante, para mexer nas constituições ontológicas do homem de maneira eficaz, o partido tinha que falar a linguagem da religião — a instituição própria para tais assuntos.
Partindo de um pressuposto ateu, o partido bolchevique teria que adequar à sua pregação às naturais expectativas transcendentes do homem, não por caridade ou por benevolência, mas por estratégia de massa.
“Deem ao partido as vestimentas religiosas e o povo lhe será fiel até o martírio”, esse era o princípio arrogado. O povo não poderia mais acreditar em Deus, pois Deus é uma estrutura moralista e conceitual que mantém o proletário inerte numa anestesia política — afirmava Karl Marx no Manifesto do partido comunista —, além de que o partido era nominalmente ateu e materialista.
A ideia era, então, transformar as esperanças cristãs do povo russo em esperanças políticas do proletariado; ao invés de um céu post mortem, por que não um céu na terra? Ao invés do messias que há de voltar para libertar seu povo dos grilhões da morte, por que não um messias político para libertar os trabalhadores dos grilhões do capital? Ao invés da palavra de Deus, por que não a doutrina do partido? Ao invés do povo de Deus eleito, por que não o proletário eleito? Ao invés de a Igreja católica — katholikos = “universal”—, por que não um partido universal?
“Em consequência, na base do comunismo estava um fundamentalismo teleológico. O objetivo final era a Cidade de Deus na terra”. (TISMANEANU, 2015, p. 31).
Como afirmava Raymond Aron:
"É verdade que o comunismo atrai ainda mais quando o trono de Deus está vazio. Caso o intelectual não se sinta mais ligado nem à comunidade nem à religião dos seus antepassados, ele pede às ideologias progressistas o pleno preenchimento da sua alma" (ARON, 2016, p. 267)
O claustro
Vladimir Tismaneanu afirma em seu livro “Do comunismo”, que todos os temas cristãos, por adequação, se encontravam também na doutrina bolchevique (Cf. TISMANEANU, 2015, p. 16).
Controlando o imaginário popular através de um mito sócio-político, o partido conseguiria invadir as mentes dos indivíduos de tal maneira que as massas de adeptos da causa aprovariam sem demora as medidas claustrofóbicas contra as próprias liberdades individuais.
Como nos mostra Alexander Soljenitsin em sua obra “Arquipélago Gulag”, o partido conseguia fazer com que seus adeptos não só cumprissem religiosamente — na vida pública — as adequações praticamente impossíveis do partido, como denunciavam aqueles que não as cumpriam. Um sistema de vigilância moral e política é instaurado em nome da retidão catequética e ortodoxa do partido bolchevique. Tudo e todos passam a ser vigiados e denunciados por heresias políticas; tal fato medonho e tirânico se torna a base dos romances “Nós”, de Ievguêni Zamiátin, e “1984”, de George Orwell.
O partido deixa de ser uma mera instituição política e passa a ser um ente sagrado digno de ser onisciente, e, justamente por isso, a vigilância extrema se justifica (Cf. TISMANEANU, 2015. p. 184). Que deus fraco seria aquele que não fosse onisciente. Nada pode escapar do controle do partido, “para o bem de todos”.
Assim como Karl Marx havia dito que descobrira qual era o motor da história — a luta de classes — os intelectuais do partido, a conhecida intelligentsia soviética, acreditavam que, em posse do conhecimento fundamental do movente da história, poderiam substituir as bases do ocidente: sua moral, sua cultura, seus princípios e valores mais arraigados usando a famigerada “ciência comunista”. Ora, para uma ideologia que acreditava poder manipular a essência humana através da doutrinação e do medo, manipular a cultura é tão fácil como colocar uma criança numa exposição de nudez no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
A ciência social soviética consistia em suplantar — via doutrinação, pressão psicológica, censura e violência — qualquer meio destoante da doutrina oficial instituída pelo partido. E dá-lhe gulags. Em suma, o trato social soviético era tão somente um meio determinista de dizer que: “fora do partido comunista não há salvação”.
Como afirma o filósofo John Gray sobre a ciência comunista: "A ciência foi lançada contra a ciência e tornou-se um canal para a magia" (GRAY, 2011, p. 11). O comunismo russo-soviético deixou de ser um movimento secular e passou a ser um movimento místico-religioso, discordar da doutrina oficial podia — e geralmente era — punido com a morte. "Foram intelectuais que deram ao regime soviético a doutrina, grandiosa e equívoca, que os burocratas transformaram em religião de Estado" (ARON, 2016, p. 239).
Teoria da conspiração ou a realidade que você não quer ver
Seria demasiado tolo de nossa parte achar que as pretensões políticas e culturais que reinaram na revolução de 1917 e na União Soviética tiveram um fim.
Vemos Cuba relutante em seu modus operandi despótico e fechado. A Coreia do Norte habitando em seu mundinho paralelo e ameaçando o Ocidente através de seu líder tão icônico quanto louco. A Venezuela vivendo a ascensão ditatorial sob nossos olhos.
O comunismo sobrevive e respira os mesmos ares de outrora, só que agora atua com paletós de grife e discursos humanistas. Entre uma tirania e outra, falam de paz, amor, apresentam rosas em fuzis e pombas brancas em Copacabana; noutro momento exaltam Che Guevara, Fidel Castro, Mao Tsé Tung e outros sóbrios genocidas.
Costumo chamar essa bipolaridade ideológica de “esquizofrenia socialista”. Não é raro ver afirmações e atitudes dignas de partido bolchevique ainda em nossos dias; Mauro Iasi, professor universitário da UFRJ, disse recentemente que os conservadores merecem “a vala”; declaração essa que foi recebida com aplausos da plateia que o ouvia e o silêncio sepulcral da mídia nacional.
O que outrora era o grito de revolução armada, hoje é o grito de revolução cultural; o que antes era feito com tanques de guerra e fuzis, hoje é feito nas lousas das universidades, nas novelas, nos jornais de grande porte, nos museus e nas escolas primárias.
Não sou do tipo que me excito intelectualmente com conspirações globais, muito pelo contrário, o ceticismo filosófico me atrai mil vezes mais. Todavia, também não sou nenhum cego político para não enxergar óbvio. Hoje o movimento comunista sobrevive de aparatos análogos aos da época soviética e pré-soviética, a diferença jaz na estratégia que passou do militarismo e imposições econômicas radicais, ao campo cultural e educacional.
A revolução não acabou
A sociedade ainda não identificou muito bem os impulsos da atual revolução comunistas pois olha o aquário pelo lado de dentro, e bem sabemos que o peixe enclausurado num aquário não sabe que está dentro do vasilhame. Todavia, basta invertemos a perspectiva, passando a olhar o aquário pelo lado de fora, para nos darmos conta que o movimento comunista de hoje é uma realidade que extrapola os argumentos do tipo: “isso é uma teoria da conspiração”.
Não são radicais, por hora, ao ponto de deixar mais 100 milhões de mortos, todavia não são tão dóceis para deixar que pensemos por nós mesmos, ao ponto de podermos contestar os seus dogmas ideológicos. Ao mesmo tempo que rechaçam a violência, sempre estão dispostos a quebrar propriedades e apoiar a violência de Nicolás Maduro. Ficam estupefatos com o boicote de uma suposta mostra artística de um homem nu em frente a uma criança de cinco anos, mas não medem esforços para tacharem todos os homens de estupradores quando assim é conveniente.
O que devemos nos dar conta, enquanto é tempo, é que a matéria ditatorial de outrora continua em voga, todavia, em campos de ações diferentes. Não lançam mais ataques à Alemanha e nem invadem mais a Polônia em nome do comunismo, mas agora lançam notícias enviesadas através das mídias vendidas e invadem mentes infantis via doutrinação pedagógica. Criam um verdadeiro apartheid entre brancos e não-brancos, héteros e homossexuais, rico e pobres; desvinculam a compreensão lógica da realidade, ao ponto que o binarismo biológico da sexualidade passa a ser visto como opressor — o sexo começa a ser definido através de cartilhas políticas e não pela ciência.
Não mais perpetuam seu modelo Estado pela força, agora usam do Estado para perpetuarem a força de suas ideias; os soviéticos usavam da adequação religiosa aos princípios comunistas, hoje os comunistas se tornaram propriamente uma instituição religiosa das mais radicais e intolerantes; antes mandavam os hereges para os gulags para fazerem o expurgo educativo, hoje mandam para as universidades — centros educacionais — para expurgarem seus princípios familiares.
A censura que havia contra as opiniões contrárias ao do partido bolchevique continua, mas agora a tarja do politicamente correto tomou o lugar das denúncias, os processos judiciais o lugar dos gulags, e a patrulha das ideias o lugar da vigilância moral e política.
A verdade é que a revolução de 1917 fracassou econômica e politicamente na Rússia e nos países anexados, mas foi extremamente bem-sucedida na cultura em muitos países ao redor do mundo, inclusive no Brasil; se militarmente o comunismo recuou em suas pretensões, seus ditames e ideias ainda hoje são ecoados e avançam dantescamente pelo mundo afora através dos filtros politicamente corretos e discursos fofinhos.
A revolução remodelou as consciências individuais fazendo com que seus fiéis se tornassem homens e mulheres prontos para o martírio político; hoje as ideias de esquerdas tonaram-se uma espécie éter social que permeia as mentes e políticas mundiais. Muitos defendem o socialismo sem sequer saber disso.
E nessa ditadura dos tolerantes a revolução de 25 de outubro continua. Os revolucionários não têm mais bigodes grossos e fuzis nos ombros, agora estão com rosas nas mãos e jargões decorados nas línguas.
De fato, e nisso eu tenho que concordar, é muito mais fácil fazer uma revolução onde todos já foram previamente inseridos e embriagados das “verdades dogmáticas” da ideologia que se quer implantar; é bem mais fácil tornar seus discursos aceitáveis quando a linguagem empregada pela ideologia já permeia 99% do vocabulário nacional cotidiano; é bem mais fácil revolucionar quando só se ensina às crianças uma forma de ver o mundo; quando nas novelas encharcam as mentes ociosas da população com as verdades incontestes dos roteiristas.
Teoria da conspiração? Olhe à sua volta e me diga que é mentira. Assim como a verdade é inútil se ninguém a conhece, para quem sempre nadou num aquário, a existência do mar é um absurdo!
ARON, Raymond. O ópio dos intelectuais, São Paulo: Três estrelas, 2016.
PERALVA, Osvaldo. O retrato, 1ª Ed, São Paulo: Três Estrelas, 2015
TISMANEANU, Vladimir. Do comunismo: o destino de uma religião política, Campinas: Vide editorial, 2015
VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas, São Paulo: É realizações, 2015
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