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Vladimir Putin durante a Missa de Natal numa igreja ortodoxa
Vladimir Putin durante a Missa de Natal numa igreja ortodoxa| Foto: EFE/EPA/ALEXEI NIKOLSKY / SPUTNIK / KREMLIN POOL

A direita religiosa, pelo menos antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, surpreendentemente demonstrava muita simpatia pela Rússia e seu líder. Alguns veem a Rússia como a última resistência contra os males da modernidade fluida, do progressismo e da lacração. Para eles, a Rússia é um símbolo de um conservadorismo cristão destemido muito próximo do poder estatal e disposto a usar esse poder para alcançar seus objetivos sagrados.

Essa interpretação é comum entre os evangélicos. Um artigo de 2018 publicado na Christianity Today dizia que a intervenção russa na Síria – e, por extensão, o regime de Assad que protege os cristãos – levou muitos evangélicos a considerarem a Rússia “os mocinhos no berço da cristandade”. Em 2015, o líder evangélico Franklin Graham visitou a Rússia e teve uma agradável reunião com o presidente Vladimir Putin. Além disso, o Congresso Mundial das Famílias, de origem evangélica, mantém uma relação de proximidade com os cristãos russos. O grupo também é popular entre os católicos conservadores. O colaborador do Daily Wire Michael Knowles, ele próprio um católico praticante, elogiou a campanha publicitária do exército russo que “faz com que o exército progressista dos EUA pareça fraco e patético”.

O professor católico Jason Morgan, num artigo de 28 de janeiro publicado na Crisis Magazine, também diz que ‘de acordo com muitos, inclusive eu mesmo, Putin é um cristão que está liderando um povo cristão (...) Sendo mais direto, se Deus estiver de um dos lados dessa confusão na Ucrânia, Ele estará ao lado dos exércitos cristãos, não?” Morgan chega a descrever a Rússia como “uma usina de energia cristã com uma questão a acertar com a história”. Ainda que o tom de boa parte dos elogios a Putin (talvez temporariamente) tenha diminuído com a invasão à Ucrânia, é difícil ignorar a história recente da admiração desavergonhada da direita religiosa pela Rússia, mesmo poucos dias antes de a Rússia dar início ao ataque.

Putin claramente busca se mostrar como “defensor dos cristãos”, defesa exemplificada pela defesa, por parte da Rússia, das comunidades cristãs vulneráveis na Síria. Ele também é visto como parceiro de uma direita religiosa cada vez mais sitiada por defender valores conservadores como a contenção do movimento LGBT e o apoio à família tradicional. Ele costuma mencionar a Igreja Ortodoxa Russa em seus discursos e ofereceu à igreja um papel de maior relevância na vida política russa. Isso foi percebido com bons olhos pelos cristãos conservadores. Graham elogiou entusiasmadamente as leis russas contra a “propaganda homossexual”. Há quase uma década, Pat Buchanan perguntava se Putin era um “paleoconservador” e “um de nós”.

Mas será que a Rússia contemporânea deve mesmo ser colocada num pedestal? Apesar de toda retórica de Putin, é importante analisar as tendências da Rússia no que diz respeito à religião e moral antes de considera-la digna de ser copiada.

Cristandade cultural

Ao menos é bem verdade que até 75% dos russos se identificam como cristãos, a maioria deles ortodoxos. É uma mudança enorme desde o fim da Guerra Fria, quando somente um terço dos russos se identificavam como cristãos ortodoxos. Ainda assim, apenas 6% da população frequentam a igreja regularmente e a quantidade de russos que vai à Missa de Páscoa tem diminuído nos últimos anos. Uma pesquisa de 2014 sugeria que isso significa apenas que os russos hoje se sentem mais à vontade para expressar suas crenças. “Pode ser que, depois da queda da URSS, em 1991, os russos se sintam mais livres para expressar a identidade religiosa que eles mantiveram em segredo na era soviética”.

Seja lá qual for o motivo para essa disparidade entre a prática e a filiação religiosa, ela se traduz numa ortodoxia que é mais ou menos nominal. Se os cristãos ortodoxos russos não vão à Missa de Páscoa, pode-se concluir com segurança que a fé não é assim tão importante para eles. Por outro lado, e embora seja verdade que os norte-americanos também têm deixado de ir à igreja com frequência, aproximadamente um terço dos norte-americanos ainda vai à igreja várias vezes ao mês. Em outras palavras, cinco vezes mais norte-americanos, em comparação com os russos, frequentam a igreja regularmente.

Analisar a ocorrência de certos transtornos sociais também ajuda a esclarecer o caráter da Rússia contemporânea. Pensemos no ponto nevrálgico da guerra cultural nos Estados Unidos: o aborto. Ainda que as taxas de aborto na Rússia estejam em queda há décadas, o país ainda é um dos líderes mundiais em abortos, com mais de um aborto para cada dois nascimentos. Além disso, analisas avaliam que o motivo para a queda nas taxas de aborto no país não é a oposição a ele, e sim o acesso fácil a métodos contraceptivos. Como explicava um estudo médico de 1990, o aborto era a única forma de planejamento familiar disponível aos russos durante a União Soviética. Apesar de a taxa de fertilidade do país ter aumentado ligeiramente nos últimos vinte anos, ela continua baixa, o que indica que ainda há obstáculos para convencer os russos a terem filhos.

Ainda que os Estados Unidos também tenham problemas com a taxa de fertilidade, a quantidade de abortos em relação às gestações que chegam ao fim é de menos de 20%, ou quase metade do que se observa na Rússia. Assim como na Rússia, a taxa de abortos nos EUA também está em declínio, em parte decido ao maior acesso e uso de contraceptivos. E há ainda uma oposição firme ao aborto, o que se nota pelo fato de que 26 estados pretendem proibir o aborto se o caso Roe vs. Wade for revertido.

Outros indicadores apontam para o caos moral profundo que define a vida de muitos russos e que vai muito além do vivido pelos norte-americanos. A taxa de alcoolismo na Rússia é uma das maiores do mundo — o russo médio com mais de 15 anos bebe o equivalente a quase 10 litros de etanol por ano (norte-americanos também bebem muito, mas o consumo de álcool é quase metade do que se vê entre os russos). Até a década de 1980, o governo russo via o álcool como uma importante fonte de renda para o Estado e, por isso, não combatia o alcoolismo. Agora é tarde demais e o consumo excessivo de bebidas é algo que está incrustrado na sociedade russa. Não há programas nacionais de combate ao alcoolismo, como se lê neste artigo de 2013 publicado pela Atlantic.

Há outras manifestações de decadência social. O tráfico e consumo de drogas crescem a níveis alarmantes na Rússia, o que nos dá uma perspectiva diferente sobre a epidemia de opioides nos Estados Unidos. A taxa de violência doméstica também é tão alta na Rússia que costuma ser chamada de pandemia — “Se ele te bate é porque te ama” é uma frase comum na sociedade russa. A taxa de divórcios do país é a terceira maior do mundo (perdendo apenas para as Ilhas Maldivas e o Cazaquistão) e os divórcios estão aumentando. O motivo mais comum para os divórcios na Rússia é a pobreza. Os problemas da Rússia fazem com que os problemas dos Estados Unidos pareçam menos catastróficos.

A Rússia defende os cristãos?

A outra dimensão da visão idealizada que os cristãos conservadores fazem da Rússia diz respeito à política externa. A defesa do regime de Assad na Síria, ainda que pragmática e movida por interesses próprios, ajudou a salvar comunidades cristãs na Síria, como dizem os simpatizantes de Moscou. Por trás dos planos russos para o mundo está seu objetivo de se tornar a “Terceira Roma”, levando sua ortodoxia por todo o leste europeu e Ásia central, de acordo com os russófilos ocidentais. A realidade é um pouco mais complicada e sugere que as ações da Rússia têm pouco ou nada a ver com a proteção e a ampliação da cristandade.

Só no Ocidente, a Rússia usa seu poder militar e apoio econômico para ajudar regimes socialistas que até perseguem os cristãos. Em Cuba, líderes cristãos sofrem oposição do governo, as igrejas costumam ser destruídas ou tomadas (nenhuma igreja nova foi construída no país desde a revolução) e o acesso a Bíblias é restrito. O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez se dizia o verdadeiro herdeiro de Cristo, chamando os bispos de pervertidos e degenerados. O sucessor dele, Nicolás Maduro, também mantém uma relação de contrariedade com a Igreja Católica. Na Nicarágua, o governo persegue a clerezia católica e, em agosto de 2021, o vice-presidente (e a esposa do presidente) chamaram os bispos católicos de “demônios”. A Rússia apoia tanto os regimes de Cuba quanto o da Nicarágua.

Os demais aliados da Rússia não são exatamente paradigmas da liberdade religiosa. Entre eles estão a China (o país que mais persegue cristãos no mundo), Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirquistão e Tajaquistão. Fora Armênia e Bielorrússia, país predominantemente ortodoxos, os outros países da Ásia central são predominantemente muçulmanos, e a organização Open Doors USA cita os três como países com algum grau de perseguição a cristãos.

Um alerta

A Rússia não é uma “usina de energia cristã”. Essa narrativa não passa de uma campanha de propaganda facilmente contestada e criada pela cleptocracia governante. A Rússia tem dificuldades não apenas para preservar a tradição religiosa – apesar das transferências de recursos cada vez maiores do governo para a Igreja Ortodoxa — como também para proteger e preservar as famílias do uso de drogas, violência doméstica e da corrupção generalizada. A Rússia é um país cujos líderes promovem uma versão da Rússia que tem pouco a ver com a realidade da vida cotidiana do seu povo.

Em muitos aspectos, os Estados Unidos são, sim, um país pós-cristão, o que fica claro quando se vê a quantidade de ateus e agnósticos entre os mais jovens. Mas se a Rússia é “uma usina de energia cristã”, seria de se esperar que o país fosse ao menos mais religioso do que os Estados Unidos, seu grande adversário. O que se vê, no entanto, é o contrário.

Qual a lição disso para os norte-americanos? A mais importante delas talvez seja percebermos que, apesar de os políticos ou líderes de um país encherem a boca para falar sobre a preservação e defesa da fé cristã, a ação do governo é limitada no que diz respeito a influenciar ou deter tendências sociais amplas. Mesmo que os Estados Unidos ainda pareçam ser uma nação mais cristã do que a Rússia, a tendência demográfica sugere que, dentro de uma ou duas gerações, teremos níveis de religiosidade semelhantes aos da Rússia e Europa Ocidental. E isso, dizem vários sociólogos, terá consequências sociais e econômicas desastrosas. Se a religião está em declínio entre a população, não há muito o que os políticos, mesmo os guiados por motivos nobres, possam fazer para reverter esse quadro.

Essa é mais uma razão para os cristãos norte-americanos se aterem ao seu “exterior mais próximo” – seus familiares, igreja, comunidades. Os dados disponíveis mostram que, quando as famílias religiosas são unidas, os filhos dessas famílias têm uma probabilidade maior de manter a fé. Quando as crianças percebem essa fé em formação reforçada pelas pessoas que encontram na igreja e em suas comunidades, é mais provável que elas permaneçam na fé ou a ele retornem posteriormente. Claro que devemos votar em políticos que pretendem resgatar os valores cristãos. Mas não podemos tê-los como panaceia nessa era secular. Como diz o salmista, “não deposite sua confiança em príncipes”.

Casey Chalk é editor da New Oxford Review.

©2022 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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