Não vamos dourar a pílula: a indicação de Democracia em Vertigem, de Petra Costa, ao Oscar de Melhor Documentário é, sim, importante. Não à toa, a turma que jura de pés juntos que todo o processo de impeachment não passou de um golpe contra a democracia, personificada em Lula e Dilma, está exultante nas redes sociais e só não solta rojão para não assustar os cachorros. A verdade é que, com a indicação da peça de propaganda política disfarçada de documentário, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood ajuda a consolidar uma narrativa sobre aquele momento histórico: a narrativa petista.
“Ah, mas Oscar não significa nada”, contra-argumentarão alguns. De fato, a premiação, se um dia foi importante, perdeu a relevância depois que passou a premiar sistematicamente os filmes e os profissionais da indústria cinematográfica por seu conteúdo político e ativismo, e não por suas virtudes estéticas e talento, como seria de se esperar. Mas perdeu a relevância para uma minoria esclarecida.
Para milhões que ficam acordados até tarde ouvindo emocionados discursos políticos e entrevistas, e criticando o vestido de uma e o smoking de outro, o Oscar é uma chancela, um carimbo de aprovação com o qual cineastas do mundo inteiro sonham. Ainda que a estatueta dourada do Oscar possa ser vista com desconfiança pelo público esclarecido, o prêmio representa no mínimo um reconhecimento, ou melhor, o maior reconhecimento possível na indústria do cinema. Afinal, querendo ou não o Oscar é uma instituição de mais de 90 anos de tradição. E, embora torça o nariz para instituições e tradições quando lhe convém, a esquerda cultural que produz filmes como o Democracia em Vertigem também adora um selo que ateste que ela está com a razão e do lado “certo” ou “vencedor” da história.
Além disso, a irrelevância do Oscar é uma semiverdade. Tanto é assim que hoje, quando foram anunciados os indicados à premiação do próximo dia 9 de fevereiro de 2020, todo mundo está comentando. Que absurdo Coringa ter recebido 11 indicações! Martin Scorsese merece ganhar como Melhor Diretor. E O Farol, não foi indicado a nada? Não acredito que não tem Meryl Streep na lista deste ano. E assim por diante.
O Oscar, com toda a sua ostentação woke e aquela vulgaridade rococó que por algum motivo chamam de glamour, de alguma forma ainda parece refletir nossas afinidades e repulsas estéticas e, hoje mais do que nunca, políticas. É como se quem acompanha a premiação sentisse que a Academia, no exato instante do “o Oscar vai para...”, tem uma procuração para exaltar ou denegrir as emoções que sentimos diante dessa ou daquela narrativa. Sem falar na nossa consciência social e em nossas discussões políticas no Facebook.
Daí o outro lado da moeda, isto é, a revolta daqueles que veem a indicação de Democracia em Vertigem como uma afronta à verdade histórica do Brasil contemporâneo. Sabemos que não houve golpe, que a democracia não corre o perigo de ser jogada de um precipício, como quis fazer parecer Petra Costa, inclusive alterando digitalmente imagens para retratar a guerrilha urbana de esquerda como um bando de bons moços que lutavam contra a ditatura munidos apenas de uma fita-cassete tocando Imagine sem parar. E essa verdade histórica, por mais que um documentário premiado com o Oscar diga o contrário, não há de mudar por conta disso.
E aqui, com alguma relutância, minto, com muita relutância, evoco o dito de Ben Shapiro que virou quase um lugar-comum: “Os fatos não estão nem aí para seus sentimentos”. Isto é, a alienada elite hollywoodiana que vive o sonho socialista-progressista do alto das colinas californianas onde construiu seus castelinhos à prova de terremotos (mas não de incêndios florestais) pode sentir que a democracia corre perigo no Brasil à vontade. Isso não muda o fato de, como disse o comediante Ricky Gervais na premiação recente do Globo de Ouro, “vocês [atores, diretores, produtores, roteiristas] não estão em posição de ficar dando lição de moral sobre coisa nenhuma. Vocês não sabem nada sobre o mundo real”.
Deixando de lado um pouco a questão da narrativa em si, vale a pena perguntar por que a esquerda brasileira, derrotada nas urnas e com a imagem arranhadíssima por décadas de corrupção, sem falar na inépcia que gerou a maior crise econômica de todos os tempos no Brasil, precisa tanto da chancela de um bando de ricaços entrincheirados em mansões sobre a Falha de Santo André. A própria Petra Costa responde a isso ao se dizer “extasiada” pelo fato de a Academia ter reconhecido “a urgência” de sua peça de propaganda “numa época em que a extrema direita está se espalhando como uma epidemia”.
Trata-se de uma questão não de cinema, e sim de relações-públicas. De alguma forma ainda bebendo na fonte das teorias da ultrapassada Escola de Frankfurt, e se sentindo esquizofrenicamente culpada por gozar de todos os deliciosos luxos do capitalismo, a esquerda brasileira, representada aqui pela milionária Petra Costa, acredita no poder da indústria cultural, com suas limusines, smokings Armani, vestidos Dior, sapatos Loubotin e diamantes (muitos diamantes!) para ajudá-la a se comunicar com a massa de pobres e oprimidos que jura representar.
E, como para a esquerda vitimista e ressentida essa tal de coerência é coisa de pequeno-burguês, não há nada de mau em jogar no lixo todo um passado de luta contra o imperialismo e colonialismo cultural e aceitar de braços abertos, com direito a lágrimas e agradecimentos ao vovô fundador da empreiteira Andrade Gutierrez, o famigerado Oscar, de preferência entregue por Michael Moore.
Tudo em defesa da democracia, claro.
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