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Imagem divulgada pelo grupo ativista Aleppo Media Centre (AMC), em agosto de 2016, mostra o garoto Omran, de quatro anos, coberto por sangue e poeira após ser resgatado de um edifício destruído por um bombardeio aéreo | HOAFP
Imagem divulgada pelo grupo ativista Aleppo Media Centre (AMC), em agosto de 2016, mostra o garoto Omran, de quatro anos, coberto por sangue e poeira após ser resgatado de um edifício destruído por um bombardeio aéreo| Foto: HOAFP

O mundo parece mergulhado no caos e na incerteza, talvez mais atualmente do que em qualquer outro período desde o final da Guerra Fria.

Líderes com tendências autoritárias estão em ascensão e a própria democracia liberal parece estar sob cerco. A ordem pós-Segunda Guerra Mundial está se desgastando conforme brigas e disputas se espalham além das fronteiras e as instituições internacionais criadas, pelo menos na teoria, para agir como freio para a violência arbitrária, já não conseguem oferecer soluções. Os movimentos populistas dos dois lados do Atlântico não são mais fomentados pela fúria antissistema, mas sim baseados no medo da religião do "outro", no caso, os muçulmanos.

Esses desafios se solidificaram, ganharam força e se intensificaram por uma conflagração que já foi considerada pelo Ocidente como periférica, a ser classificada, talvez, como um evento de "muçulmanos matando muçulmanos": a guerra na Síria.

O conflito, a que foi permitido chegar ao sétimo ano, matou 400 mil sírios e afundou milhões na miséria, enviando ondas de choque ao redor do mundo. Um sem-fim de sírios fugiu para os países vizinhos, alguns chegando à Europa.

Matança indiscriminada

A ideia de que o mundo pós-guerra não poderia deixar que líderes matassem indiscriminadamente seus próprios cidadãos agora parece totalmente obsoleta. A reação do governo sírio à rebelião, continuada ano após ano, ameaça normalizar um nível de brutalidade estatal que há décadas não se via. E o tempo todo Bashar Assad invoca uma desculpa cada vez mais popular entre os líderes mundiais desde os ataques de onze de setembro nos EUA: a de que está "combatendo o terrorismo".

"A Síria não é responsável por tudo, mas, sim, acabou mudando o mundo", afirma o dissidente Yassin Haj Saleh, esquerdista secular que passou quase vinte anos como preso político sob o pai e antecessor de Assad, Hafez.

O Conselho de Segurança da ONU está paralisado; as agências humanitárias, sobrecarregadas. Mesmo o míssil norte-americano que atingiu uma base aérea síria, lançado segundo as ordens de Trump em retaliação a um ataque químico em uma cidadezinha controlada pelos rebeldes, dá a impressão de ser apenas um simples ruído na confusão, uma intervenção unilateral mais recente da guerra. Duas semanas depois, o governo sírio, com as bênçãos da Rússia, continua os bombardeios destruidores.

Sem consenso

Não há mais consenso sobre o que deve ou ainda pode ser feito pela Síria, nem se uma abordagem internacional mais ou menos decisiva obteria melhores resultados.

A Casa Branca de Obama manteve a Síria à distância, determinada, compreensivelmente, a evitar os erros da invasão e ocupação do Iraque; os outros líderes do Ocidente, por sua vez, acharam que, ao contrário da guerra civil na Bósnia, nos anos 90, o conflito sírio arderia isolado, sem afetar seus países.

Imoral ou não, essa suposição não só se mostrou incorreta, como foi bater na porta da Europa e já afeta sua política.

"Deixamos muitos valores de lado e, ao mesmo tempo, não agimos em interesse próprio; simplesmente deixamos a coisa ir longe demais", admite Joost Hiltermann, holandês que é diretor do International Crisis Group para o Oriente Médio.

O conflito começou em 2011 com protestos políticos. As forças nacionais de segurança se mobilizaram para reprimi-los, e com o apoio ocidental mais forte na teoria que na prática, alguns opositores de Assad resolveram se armar. O governo reagiu fazendo detenções e tortura em massa, cercos que quase mataram a população de fome e bombardeios sobre as áreas tomadas pelos rebeldes. Os jihadistas extremistas ascenderam, com o Estado Islâmico eventualmente declarando o estabelecimento de um califado e fomentando a violência na Europa.

Mais de cinco milhões de sírios fugiram do país. Centenas de milhares engrossaram a rota de refugiados na travessia do Mediterrâneo rumo ao Velho Continente.

Multidões de desesperados

As imagens das multidões de refugiados desesperados - e a violência extrema que enfrentaram em sua própria terra - foram utilizadas por muitos políticos para instilar o medo do Islã e, consequentemente, dos muçulmanos. Isso aumentou ainda mais o ressentimento em relação aos imigrantes, já tão comum e explícito nos partidos europeus de extrema-direita, da Finlândia à Hungria.

A crise dos refugiados representa um dos maiores desafios da história moderna à coesão da União Europeia e alguns de seus valores mais básicos, como a liberdade de ir e vir, as fronteiras comuns, o pluralismo. Acirrou as ansiedades em relação à identidade e cultura, fomentando a insegurança econômica e a desconfiança nas elites governantes, desenvolvidas em décadas de globalização e crises financeiras.

De uma hora para a outra, os países europeus estavam erguendo muros e campos de internamento para conter os imigrantes. Enquanto a Alemanha recebeu os refugiados de braços abertos, outros países se recusaram a dividir o fardo. A extrema-direita falava de proteger a Europa branca e cristã. Até a campanha do Brexit, que promoveu a saída do Reino Unido da UE, foi calcada, em parte, no medo dos refugiados.

Em 23 de abril, a candidata anti-imigração e anti-Islã, Marine Le Pen - que quer que Assad permaneça no poder - sobreviveu ao primeiro turno das eleições francesas. Um partido de extrema-direita alemão já está de olho na chanceler Angela Merkel. Nas eleições holandesas, em março, o partido de extrema-direita de Geert Wilders foi pior do que se esperava, mas deu uma guinada no espectro político nacional - tanto que o partido da situação adotou suas táticas populistas, incitando o confronto com a Turquia em relação aos imigrantes.

Sirianização do mundo

O conflito sírio expôs e ganhou corpo por causa das falhas dos mesmos sistemas contra os quais a direita se manifesta. A União Europeia e a ONU foram criadas no último século, após guerras devastadoras, para garantir a manutenção da paz, impedir as perseguições, manter os governantes em cheque e fornecer ajuda humanitária para os mais vulneráveis, mas a confiança nelas está minguando justamente quando é mais necessária que nunca. A Convenção de Genebra, que protege civis em tempos de guerra, nunca foi posta em prática consistentemente e, no entanto, está sendo desprezada explicitamente.

Saleh, o dissidente, teme que "a sirianização do mundo" se torne ainda mais sombria. Ele compara o populismo e a islamofobia de hoje com o fascismo e o antissemitismo da Segunda Guerra Mundial. "O clima mundial não estimula a esperança, a democracia e o indivíduo; está inclinado para o nacionalismo, o ódio, a ascensão do Estado de segurança."

Nos EUA, como na Europa, os extremistas de direita estão entre aqueles que defendem reações autoritárias e indiscriminadamente violentas a supostas ameaças islamitas. Nacionalistas brancos como Richard Spencer e David Duke, ex-líder da Ku Klux Klan, idolatram a imagem de Assad nas redes sociais - que, acredite se quiser, se vê como um baluarte contra o extremismo.

Há no Ocidente quem defenda a normalização das relações com Assad, na esperança que isso ajude no combate contra o Estado Islâmico e faça os refugiados voltarem para casa, mas sem prestação de contas ou reformas políticas, é pouco provável que se obtenha esse resultado.

Normalização da violência

Em uma década cobrindo a violência contra civis no Oriente Médio, percebi que os extermínios em massa cometidos pelos governos geralmente atraem menos a atenção do público ocidental do que os assassinatos muito menores, com toques teatrais - o que não os torna menos horrendos - cometidos pelo EI e sua antecessora, a Al-Qaeda.

É difícil ignorar o fato que o medo ocidental do terrorismo islâmico se tornou tão intenso que muita gente já se mostra disposta a tolerar as mortes de quantos civis árabes e/ou muçulmanos forem necessárias, ou quaisquer abusos do poder estatal, em nome de seu combate.

A "guerra ao terror" dos EUA também é, em parte, responsável pela banalização das violações às normas humanitárias e legais: vide as detenções em Guantánamo, a tortura em Abu Ghraib e os ataques aéreos/de drones, com um número cada vez maior de civis mortos na Síria, Iraque, Iêmen e outras paragens.

Para completar, a guerra da Síria teve início quando o mundo já estava marcado por divisões e ineficiência: a Rússia em busca de um papel mais significativo, os EUA se encolhendo, a Europa consumida por problemas internos. A Rússia e os EUA viram interesses opostos na Síria, colocando o Conselho de Segurança em um impasse.

A crise expôs as falhas do sistema da ONU, que dá direito a veto em seu Conselho de Segurança e privilégios de soberania aos vencedores da Segunda Guerra, mas não disponibiliza nada para os países que matam sua própria gente. A doutrina de "responsabilidade de proteção", justificativa legal para ações militares para impedir as nações de massacrarem o próprio povo, posta à prova em Kosovo e na Líbia, teve resultados controversos, mas morreu de vez na Síria.

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