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Em Boston, uma bandeira do orgulho gay pôde ser hasteada no mastro da prefeitura, mas a bandeira de um grupo cristão, com uma simples cruz e sem palavra alguma, não teve a mesma permissão. Na mais recente decisão em defesa da participação da religião na sociedade, a Suprema Corte dos Estados Unidos, numa votação unânime no caso Shurtleff x Boston, determinou que a cidade de Boston tinha obrigação de permitir que a bandeira cristã fosse hasteada. Assim a Corte dá continuidade – e não pela primeira vez unanimemente – à sua defesa da liberdade religiosa, uma defesa que dura décadas.
Em frente à prefeitura de Boston há três mastros bem altos, de 27 metros, dois dos quais ocupados pelas bandeiras dos Estados Unidos e do estado de Massachusetts. Desde pelo menos 2005, a cidade tem permitido que grupos privados promovam cerimônias usando o terceiro mastro, uma vez que a prefeitura é considera “fórum público”. Entre 2005 e 2017, Boston permitiu um total de 284 dessas cerimônias e jamais negou a oportunidade de usar o pátio a nenhuma grupo.
Em 2017, a cidade recebeu uma petição da organização educacional e filantrópica Camp Constitution, que tem entre seus objetivos “aumentar o entendimento da herança judaico-cristã do país”. Aparentemente ecumênica, a organização pretendia “divulgar opiniões de clérigos locais”. Ela pretendia hastear no mastro uma bandeira simples “exibindo uma cruz vermelha sobre um campo azul contra um fundo branco”. Ao contrário do que aconteceu com outras organizações, a petição para a utilização do fórum público foi negada.
Argumentando ter sido discriminada por causa do conteúdo religioso dos discursos programados para o evento, a Camp Constitution entrou com a ação mencionando a Primeira Emenda da Constituição norte-americana. A organização sustentou que, ao identificar e definir o mastro como um “fórum” aberto ao “público (...) com centenas de aprovações e nenhuma rejeição”, isto é, sem jamais controlar o discurso de outras manifestações por 12 anos, a cidade de Boston estava usando seu poder para suprimir a liberdade de expressão. A organização perdeu a causa no distrito federal e nas cortes de apelação.
A cidade de Boston incrivelmente contra-argumentou que seu “fórum público” – supostamente aberto aos discursos de organizações privadas – era na verdade um fórum governamental, que a cidade controlava o discurso nas propriedades do governo e que “a cidade pode, portanto, escolher a mensagem, incluindo a ausência de temas religiosos”. Como o discurso na propriedade do governo pertenceria ao governo, a prefeitura não podia permitir um discurso religioso sem criar um vínculo inconstitucional com a religião, o que violaria o princípio da laicidade do Estado.
Em seu voto na decisão unânime, o juiz Stephen Breyer mencionou dois precedentes, usando como base um terceiro. No caso Pleasant Grove x Summum (2009), uma organização religiosa pediu a uma cidade no estado de Utah permissão para erguer um monumento permanente com os Sete Aforismos de Summum [lider de um grupo religioso que se inspira na cultura do Egito Antigo] num parque da cidade que já tinha um monumento exibindo os Dez Mandamentos. Os peticionários argumentavam que a negação do pedido era uma clara discriminação em comparação ao outro argumento. Ao negar unanimemente o caso, a Suprema Corte decidiu que, ao controlar a construção de monumentos no parque, a cidade estava exercendo o “direito à expressão governamental”, e não o direito à expressão num fórum aberto ao público. Portanto, a cidade não tinha negado o direito à liberdade de expressão privada, garantido pela Primeira Emenda, à organização religiosa. O juiz Samuel Alito redigiu o voto vencedor. E o juiz Breyer escreveu um contraponto.
Da mesma forma, no caso Walker x Tex. Confederate Veterans (2015), a Suprema Corte, pelo placar de 5 votos a 4, manteve a decisão do Texas Department of Motor Vehicles [uma espécie de Detran] de rejeitar o pedido da organização Filhos dos Veteranos Confederados para usarem uma placa especial exibindo a bandeira confederada. Argumentando na votação apertada, o juiz Breyer disse que as placas e as mensagens nelas contidas eram plataformas governamentais com objetivos governamentais e que o estado do Texas podia aprovar ou desaprovar as mensagens expostas nessa plataforma.
Por outro lado, no caso Matal x Tam (2017), a Suprema Corte manteve por unanimidade o direito à liberdade de expressão na redação constitucional da lei federal de marcas. Tam era o cantor de uma banda chamada The Slants [termo usado para ofender orientais] e a banda queria registrar esse nome. Depois de ter o registro rejeitado pelo Departamento de Marcas e Patentes dos Estados Unidos, por ser um termo ofensivo contra os asiáticos, algo proibido de acordo com a lei federal de marca, a banda entrou com uma ação. O juiz Alito argumentou que o departamento apenas registrava e cuidava dos detalhes jurídicos das marcas, sem ter autoridade para avaliar o conteúdo e a ofensividade de cada uma das marcas. Fazer isso seria “discriminar a opinião alheia”. O discurso contido numa marca não diz respeito ao governo; é um discurso privado. O departamento registra, dá posse e protege o discurso de entes privados. Se o governo federal pudesse controlar as palavras de uma marca, alertou o juiz Alito, poderia controlar todas as palavras de qualquer sujeita ao direito autoral. O juiz Breyer, claro, aderiu à opinião unânime.
Em seu voto curto e simples o caso Shurtleff, o juiz Breyer deu ênfase ao fato inquestionável que deu origem ao caso e às decisões inflexíveis da cidade de Boston quanto a seus mastros. Evitando amplas interpretações constitucionais, ele disse que a decisão da Corte se baseava numa análise “holística”, e não “mecânica”, análise essa que devia ser “motivada pelo contexto do caso, e não pela aplicação de regras rígidas” quanto ao equilíbrio e diferença entre o discurso privado e o governamental. O “caráter mais evidente” do caso era “a que ponto a cidade de Boston ativamente controlava os hasteamentos de bandeiras, manipulando as mensagens nelas contidas. A resposta, parece, é que Boston não fazia isso”.
Assim, temos nove juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos reconhecendo a justiça cotidiana e baseando a decisão na discriminação impróprio de um grupo religioso. Boston adotou uma política de abertura total, disse o juiz Breyer aos demais. O juiz Brett Kavanaugh deu um voto parcial. Os juizes Neil Gorsuch Clarence Thomas se uniram a Alito, concordando com a análise, mas se aprofundando em princípios constitucionais.
Quando aos precedentes envolvendo a tentativa de suprimir especificamente o discurso religioso, o juiz Breyer citou e se baseou no caso Good News Club x Milford (2001), uma decisão por 6 votos a 3 na qual o juiz Thomas foi o relator. Neste caso, a Suprema Corte decidiu que uma escola pública discriminado uma organização cristã ao negar a ela a oportunidade de se reunirem depois do horário de aula, sendo que a escola permitia que outros grupos se reunissem. Era uma violação da Primeira Emenda.
Acompanhando o mesmo princípio, o juiz Breyer também mencionou a decisão (5 votos a 4) da Suprema Corte no caso Rosenberger x Universidade da Virgínia (1995). Neste caso, a Suprema Corte decidiu que a Universidade da Virgínia era obrigada a subsidiar uma publicação estudantil de caráter religioso da mesma forma que subsidiava outras publicações. O juiz Anthony Kennedy, escrevendo o voto vencedor, argumentou que o princípio da laicidade contido na Primeira Emenda exigia que a universidade fosse neutra em questões religiosas, enquanto a cláusula de Liberdade de Expressão exigia que a universidade “não tendesse nem fosse hostil a qualquer religião”. O juiz Breyer discordou.
Mas o fato de uma decisão unânime da Suprema Corte envolvendo religião ter se baseado na justiça, óbvia para todos, do “contexto” é algo que enfatiza e ressalta a injustiça e a malícia retórica de uma cidade ao defender seu direito a ser injusta. Afinal, a política era de tolerância até uma organização religiosa pedir tratamento igual. No geral, o caso se adequa perfeitamente aos demais precedentes da Corte quanto aos fóruns “governamentais” em relação aos fóruns abertos ao público.
Além disso, a decisão unânime no caso Shurtleff contra a cidade de Boston é parecido com outras decisões recentes da Corte rechaçando tentativas de governos municipais e estaduais de restringirem a liberdade religiosa. Na famosa “decisão do confeiteiro”, de 2018, a Suprema Corte, por 7 votos a 2, decidiu que o estado do Colorado não podia obrigar um confeiteiro cristão a decorar um bolo para um casamento gay. Da mesma forma, na decisão unânime do caso Fulton, de 2020, a Corte impediu a cidade da Filadélfia de negar ao Serviço Social Católico a oportunidade de participar do programa de adoção da cidade porque ele se recusava a colocar as crianças em lares de casais homossexuais. Mas ainda mais importante do que esses três casos é a decisão unânime da Corte no caso Hosanna-Tabor Evangelical Lutheran Church and School x EEOC (2012). Na ação contra o governo federal tinha por motivação a nomeação de um pastor. Note que aqui uma igreja era a querelante contra o governo.
Assim hoje a liberdade religiosa está sendo defendida tanto por juízes conservadores quando pelos progressistas. Isso dificilmente acontece com outros temas. Seria bom se todos os órgãos do Executivo ficassem sabendo disso.
Thomas Ascik é advogado e colaborador do Imaginative Conservative.