À medida que o século XXI avança, o conflito entre esquerda e direita se torna relativamente insignificante em comparação ao conflito entre homens e máquinas.
Não é preciso imaginar o surgimento de uma SkyNet nem qualquer outra forma de Inteligência Artificial futurista tirada das páginas de um romance de ficção científica para entender o fenômeno. A desmontagem tecnológica do espírito humano já está em estágio avançado no Ocidente, como mostra uma olhadela em nosso cenário político.
Nos últimos anos, surgiu uma curiosa simetria entre boa parte dos esquerdistas e direitistas. Quanto mais tempo um conservador ou progressista passa imerso na imprensa – seja ela tradicional ou alternativa – mais os partidários tendem a se assemelhar em aspectos fundamentais. Eles se tornam febris, ressentidos e furiosos quando confrontados por fatos que abalam suas convicções. A sensibilidade deles à complexidade moral da vida perde força, a tal ponto que as dicotomias bem/mal e republicano/democrata se tornam proporcionais. O poço de autopiedade e raiva no qual eles saciam sua sede de consciência baseada na vitimização parece não ter fundo.
Alguns conservadores costumam repreender os progressistas que agem como “floquinhos de neve”, mas nos últimos meses o que se viu foi uma tempestade de neve de ambos os lados. A disposição com a qual os maiores simpatizantes de Donald Trump interiorizaram uma desilusão profunda é párea (e em alguns casos supera) para qualquer coisa semelhante vista na esquerda.
As pessoas que se distraíram por se envolveram demais com a imprensa são vítimas, em certo sentido, não de corrupção ou dos sistemas eleitorais da Dominion. Para entendermos o porquê disso, precisamos entender a revolução tecnológica que ocorreu nos séculos XVIII e XIX.
A tecnologia permite que os seres humanos compartilhem a realidade de tal forma que ela acaba por se moldar às necessidades e desejos deles. Essa é provavelmente a definição mais simples de mundo, uma definição que prevalece há séculos. Nossos ancestrais eram confrontados o tempo todo pela indiferença do mundo à sua existência. Fome, sede, calor, frio, dor e doenças lhes ensinaram que a natureza não vai se moldar aos desejos e necessidades do Homo sapiens. Com as lanças e os abrigos, a tecnologia surgiu como uma forma de domar a natureza de modo que ela se curvasse à vontade da Humanidade, e esse tem sido nosso trabalho há milênios.
Durante a revolução agrícola, descobrimos técnicas que nos permitiram fazer com que as plantas satisfizessem nossas vontades, e assim surgiu a civilização. Daí até o século XVIII, o progresso foi lento e irregular. Todos os homens, mulheres e crianças enfrentavam a brutal indiferença da realidade para com seus desejos e aspirações ao longo de praticamente toda a vida.
A revolução industrial mudou tudo isso. Uma combinação de livre-mercado, energia barata e explosão populacional levou a um salto quântico no progresso tecnológico. Em uma década, parecíamos descobrir e inventar mais coisas do que nos últimos 10 mil anos.
Os efeitos sociais de longo prazo da revolução industrial e da civilização dela oriunda foram investigados por um dos mais importantes pensadores do século XX, Jacques Ellul, The Technological Society [A sociedade tecnológica, publicada em francês em]. Ellul acreditava que a tecnologia (que ele incluía sob um termo mais amplo, técnica) era a ideologia dominante do século, estando acima do comunismo e do capitalismo. O projeto dessa ideologia é, em essência, substituir a natureza pela tecnologia, de forma que os seres humanos não precisem mais enfrentar a realidade que talvez não esteja interessada em satisfazer os desejos deles. O símbolo máximo desse fenômeno, para Ellul, é a cidade contemporânea.
A forma como o livre-mercado se aproveita desse fenômeno é óbvio. A ambição pelo lucro está sempre nos dando máquinas eficientes com as quais é cada vez mais fácil interagir. Os comunistas estão atrás da mesma coisa, ainda que acreditem num caminho diferente para encontrá-la. Ellul observa que “todos os partidos, sejam eles revolucionários ou conservadores, liberais ou socialistas, de direita ou de esquerda, concordar em preservar a supremacia da tecnologia como força motriz da civilização”.
É fácil confirmar essa relação entre natureza e desejo humano no cotidiano. Antes nossa espécie tinha de enfrentar uma resistência considerável do mundo natural a fim de se aquecer nos lugares mais frios, mas hoje a maioria de nós só precisa apertar um botão no termostato. À medida que nossa capacidade de moldar a realidade de acordo com nossos desejos aumenta, nossa necessidade de enfrentarmos a realidade nua e crua diminui. A pura falta de prática nos torna cada vez mais incapazes de nos reconciliarmos com aquilo de que desgostamos. Na verdade, a própria existência de dificuldades com as quais temos de lidar é uma espécie de afronta para a sociedade tecnológica.
Investigar as muitas consequências sociais do progresso tecnológico dos séculos XIX e XX seria difícil; o que nos importa hoje é o advento da tecnologia da informação. A Internet nos permitiu subjugar a informação de modo que ela satisfizesse nossos desejos, da mesma forma que as antigas tecnologias nos permitiram dominarmos os elementos. Na época, Ellul previa que isso aconteceria por meio da propaganda estatal:
A paixão que ela provoca – paixão que existe em todos – é amplificada. A supressão da capacidade de crítica – a capacidade de distinguir a verdade da mentira, o indivíduo do coletivo, a ação da palavra vazia, a realidade da estatística e assim por diante – é um dos resultados mais claros do poder tecnológico da propaganda.
Troque “propaganda” por “Internet” e as palavras se encaixam perfeitamente.
Se a tecnologia da informação seguir pelo mesmo caminho das tecnologias anteriores (e não temos motivos para acreditar no contrário), rumamos para um futuro muito obscuro. Como dito acima, a promessa da tecnologia é a de que ela moldará a realidade a fim de que essa realidade se adeque aos nossos desejos. Mas o que acontece quando se faz essa promessa em relação à informação? Se a tecnologia nos permite filtrar e controlar a informação que nos chega de modo que ela sempre esteja adequada às nossas necessidades, que esperança temos de compartilhar uma experiência comum da realidade, o que é um prerrequisito claro para um governo republicano? Como conciliamos o projeto básico da modernidade – a substituição da natureza pela tecnologia — com a liberdade? Ellul achava que era impossível: “A ideia de promover a descentralização com a manutenção do progresso técnico é uma utopia”.
A característica mais evidente do mundo pré-tecnológico era sua indiscriminalidade. Diante da nossa capacidade limitada de moldarmos o mundo de acordo com nossos desejos individuais, éramos obrigados a confrontar a indiferença do mundo em relação às nossas necessidades compartilhadas, como a necessidade por comida e abrigo. A ética do mundo pré-moderno era definida por meio da conformidade à realidade pré-existente.
A tecnologia vira essa ética de ponta-cabeça e a tecnologia da informação reforça essa inversão. Um caleidoscópio de pontos de vista sobre qualquer assunto está disponível na Internet. Depois de nos alienar coletivamente da realidade imutável, a tecnologia nos condiciona a selecionarmos as informações mais adequadas aos nossos desejos. E assim seguimos a lógica da tecnologia por meio da sua conclusão. Os cidadãos, imersos na tecnologia, relutam cada vez mais em se confrontar com as características da realidade política que resiste a seus desejos. Como consequência, é improvável que a realidade venha a penetrar as camadas da tecnologia autorreferente e seja capaz de “curar a realidade” que a envolve.
O ponto culminante disso tudo, como Bruno Maçães sugere em seu livro mais recente, History Has Begun: The Birth of a New America [A história começou: o nascimento da nova América], é a realidade virtual: um estado-em-si tecnológico no qual nenhum indivíduo tem de se confrontar com nada que seja contrário a seus desejos. O surgimento desse tipo de tecnologia, e a oposição religiosa a ela, provavelmente marcará a guerra cultura deste século.
Alguns dos primeiros leitores de Ellul perceberam logo o que estava acontecendo. John Wilkinson, que traduziu The Technological Society para o inglês em 1964, ouviu falar do livro por meio de seu colega na Universidade da Califórnia, Aldous Huxley. Huxley considerava o livro de Ellul uma admirável análise dos temas que ele mesmo explorou em Admirável Mundo Novo.
Nada disso quer dizer que a tecnologia, intrínseca ou extrinsicamente, seja algo ruim. O problema é que o progresso tecnológico escapou ao controle humano. Nós marchamos de acordo com o ritmo do avanço tecnológico. Somos escravos, não senhores dele. O problema da tecnologia é que “ela se transformou numa realidade em si”, como observada Ellul. “Ela não é mais um meio, um intermediário. É um objeto em si, uma realidade independente com a qual precisamos conviver”. O ex-executivo do Facebook Chamath Palihapitiya admitiu algo parecido: “As reações de curto prazo geradas por dopamina que criamos estão destruindo as sociedades”.
Nossa “libertação” coletiva das realidades imutáveis e indiferentes do mundo está sendo restringida o tempo todo por nossos aparelhos eletrônicos e algoritmos. Esse processo está nos empurrando para uma espécie de solipsismo político, no qual nos tornamos cada vez mais intolerantes a qualquer situação que não expresse nossos desejos. O poeta inglês Charles Williams alertava que “quando os meios são autônomos, eles são mortais”. Como sairemos dessa espiral tecnológica de morte é uma questão a ser respondida.
Cameron Hilditch é membro do National Review Institute .