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Charles Darwin
Charles Darwin, naturalista que propôs a teoria da evolução em 1858, retratado em obras de arte aos sete anos (esquerda), um ano antes da morte (centro) e na estátua de destaque do Museu de História Natural em Londres (direita).| Foto: Darwin Heirlooms Trust/John Collier/Julian Herzog/Wikimedia Commons

Mais de 165 anos depois de publicar suas ideias principais, “Gás” continua atraindo grande interesse nas livrarias. Este era o apelido jocoso que o naturalista inglês Charles Darwin recebeu na escola quando menino, tanto dos colegas quanto do diretor, por seu grande interesse por experimentos químicos (que às vezes liberavam gases) e ciência em geral.

O belamente ilustrado volume “Darwin no Brasil”, publicado pela editora Duas Aspas no ano passado, é uma das provas do interesse incansável pelo evolucionista. O tradutor e organizador Pedro Alencastro fez o serviço de colecionar as já conhecidas passagens do diário de Darwin quando o cientista visitou Pernambuco, a Bahia e o Rio de Janeiro na década de 1830, na qualidade de naturalista a bordo do navio Beagle; e juntá-las a mais menções ao Brasil (e outras localidades da América do Sul) no resto de sua obra e correspondência.

Darwin no Brasil, livro organizado por Pedro Alencastro, lançado em 2023 pela Duas Aspas. Divulgação/Duas Aspas

O livro demonstra, para quem ainda duvidava, que “Gás” era sobretudo um grande curioso sobre os seres vivos; não, como alguns insistem, alguém em busca de estremecer crenças tradicionais sobre a origem do ser humano e seu lugar no Universo por motivações antirreligiosas, racistas (sua família era abolicionista há duas gerações) ou de alguma outra forma nocivas. Prova disso foi que Darwin esperou tanto para publicar a teoria da evolução que acabou tendo de compartilhar a autoria com o colega mais jovem Alfred Russel Wallace em 1858.

Outra obra recente, On The Origin of Evolution (“Sobre a origem da evolução”, em trad. livre, publicado em 2022 pela Prometheus, sem edição no Brasil), do casal inglês John e Mary Gribbin, trata do longo desenvolvimento da ideia da evolução desde as especulações do filósofo grego Empédocles (~490-430 a.C.). Segundo o pensador de dois milênios e meio atrás, os animais surgiram de uma seleção de afinidade entre órgãos e partes de corpo que vagavam pelo caos e se encontravam ao acaso, criando monstros “com face de homem e corpo bovino”, por exemplo, mas também as espécies viáveis.

Como é comum no ramo das leituras populares sobre o assunto, o casal Gribbin diz provocativamente que era “difícil estabelecer uma teoria completa da evolução até que os grilhões religiosos fossem descartados”.

Mas a ideia segundo a qual o debate sobre a evolução e o parentesco entre humanos e outros primatas se dividiu, por um lado, entre pessoas pró-ciência menos inclinadas à fé e, por outro, pessoas religiosas relutantes a aceitar fatos científicos é no mínimo uma simplificação grosseira, como mostra a própria obra do casal inglês.

Exemplos históricos escapam aos estereótipos de ciência vs. religião

Em 1772, ofendido por um livro do aristocrata e diplomata francês Benoît de Maillet (1656-1738) que sugeria que a Terra tinha bilhões de anos e que o ser humano descendia de peixes, um famoso pensador replicou que o autor era um “charlatão” que “queria imitar a Deus e criar um mundo com as palavras”. O crítico era o iluminista Voltaire, que escreveu em uma carta ao rei Frederico II da Prússia que o cristianismo “é com certeza a religião mais ridícula, mais absurda e mais sangrenta que já infectou este mundo”.

Voltaire era deísta: acreditava em Deus, mas não na revelação (ou seja, não no que as religiões dizem sobre Deus), uma posição comum entre seus pares no século XVIII. O filósofo ilustra que nem toda pessoa de pensamento minoritário em religião estava preparada para aceitar a evolução, embora a versão que ele vira em Maillet pouco tivesse de científica.

Por outro lado, muitos dos precursores de Darwin eram religiosos. O juiz e linguista escocês James Burnett, mais conhecido como Lorde Monboddo (1714-1799), dedicou-se a estudar a origem da linguagem estudando línguas de nativos americanos, taitianos, do norte da Europa e do Oriente Médio. A analogia da evolução das línguas com a evolução das espécies foi sugerida pelo próprio Darwin mais tarde, que via órgãos vestigiais (órgãos sem função hoje, mas que tiveram função no passado, como dedos que se observam na região da pélvis de várias espécies de cobra) como análogos às letras sobressalentes, não mais pronunciadas, em palavras como “susceptível”.

O que Monboddo concluiu de seus estudos linguísticos foi que a humanidade tinha uma origem em um único local do planeta e de lá se espalhou para o resto do mundo. Isso é corroborado hoje pela genética de populações, e o local é a África. A origem única da humanidade está em conformidade com a narrativa bíblica. Em sua principal obra, “Sobre a origem e progresso da linguagem” (1774), ele afirma que “é dever de todo historiador inculcar o valor primário da devoção” e chama de “infeliz” a opinião de pessoas que pensam “que não existe Deus, ou que Sua providência não supervisiona e dirige as questões do homem, além das operações da natureza”. Ele sugere que os ateus se afastem do trabalho da historiografia e se dediquem “à comédia”.

Onde o lorde escocês se aproxima de Darwin, de forma surpreendente para um defensor da fé, é em sua opinião sobre os macacos. Mais especificamente, sobre o orangotango. Impressionado com a semelhança do primata com o ser humano, Monboddo defendeu que o orangotango é um ser humano. Seguidor de Aristóteles, ele repetiu na mesma obra a definição de homem dos aristotélicos e se pôs a mostrar como este animal não poderia ficar de fora do conceito.

“Penso que não pode haver dúvida disso”, escreveu sobre o orangotango ser um homem. “Pois não apenas ele tem a forma humana por dentro e por fora, mas tem as particularidades (...) relacionadas à mente, ou o princípio interno”. O juiz filósofo, que como Darwin também tinha noção prática da variação dos animais de criação, chamou os grandes primatas de “irmãos” de criação divina. Ele terminou ridicularizado pelo romancista Charles Dickens na obra Martin Chuzzlewit, publicada 16 anos antes do Origem das Espécies de Darwin.

À esquerda, caricatura do Lorde Monboddo, de 1799. À direita, um orangotango usando um graveto como ferramenta. John Kay/Colin Knowles/Wikimedia Commons

A receita de conciliação entre a ciência e a fé religiosa, ou mais especificamente entre a narrativa do Gênesis e o que a ciência diz sobre a origem humana, já estava em Agostinho de Hipona, canonizado pela Igreja Católica em 1298. Escreveu Santo Agostinho, no livro V da obra De Genesi ad Litteram, escrita entre os anos 401 e 415:

“Supor que Deus formou o homem a partir do pó com mãos corpóreas é muito infantil... Deus não formou o homem com mãos corpóreas, nem soprou sobre ele com garganta e lábios.”

Em outras palavras, Agostinho fazia oposição ao literalismo bíblico 15 séculos atrás, preferindo interpretar o Gênesis como metáfora ou alegoria da criação. Em outra passagem, o santo parece sugerir uma ideia vaga de origem das espécies por um processo evolutivo:

“Na [semente] está de forma invisível tudo o que há de se desenvolver em árvore. E dessa mesma forma devemos imaginar [a origem do] mundo... Isso inclui não apenas o Céu com o Sol, a Lua e as estrelas... também inclui os seres que a água e a terra produziram em potência e em suas causas antes que viessem a existir no curso do tempo.”

A extrapolação da teoria pelos ateus e a resposta dos teólogos

O ateísmo não está contido na teoria da evolução, mas é uma de várias interpretações teológicas possíveis do que a teoria significa a respeito da natureza última do mundo. Ateus como o zoólogo britânico Richard Dawkins argumentam que uma coisa se segue da outra. Em seu bestseller “Deus, um delírio” (Cia das Letras, 2007), o cientista afirma que postular um projetista inteligente para os seres vivos “faz emergir imediatamente o problema maior de sua própria origem”. Para Dawkins, “qualquer entidade capaz de projetar inteligentemente algo tão improvável quanto a planta papo-de-peru (ou um universo) seria ainda mais improvável que a papo-de-peru. Longe de terminar essa regressão viciosa, Deus a intensifica”.

A Gazeta do Povo conversou com especialistas na relação entre ciência e fé a respeito do tema. “Infelizmente, Richard Dawkins não entende a teologia cristã tradicional da criação”, disse Denis Alexander, diretor emérito do Instituto Faraday de Ciência e Religião e membro emérito do St. Edmund’s College na Universidade de Cambridge, Reino Unido. “Ou, se ele entende, escolhe ignorá-la”.

Alexander afirma que a teologia cristã acredita em Deus como “a Causa Primária de tudo o que existe”, o que é muito diferente de “um ‘Deus projetista inteligente’ que opera como um ‘mecânico celeste’ para projetar aspectos específicos do mundo criado”. O problema da ideia do “mecânico celeste”, diz o professor, é que leva “à ideia de Deus como um ‘Deus das lacunas’, ou seja, que é usado para explicar aqueles aspectos do mundo vivo que não entendemos muito bem no presente”. Para esse deus “tapa-buracos”, Alexander diz que é ateu tanto quanto Dawkins. Mas não quanto à Causa Primária, “a Mente por trás de tudo o que existe”.

“O que nós cientistas investigamos são as Causas Secundárias que a Causa Primária usa para suscitar a Sua vontade para o universo”, diz o acadêmico, para quem a ciência só é possível porque este Criador estabeleceu uma “regularidade nômica”, ou seja, as leis da natureza, e a “integridade funcional” dos estudos dessas leis. “A biologia evolutiva opera de acordo com sua própria regularidade nômica. É por isso que cristãos e ateus podem compartilhar a mesma empreitada científica maravilhosa — a ciência de ambos é idêntica”. Ele cita grandes nomes da biologia que tinham fé, como Theodosius Dobzhansky, que trabalhou na conciliação entre Darwin e a genética no começo do século XX.

Para Alexander, faz tanto sentido perguntar quem criou a Causa Primária quanto perguntar, analogamente, “se o número dois foi criado”. A maioria dos matemáticos “acreditam que a matemática expressa uma realidade que é independente das mentes humanas”, ou seja, há um número dois mesmo se não houver mentes humanas para pensarem nele.

Para Everthon de Souza Oliveira, doutor em engenharia e presidente da Sociedade Brasileira de Cientistas Católicos, “Dawkins tenta fazer filosofia a partir de sua prática científica” e que é evidente da própria afirmação do zoólogo “que a ciência não é a chave de resposta para muitas questões”. Oliveira não disputa a qualidade da teoria da evolução para explicar a origem das espécies, mas “a tendência de absolutizar uma teoria como explicação universal constitui uma forma de ideologia, tão dependente de fé quanto qualquer religião”.

Tiago Garros, biólogo e doutor em teologia com passagem pela Universidade de Oxford, concorda com Alexander e Oliveira que “a crítica de Dawkins é inócua e infantil” e que mostra que o zoólogo precisa estudar mais a filosofia patrística, dos pais da Igreja. “Deus é por definição o incriado, a explicação para todas as outras coisas que existem”, afirma.

A importância da pessoa de Darwin para a teoria e a teologia da teoria

Denis Alexander diz que “Charles Darwin era um deísta durante a época em que estava escrevendo o Origem das Espécies” (1859). O naturalista “percebia Deus como a pessoa que criou as primeiras formas de vida, mas que havia então se afastado de um envolvimento ativo em Sua criação”. A opinião teológica do cientista vitoriano foi ela própria evoluindo com o tempo, culminando em uma autodeclaração como “agnóstico”, termo cunhado por seu fiel defensor, o escritor Thomas Henry Huxley, que defendeu a teoria publicamente em um famoso debate contra o bispo Samuel Wilberforce.

“Mas Darwin nunca foi ateu e sempre acreditou que sua teoria era compatível com o teísmo cristão”, afirma o professor de Cambridge, onde Darwin também estudou e que hoje tem um college que leva seu nome — uma entre 31 instituições de alojamento e estudos que começaram como mosteiros, os mais antigos há mais de 800 anos.

“Não penso que a perda de fé do próprio Darwin faça alguma diferença para a apreciação e aceitação da teoria da evolução”, diz Alexander. “As razões pelas quais ele perdeu sua fé cristã estavam concentradas em torno da triste morte de dois de seus filhos quando ainda pequenos, não por causa de sua ciência”.

Em uma encíclica de 22 de outubro de 1996, o então Papa João Paulo II afirmou que a evolução era “mais que uma hipótese”, resultante de “uma série de descobertas em várias áreas do conhecimento” e uma convergência de estudos “não procurada nem fabricada”. Alexander aponta que a cobertura da imprensa na época transformou a afirmação do Papa em “mais que uma teoria”, desfazendo a nuance do original. “Na ciência, as teorias agem como mapas que juntam muitos tipos diferentes de dados e os fazem coerentes”. Dessa forma, uma teoria é o máximo que o trabalho científico pode entregar, enquanto uma hipótese, termo usado corretamente pelo papa, é uma proposta mais especulativa, ainda em teste. “As teorias podem se tornar mais fortes ou mais fracas com a idade”, explica, “dependendo de como lidam com novos dados”. Desde Darwin, a teoria da evolução se fortaleceu muito, englobando a genética e os estudos de desenvolvimento embrionário.

O bispo Wilberforce não era católico, mas anglicano. Em suas declarações iniciais do debate de 30 de junho de 1860 em Oxford, ele perguntou sarcasticamente a Huxley se ele era descendente de um macaco pelo lado de sua avó ou de seu avô. Huxley, então um estudante de graduação, respondeu que preferiria ser neto de um macaco que ter como ancestral “um homem que, não satisfeito com seu sucesso em sua própria esfera de atuação, se lança em questões científicas com as quais não tem a menor familiaridade, só para obscurecê-las com retórica desgovernada e distrair a atenção de seus ouvintes do real assunto em questão por digressões eloquentes e apelos ardilosos ao preconceito religioso”.

Há historiadores que disputam esse relato e pensam que Huxley e seus amigos florearam a história, diz Tiago Garros, que acrescenta que o próprio Darwin reconheceu críticas boas na participação de Wilberforce.

Denis Alexander diz que houve “bastante revisionismo histórico” a respeito do debate. Ele indica como melhor descrição do debate a que está no livro Magisteria: The Entangled Histories of Science and Religion de Nick Spencer (trad. livre: “Magistérios: as histórias entrelaçadas da ciência e da religião”, publicado pela One World em 2023, sem edição no Brasil).

“A principal lição desse debate é que líderes religiosos não deveriam criticar uma teoria científica até que a tenham entendido de forma apropriada e pensado com cuidado a respeito das implicações teológicas possíveis da teoria”, diz Alexander, que afirma que a posição de resistência de Wilberforce não era representativa da Igreja Anglicana. “Na verdade, foi notável a rapidez com que a evolução foi ‘batizada’ pela Igreja Anglicana dentro da teologia cristã”.

De fato, eram sacerdotes ordenados por esta igreja os principais responsáveis na época pelo ensino da teoria na própria Universidade de Cambridge. “Até meados da década de 1860, poucos anos depois da publicação do Origem, artigos de ciências naturais da própria universidade já faziam perguntas científicas que presumiam a validade da ‘teoria do Sr. Darwin’.”

Alexander cita a primeiríssima resposta que Darwin recebeu a um rascunho de seu livro. Ela veio do padre anglicano Charles Kingsley, que escreveu ao autor:

“Aprendi gradualmente a ver que crer na concepção da Divindade que criou formas primevas capazes de autodesenvolvimento é tão nobre quanto acreditar que Ele precisou de um ato novo de intervenção para preencher as lacunas que Ele próprio deixou.” Era uma opinião já comum entre homens letrados, como o filósofo da ciência William Whewell (1794-1866), que escreveu que “podemos perceber que os eventos trazidos à existência não por interposições isoladas do poder Divino, exercidas em cada caso particular, mas pelo estabelecimento de leis gerais”.

Para Everthon Oliveira, “devemos evitar pelo menos dois riscos” ao pensar em importantes figuras científicas como Darwin: “primeiro, o de desvalorizar sua visão científica devido a uma má interpretação filosófica, e segundo, o de validar sua visão teológica/filosófica ao transferir para esse campo o prestígio que adquiriram como pesquisadores”. Oliveira pensa que “as opiniões de Darwin sobre a origem da criação são contribuições valiosas para a reflexão, porém devem ser consideradas com uma autoridade menor do que suas declarações no âmbito científico, sem, no entanto, serem descartadas”.

“Assim como Newton descobriu as leis físicas que regem o movimento do universo”, diz Tiago Garros, “Darwin queria descobrir as leis biológicas que regiam o aparecimento das espécies. Essa noção de leis é totalmente teísta, totalmente cristã. Se existem leis, existe um Legislador, que criou essas leis”.

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