Ouça este conteúdo
Numa passagem do Eclesiastes, ressoa a visão popular de que a sabedoria é um fardo doloroso: “Quanto maior o saber, maior o sofrimento; e quanto maior o entendimento, maior o desgosto”. Esse antagonismo entre a felicidade e a busca pela verdade é reinterpretado em 'Matrix', uma obra aclamada pelo público, quando Morpheus concede ao protagonista Neo a escolha entre a “pílula azul” (que simboliza a permanência na ignorância, desfrutando de uma vida agradável repleta de amizades, apoio social, alimentos deliciosos, paisagens idílicas e um refúgio contra traumas) e a “pílula vermelha” (emblema do despertar para uma realidade desconfortável, marcada pela solidão e visão crua das perturbações humanas). Essa dualidade, que se enraizou no imaginário popular, se radicaliza na ideia de que os filósofos são, por natureza, melancólicos. As pessoas imaginam que, quanto mais profunda for a tristeza e a solidão de alguém, maior será sua inclinação para a inteligência, enquanto a alegria e a sociabilidade indicariam uma propensão à ignorância. Será esta uma verdade inquestionável?
Inicialmente, gostaria de ressaltar que algumas verdades podem ser verdadeiramente desafiadoras de aceitar; mas ignorá-las, apesar do aparente paradoxo, se revela ainda mais problemático. Afinal de contas, a tentativa de apagar da memória eventos traumáticos não é bem-sucedida, já que os armazena numa espécie de inconsciente. Prontos a reaparecer de forma caótica, os traumas desencadeiam problemas mais sérios, manifestanodo-se em “contradições performativas”, tais como:
Negação
Imagine uma mulher que inicia um relacionamento com um homem que parecia ter saído de um conto de fadas. Ele era romântico, surpreendendo constantemente com flores, mensagens carinhosas e gestos atenciosos. No entanto, à medida que o tempo passava, as atitudes dele começaram a mudar. Ele se distanciava, e ela descobriu uma traição. Ele jurou mudar e se esforçar para reconquistar a confiança dela. No entanto, infelizmente, a mudança foi apenas temporária. Episódios de traição multiplicaram-se, acompanhados por explosões de raiva, xingamentos e, eventualmente, violência física. Ora, enxergar a verdade de um mau caráter é difícil, mas mais difícil ainda é negá-la. Enquanto a negação perpetua um ciclo de violência, a aceitação é o primeiro passo para reconstruir a sua vida.
Deslocamento
Considere uma situação em que o chefe expressa raiva a um homem, o homem transmite essa raiva à esposa, a esposa desloca essas emoções para a filha, e, por fim, a filha briga com o namorado. Esse padrão de comportamento ilustra um mecanismo de defesa conhecido como “deslocamento”, no qual emoções são transferidas de uma pessoa para outra que não é a causa original do problema, mas é percebida como socialmente mais aceitável ou pessoalmente menos ameaçadora. Para resolver essa dinâmica, seria necessário que a pessoa expressasse verdadeiramente suas emoções, evitando o deslocamento para algo que parece mais seguro, mas que, na realidade, resulta em autoenganos. Por exemplo, a filha pode aparentar estar com raiva do namorado, enquanto, na verdade, está desapontada com a mãe. Aceitar que se está inserida em uma família disfuncional pode ser um desafio delicado, mas ainda mais difícil é ocultar isso e gerar agressões inconscientes ao namorado, chegando ao ponto de perder um relacionamento valioso.
Essas são apenas duas entre diversas “contradições performativas”, mas evitarei me demorar nelas, pois o objetivo principal deste texto não é explorar problemas psicológicos. Ao invés disso, minha intenção é questionar se a verdade, em sua essência, realmente conduz à tristeza. E considero os exemplos mencionados como suficientes para demonstrar que viver em um mundo de mentiras é ainda mais difícil, pois esconder a sujeira debaixo do tapete não a faz desaparecer. A morte, a doença, a traição e a angústia são inerentes a este mundo, afligindo tanto os sábios quanto os ignorantes, direta ou indiretamente. Em contrapartida, as verdades mais elevadas, naturalmente belas, revelam-se apenas àqueles que nutrem o saber. Isso se evidencia no conhecimento das realidades metafísicas, na simbologia por trás da cultura popular e na profundidade do psiquismo humano, como mostram os exemplos a seguir.
O conhecimento das realidades metafísicas
Quem já experimentou dúvidas sobre a existência de Deus compreende a natureza angustiante desse questionamento. Essas incertezas não são meras questões abstratas, mas ecoam profundamente no sentido da vida e na aceitação dos castigos imerecidos, moldando as decisões do dia a dia. Poderia o homem fazer sexo antes do casamento, vestir roupas provocativas ou experimentar drogas psicodélicas? Para além das questões morais, a ausência de Deus não representa apenas a perda de um ser supremo, mas a vivência em um universo destituído de sentido. Se é o sentido cósmico que dá justificação às dores e aceitação das injustiças, como aliviar o peso da existência humana? Será que os corruptos irão triunfar sem consequências, as crianças afligidas pelo câncer não encontrarão consolo após a morte, e a esperança de reencontrar os falecidos que amamos se evanescerá?
Aquele que não busca o conhecimento pode permanecer em incerteza para sempre, mas o verdadeiro buscador pode deparar-se com provas da existência de Deus, como aquelas apresentadas na 'Metafísica' de Aristóteles e nas cinco vias de Santo Tomás. A primeira via argumenta que tudo o quanto existe possui uma causa, mas ao considerarmos a sucessão de nascimentos (como o meu nascimento da minha mãe, que nasceu da minha avó, e assim por diante), entramos em uma regressão infinita, portanto, deve haver uma Causa Primeira sem causa, Deus.
A segunda via tem relação com a ordem cósmica, exemplificada pela notável estrutura ordenada do corpo humano (cada parte desempenha uma função específica, e os sistemas colaboram entre si para manter o equilíbrio), o que é comparado ao plano arquitetônico, sugerindo a existência de um Arquiteto. A terceira via argumenta que há coisas contingentes (que podem ou não existir), ao passo que se tudo fosse contingente, haveria um momento em que nada existia, mas como o mundo não pode surgir do nada, deve haver um Ser necessário e eterno. A quarta via enfatiza que a hierarquia de perfeição nas coisas (como a superioridade da planta em relação à pedra, do animal ao vegetal, do homem aos bichos), portanto, aponta para a existência um Ser supremamente perfeito que sirva de modelo para essas perfeições menores. E a quinta via baseia-se na observação de que as realidades naturais têm finalidades, como o órgão sexual designado à geração de filhos, indicando um propósito planejado por Deus. Não são, afinal de contas, provas que acalmam o coração?
A simbologia por trás da cultura popular
Outra coisa que inquieta o ser humano é viver numa sociedade permeada por ilusões. Recentemente, ao assistir “Mussum” no cinema, deparei-me com uma dessas quimeras. Ora, o ícone dos Trapalhões começou a sua carreira bem-sucedida como sambista, na qual, de fato, teve mais lucros do que lhe daria os sonhos maternos de uma vida estável como sargento. Contudo, sua verdadeira paixão pelo samba foi menor do que seu talento para a comédia, que lhe dava maior retorno financeiro. A coisa se complica porque Mussum amava mais o samba do que o humor, mas se viu compelido a abraçar a vida de comediante. Até tentou conciliar ambas as profissões, porém, como diz o ditado, “uma bunda não pode sentar em dois cavalos ao mesmo tempo”. À medida que enriquecia, seu tempo para o samba, a família e a Escola da Mangueira, que tanto amava, diminuía.
O drama subjacente é que, mesmo possuindo toda a riqueza do mundo, ela não proporciona liberdade absoluta. A existência do rico, quando este não tem tempo para nada, pode até ser mais limitada do que a vida de um homem simples. O filme, porém, paradoxalmente concluiu com um discurso que contradiz a própria vida de Mussum: “Você pode fazer o que quiser!” Essa fala gritante apareceu por pura lacração, à semelhança do desaparecimento das piadas mais famosas de Mussum, aquelas politicamente incorretas.
Aqueles que não buscam a vida intelectual podem inadvertidamente negligenciar essas questões, pois eles não frequentam o cinema com o espírito analítico, mas sim com o mero intuito de entretenimento. O problema é que acabam por absorver uma série de ideologias projetadas pela chamada “guerra cultural”, na qual a esquerda tece narrativas com o objetivo de moldar a percepção coletiva sobre moralidade, política e identidade pessoal. Arte e educação, que deveriam ser expressões autênticas do espírito humano, transformam-se em veículos de propaganda política. Sem uma vida refletida, pronta a analisar o simbolismo subjacente ao que é visto e ouvido, o indivíduo corre o risco de não se tornar uma personalidade autêntica (a qual é fruto do conhecimento), mas sim de ser uma marionete dos interesses políticos mundiais.
Conclusão
Com essas considerações, pretendo dizer que aquele que inicia sua jornada na vida intelectual pode sentir uma melancolia inicial, pois há um preço social a ser pago na busca pelo conhecimento: as conversas triviais podem parecer vazias, o mainstream militará pelo seu cancelamento e a maioria das produções culturais da atualidade parecerá sem graça diante das grandiosas obras que maracaram a história da arte. No entanto, gradualmente, é possível se integrar em pequenos círculos intelectuais ou orientar seus amigos menos instruídos, em semelhança a Sócrates, que dialogava não apenas com poetas e políticos, mas também com escravos e jovens sem instrução. Além disso, é plenamente possível aprender a suportar certa solidão, transformando-a em solitude, sem cair na amargura. Nesse processo, amigos mais fascinantes podem surgir no caminho. Como já expressou um intelectual do passado, devemos buscar uma vida na qual a virtude e o conhecimento sejam considerados agradáveis; as companhias, sempre instrutivas; e a própria solidão, aprazível.