São Vicente, São Paulo, 1565. José de Anchieta desenterra uma criança recém-nascida. O menino nasceu saudável. Mas, como a mãe havia se divorciado, uma prática comum naquela tribo, e já tinha outro esposo, a avó paterna decidiu que, segundo o relato do missionário jesuíta, “ficava o menino mestiço de duas sementes (...) e que tais depois são débeis”.
Retirado da cova rasa, o bebê não resistiu.
Em outra ocasião, Anchieta soube do enterro de um bebê que nascera, segundo seu relato, “sem nariz e não sei que outras enfermidades”. E por isso havia sido colocado em um buraco por um irmão mais velho, a mando do pai, já que “assim fazem a todos os que nascem com alguma falta ou deformidade”.
Canarana, Mato Grosso, 2018. Um bebê é enterrado pela avó e pela bisavó logo depois de nascer. Graças a uma denúncia de vizinhos, a polícia localiza e retira o recém-nascido com vida, seis horas depois – eles ouviram um choro baixo debaixo da terra. O bebê sobreviveu, depois de passar 16 dias entubada. A mãe e a bisavó foram presas. A polícia apurou que o parto em casa e o enterro da criança viva foram planejados e contaram com a presença de familiares que moram na mesma reserva indígena.
Separados 453 anos no tempo e 1.430 quilômetros no espaço, os dois casos confirmam que a prática de infanticídio fez – e ainda faz – parte da cultura de muitas tribos que já habitavam o Brasil muito antes da chegada dos colonizadores portugueses, a partir de 1500. Os mesmos missionários que observaram os casos de assassinatos de recém-nascidos indicam que não havia sadismo no costume.
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No geral, pais e mães indígenas são extremamente carinhosos e protetores com os filhos. O missionário Fernão Cardim, por exemplo, escreveu, em 1583: “Os pais não têm cousa que mais amem, que os filhos, e quem a seus filhos faz algum bem tem dos pais quanto quer”. Em 1614, Claude Abbeville, missionário francês, descreveu o mesmo costume entre os índios do Maranhão: “Era também de se maravilhar ver as mães, que nesse lugar amam seus filhos ternamente, a ponto de jamais perdê-los de vista”.
Considerando que os moradores mais antigos do país não sentem prazer em maltratar crianças, e já mantinham essa prática muito antes de a legislação de origem europeia a proibir, não seria aceitável permitir que o infanticídio de motivação cultural continue sendo praticado? Mas, nesses casos, onde ficam os direitos humanos das mães, e dos próprios bebês?
Artigo 123
O mesmo Claude Abbeville que ficou encantado com o carinho das mães pelos filhos escreveu que, entre os índios do Maranhão, não havia “quase nenhum zarolho, nem cegos, corcundas, coxos ou disformes”. Se adotasse esse critério como Estado, o Brasil atual perderia 6,7% de sua população – esse é o percentual de pessoas com deficiência no país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se nascessem dentro das tribos que praticam infanticídio, essas 14 milhões de pessoas seriam mortas.
Judicialmente, ainda que os índios sejam protegidos pelo Estatuto do Índio, a prática está tipificada no artigo 123 do Código Penal, como infanticídio, ocorrendo durante o parto ou logo após, com pena de detenção que pode variar entre dois e seis anos. A pena é relativamente branda porque o infanticídio, segundo a lei, é praticado exclusivamente pela mãe, imediatamente após o nascimento, e apenas no caso em que ela esteja comprovadamente fragilizada pelo parto. Se causada posteriormente, ou por qualquer outro membro da tribo, a morte de um bebê se enquadra no artigo 121 e passa a ser considerada homicídio, com pena de seis a 20 anos. Enterrar a criança viva é um agravante, já que provoca sofrimento.
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Além disso, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 1057/2007, que reforça a proteção para crianças das tribos – o texto ficou conhecido como “lei Muwaji”, em referência a uma mãe da tribo dos suruwahas, que se recusou a matar sua filha Iganani, nascida em 2004 com paralisia cerebral. Muwaji abandonou a tribo e nunca mais voltou. A mesma etnia já registrou o suicídio de um casal, que preferiu se matar ao assassinar sua própria filha.
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O infanticídio ainda faz parte da cultura de uma série de povos, incluindo uaiuai, bororo, mehinaco, tapirapé, ticuna, amondaua, uru-eu-uau-uau, suruwaha, deni, jarawara, jaminawa, waurá, kuikuro, kamayurá, parintintin, yanomami, paracanã e kajabi.
O Mapa da Violência, em sua edição de 2014, identificou 96 mortes de indígenas de menos de seis dias de idade, em Roraima e no Amazonas, ao longo de dois anos. Em um único município, Caracaraí (RR), 37 recém-nascidos foram mortos pelas próprias famílias apenas no ano de 2012 – a cidade tinha na época apenas 19 mil habitantes e registrou apenas outros três homicídios no mesmo período. É comum, na região, que mulheres em estágio final de gravidez entrem na mata e só reapareçam dias depois, sem a barriga nem a criança.
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O objetivo da entidade Atini, cuja fundadora mais conhecida é a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, é precisamente evitar a prática. A instituição surgiu em 2006 e, desde então, afirma ter salvado pelo menos 50 crianças em situação de risco de morte. Segundo a advogada da ONG, Maíra de Paula Barreto Miranda, a Atini foi criada a partir de uma demanda de mães indígenas que queriam salvar a vida de seus filhos.
“A partir do momento que os indígenas souberam que havia uma alternativa à morte, que era possível ter acesso a serviços de saúde, eles passaram a busca ajuda”, diz ela. “A Atini auxilia essas famílias, que são vozes dentro das suas próprias culturas e que querem mudança”.
Abandono e venenos
Em pleno século 21, a maneira mais comum de matar bebês nas tribos é a mesma testemunhada por Anchieta: enterrar recém-nascidos vivos. Mas também há muitos casos em que os bebês, com menos de uma semana de nascidos, sejam simplesmente abandonados na mata. Existem outras formas de tirar essas vidas, como aponta o estudo “O Infanticídio e a Violação dos Direitos Humanos das Mães Indígenas”, apresentado por uma equipe de pesquisadores da Faculdade Maurício de Nassau, de Campina Grande (PB): “As crianças são abandonadas na floresta, sufocadas com folhas, envenenadas, flechadas ou golpeadas com facão”.
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As deficiências físicas são o motivo mais comum para o infanticídio, mesmo quando se manifestam tardiamente – há registros de assassinatos de crianças de até 12 anos de idade. Mas também acontece de mães terem que matar as filhas meninas porque a tribo precisa de mais homens do que mulheres, ou de, no caso de nascimento de gêmeos, famílias serem obrigadas a escolher um dos dois para matar. Muitas vezes, basta que a criança seja considerada amaldiçoada para a comunidade decidir por sua morte.
O assassinato de bebês é uma das práticas tradicionais que, aos olhos contemporâneos, não se justificam. Os próprios índios, por exemplo, mutilam crianças de 4 anos ao furar seus lábios a fim de colocar adornos. Na África, resiste há séculos a prática da mutilação genital em meninas. No Brasil e em dezenas de outros países, os ciganos sustentam a tradição de casar crianças. O limite entre respeitar as tradições e preservar os direitos humanos é difícil de definir.
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Existe uma linha acadêmica que defende que todos os costumes indígenas devem ser mantidos intocados. Mas o antropólogo Ronaldo Lidório, doutor em Antropologia pela Royal London University e membro da American Anthropological Association, alerta para o risco de colocar o relativismo cultural acima de valores absolutos, como o respeito à vida. “A grande contribuição do relativismo foi abrandar a arrogância das nações conquistadoras e gerar uma visão de tolerância cultural”, diz ele. No entanto, aponta, “o relativismo radical torna as culturas estáticas e estanques e as pretere de transformações autônomas, mesmo as desejadas e necessárias”.
Transição respeitosa
À parte discussões sobre a preservação da identidade das tribos, há relatos de que, entre os índios, muitas das mães dos bebês se opõem à prática, mas são forçadas a aceitá-la, sob pena de perder qualquer direito na comunidade.
No artigo Uma visão antropológica sobre a prática do infanticídio indígena no Brasil, Ronaldo Lidório descreve um caso que ele presenciou:
“Em Santa Isabel do Rio Negro, no ano de 2006, observei uma moça yanomami à procura de ajuda no hospital local. Esmurrava seu ventre aparentemente tentando interromper sua gravidez no sétimo mês de gestação. Um enfermeiro local, comentando o fato, anunciou que nada se podia fazer, pois era uma atitude cultural, uma escolha compreendida apenas dentro do universo yanomami. Mais adiante, interessado em observar o caso de perto, consultei seu irmão que a acompanhava ao hospital. Este claramente me confirmou que aquela gravidez era indesejada pelo grupo e, portanto, poderia ser interrompida”.
A pressão social, descreve o pesquisador, era visível. “O grupo, que a pressionava, o fazia nutrido pelo medo e tradição. O irmão, que a acompanhava, se sentia impotente e confuso”.
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A mestre em antropologia social e especialista em antropologia da criança indígena Viviane Coneglian Carrilho de Vasconcelos afirma que, de fato, o costume provoca polêmica dentro das tribos. “A prática existe, não sem muitas discussões internas que representam, muitas vezes, um sacrifício individual destas mães, em favor de uma decisão social. Assim, a decisão é geralmente coletiva e somente se dá em casos em que o malefício é considerado muito grande para a criança e seu grupo familiar”.
Em geral, a Atini recorre à estratégia de retirar das tribos as crianças em risco. “Não se pode matar uma criança porque a cultura permite, e muito menos relativizar os direitos humanos de acordo com o local de nascimento ou a idade da pessoa”, alega a advogada Maíra de Paula Barreto Miranda, que informa que todos os atendimentos foram realizados a famílias e que a ONG não acolheu nenhuma criança indígena desacompanhada dos pais.
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Mas será que é possível orientar as tribos, de forma a eliminar esse costume, sem retirar os bebês de suas famílias nem agredir a cultura local? A resposta é sim, diz o advogado Erick Pereira, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
“Deve-se construir uma forma de modulação para a passagem valorativa de erradicar o infanticídio pela mudança cultural e não simplesmente pela proibição estatal com intervenção abrupta. É através da inserção suave de uma ideia que se conquista uma mudança cultural específica e pontual. O que se deve evitar é que haja aculturação”.
Essa é também a linha de raciocínio da advogada Palloma Massette, pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil. “Acredito que não é possível discutir a prática como algo aceito ou não aceito socialmente, pois a minha perspectiva social é completamente diversa da vivenciada pelos povos indígenas, mas é fundamental que o Estado se esforce para criar políticas públicas de proteção aos povos indígenas, intervindo minimamente na cultura e oferecendo atendimento médico e planejamento familiar com acompanhamento de gestantes”.
Com colaboração de Adrieli Evarini