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O conto de fadas “O Alfaiate Valente”, história popular alemã com primeira aparição impressa em 1557 e recontada pelos irmãos Grimm e Walt Disney, tem como título alternativo “Sete de uma tacada só”. É porque o protagonista, ao servir geleia, mata sete moscas de uma vez. Ao sair pelo mundo contando a história, as pessoas entendem que ele se referia a sete homens ou sete gigantes, começando assim uma trama de mal-entendidos em que as capacidades do alfaiate são exageradas.
Trama similar aconteceu com o professor pernambucano Paulo Freire (1921-1997), declarado patrono da educação brasileira por uma lei de 2012. Como contou o Ministério da Educação na época, Freire, em 1961, quando diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade de Recife, “montou uma equipe para alfabetizar 300 cortadores de cana em 45 dias” no município de Angicos, no Rio Grande do Norte, na época com 75% de taxa de analfabetismo. O método de Freire seria audiovisual e fonético, com uso pioneiro de projetores de slides e palavras comuns para o vocabulário da própria comunidade.
Mas o designer Cícero Moraes, em um artigo em pré-publicação postado na rede social acadêmica ResearchGate, lança dúvida nos números e métodos. Os formandos do curso “na verdade eram 122” e os alunos não foram plenamente alfabetizados, só “aprenderam a escrever o nome, ler e escrever algumas poucas palavras”. Em conversa com a Gazeta do Povo, Moraes, que tem experiência em ensinar computação gráfica desde 2001 e ensina técnicas avançadas de planejamento cirúrgico para pessoas de 27 países, diz que leu Paulo Freire ainda na graduação e sempre achou a abordagem do educador “pouco objetiva e pouco útil”.
Na publicação, o designer de Sinop (MT) — que se especializou em produzir modelos tridimensionais e entrou para o livro Guinness em 2021 após reconstruir um casco artificial para um jabuti vítima de um incêndio — vai além. O projeto de Paulo Freire não teria acabado por causa da repressão política da Ditadura Militar (embora Moraes não conteste que ele foi perseguido e tenha se exilado), mas por causa da “deficiência de material voltado à alfabetização e o excesso de politização das aulas”.
Para o projeto de alfabetização, Freire, apesar de compartilhar do antiamericanismo dos colegas de ideologia, aceitou dinheiro do governo dos Estados Unidos porque seria, na sua visão, um recurso que “voltava ao Brasil” porque o último seria “explorado” pelo primeiro. Também houve apoio do vigário de Angicos, que cedeu espaço da paróquia católica para a empreitada. Os recursos americanos eram da iniciativa “Aliança para o Progresso”, da USAID (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional).
Trezentos de uma tacada só?
A revista O Cruzeiro, em sua edição 30 de 1963, conta que o presidente da República, João Goulart, deu a aula de encerramento do curso de Freire, a quadragésima hora-aula. “Trezentas pessoas inteiramente analfabetas aprenderam a ler e escrever em 40 horas de aula”, informou a revista, que curiosamente também alegou que o método de alfabetização preocupava “maus políticos e os comunistas”, apesar de Paulo Freire ser famoso por sua base marxista.
No mesmo ano, o New York Times noticiou o sucesso do programa de Freire abrindo uma reportagem com a história da mãe de seis filhos Maria Pequena de Souza, 32 anos, que verteu lágrimas ao conseguir escrever uma palavra. O jornal também destacou as meras 40 horas do curso, mas apontou que havia politização: “Enquanto aprendem a ler, os adultos ouvem que (...) ‘a reforma agrária é necessidade urgente’”. Outra aluna, a lavadeira Francisca de Andrade, teria escrito ao presidente que “não sou mais das massas, pertenço ao povo e posso defender meus direitos”, mencionando reforma agrária.
O jornal americano já desmente em 1963 a informação do Ministério da Educação: “150 adultos completaram o curso e 135 foram considerados alfabetizados com base em testes escritos e cartas escritas ao presidente Goulart. Os alunos também foram avaliados quanto à consciência política”.
Cícero Moraes, contudo, usa outra fonte: o livro “As Quarenta Horas de Angicos” (Cortez, 1996), de Carlos Augusto Lyra Martins, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte que coordenou os trabalhos pedagógicos em Angicos na época. Os dados fornecidos por Lyra mostram que a evasão estava alta no curso de Freire: uma semana e meia após o início, o número de presentes caiu pela metade, resultando em uma média de 115 alunos por dia. O número de monitores envolvidos, de 21, também parece ter caído para 14 nos diários de classe arquivados. É do livro o número 122, o total de alunos que fizeram a avaliação final.
Moraes não duvida que as aulas tenham dado uma injeção de ânimo para uma comunidade pobre e esquecida, mas questiona o método: “visto que a cada dia era ministrada apenas uma hora de aula e parte dela era tomada por debates, como os alunos teriam tempo e condições para aprender a ler e a escrever?” Ele faz uma comparação com o programa mais moderno do Instituto YDUQS, que “demanda 144 horas, ou seja, 3,6 vezes o período do projeto original de Freire”, habilitando os estudantes para usos simples da língua como uso de transporte público. A avaliação final em si teve problemas: os monitores rejeitaram os testes finais do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife e resolveram elaborar suas próprias avaliações. Foram duas provas, uma de alfabetização e outra de politização.
Um terço dos 122 não passou na prova de letramento. Mas o resultado da politização foi melhor, com 87% de aprovados. As duas notas então foram mescladas, fazendo com que a nota da politização puxasse para cima o resultado em alfabetização, o que o autor do artigo chama de “jeitinho brasileiro” para “aprovar um maior número de pessoas ao reduzir o peso da alfabetização... em um programa de alfabetização”.
Tinha como dar certo?
Cícero não está sozinho em seu ceticismo ao reavaliar a história de educador valente de Paulo Freire. “Ninguém cortava cana. Não se plantava cana em Angicos”, desmente o professor Ronai Pires da Rocha, doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor da Universidade Federal de Santa Maria e autor do livro “Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire” (Editora Contexto, 2017).
Rocha conta que a cultura principal de Angicos era o algodão mocó, seguido por cabras, ovelhas, vacas e a fabricação de linha de costura. Ele cita como fonte o livro “40 Horas de Esperança: o método Paulo Freire” (Editora Ática, 1994), de Calazans Fernandes e Antonia Terra. A obra também afirma que os alunos do curso de Freire só começaram a tentar formar frases na 37ª hora das menos de 40 totais do curso. “Ao se aproximar do final do curso, os alunos começaram a dizer que não sabiam escrever ou que sentiam dificuldade de leitura, quando já haviam dominado as mesmas dificuldades em outras situações”, escreveram Fernandes e Terra. Os monitores interpretaram essas reclamações como uma forma de retardar o fim do curso para manter a relação afetiva que formaram com os mestres.
“As duas coisas eram verdadeiras, eu acho”, comenta Ronai Rocha. “Os alunos foram, a rigor, familiarizados com letras e palavras, aprenderam a assinar o nome e a ler coisas muito simples ligadas ao que havia sido trabalhado nas aulas”, resume o especialista, que já trabalhou com alfabetização de adultos.
“É muito difícil alfabetizar adultos e, a rigor, deveríamos fazer uma espécie de gradação nas habilidades que eles vão conquistando, sendo que o teste final ideal, de escrita de um bilhete, uma cartinha, com ortografia e sintaxe razoáveis, é bem demorado”, explica Rocha.
Concorda com Rocha a professora Simone Benedetti, autora do livro “A falácia socioconstrutivista” (CEDET, 2020), um apelo para uso de bases científicas para o letramento no Brasil. Ela imagina que é mais difícil alfabetizar adultos “dado o menor nível de plasticidade e especialmente se o adulto tiver problemas de processamento auditivo e fonológico”. Para ela, “45 dias parecem pouco” para a aquisição integral das competências de uma pessoa capaz de ler e escrever com fluência.
O método de Paulo Freire não é tanto de Paulo Freire
Independentemente, Benedetti e Rocha contaram à Gazeta do Povo que o método de Freire existe, mas que não é exatamente “dele”, dando cada um peças do quebra-cabeça histórico do desenvolvimento da técnica. Benedetti aponta que Freire “se ‘apropriou’ de uma ideia pedagógica de um missionário norte-americano chamado Laubach e, aqui no Brasil, essa ideia de usar palavras ‘significativas’ para o aprendiz misturou-se às ideias equivocadíssimas da Emília Ferreiro, o que resultou no que chamo de ‘desensino’, pois não se oferece informação explícita aos alunos sobre o funcionamento do código escrito e seus padrões”.
Em vez disso, detalha a especialista, espera-se que o aluno faça suas próprias inferências sobre a gramática e a grafia. Essa abordagem “nunca funcionou”, mas seus defensores insistem que “nunca foi aplicada” ou “os professores é que não sabem trabalhar”. No entanto, “é apenas ela e somente ela que é ensinada nas faculdades de pedagogia do país”, lamenta Benedetti.
Outra fonte de Freire que caiu no esquecimento, informa Rocha, foi um “Livro de Leitura para Adultos”, uma cartilha elaborada pelas pedagogas Norma Porto Carreiro e Josina Godoy, elogiada efusivamente pelo famoso educador Anísio Teixeira em 1962, ano em que a equipe de Freire mandou uma estudante para coletar as 400 palavras mais usadas pelo povo de Angicos. “Considero essa cartilha a melhor cartilha para adultos analfabetos que, até agora, conheci no Brasil”, disse Teixeira em outubro de 1962, na época à frente do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos.
Freire soube da cartilha quando ainda estava sendo elaborada por Norma Carreiro e disse, numa reunião de funcionários do Movimento de Cultura Popular, da prefeitura de Miguel Arraes no Recife (1960-1963), que estava pensando na alfabetização de adultos, “mas sem cartilha”. A informação é do livro “MCP: história do Movimento de Cultura Popular” (CEPE, 2012), de Germano Coelho. O autor acrescenta que encorajou Freire a trabalhar na questão da alfabetização com as palavras do ditador genocida comunista Mao Tse-tung: “É preciso deixar florir mil flores”. O MCP era “laboratório de novos métodos e novas técnicas de ensino”, contou Coelho. As ideias desenvolvidas no livro mais famoso de Freire, “Pedagogia do Oprimido” (Paz & Terra, 2019) vieram só depois da cartilha para “iluminar a prática” com ideias políticas.
A obra relata que a ideia de Freire era dar cursos com inspiração na cartilha de Carreiro, mas sem entregá-la aos alunos. “Ou seja, ele pegou o bonde andando”, comenta Ronai Rocha, “e teve a sacada de fazer a coisa em pílulas, de forma mais participativa. Mas a Norma e a Josina ficaram esquecidas nessa história”.
Freire acabou sendo acusado de plágio, como ele próprio comenta em nota de rodapé do livro “Educação como prática da liberdade” (Paz & Terra, 2019): “nunca nos doeu nem nos dói quando se afirmava (...) que apenas fizemos ‘um plágio de educadores europeus ou norte-americanos’. E também de um professor brasileiro, autor de uma cartilha”. O educador se justifica: “a respeito de originalidade sempre pensei como [John] Dewey [filósofo americano], para quem ‘a originalidade não está no fantástico, mas no novo uso de coisas conhecidas’. O que nos deixa perplexos é ouvir ou ler que pretendíamos ‘bolchevizar o País’.”
O que explica a ascensão meteórica do alfaiate valente da educação?
Por que Paulo Freire se tornou tão célebre no Brasil e no mundo? Internamente, Rocha pensa que foi uma questão de conveniência: “a grande promoção que o método teve estava ligada ao fracasso das leis que permitiriam o voto do analfabeto. Como a esquerda não conseguiu aprovar essas leis, a ideia era fazer uma alfabetização em massa e rápida. Esse contexto foi decisivo para que Freire tivesse o apoio governamental que teve”.
Nem todos os contemporâneos acreditaram na reputação ilibada do alfaiate valente da educação, informa Rocha. Francisco Julião Arruda de Paula (1915-1999), advogado atuante nas Ligas Camponesas do Partido Comunista Brasileiro que conviveu com Freire no exílio no México, escreveu com aparente sarcasmo que “nosso Paulo, barbado como um profeta, puxado a Buda, com sua mania de feijoada e seu modo de ser, sempre repousado e provincial dentro de seu universalismo, era uma flor de maracujá-peroba, porque chamava a atenção de todos!” Depois, no mesmo texto, parece ter mandado uma indireta a respeito de compatriotas “que eu mandaria à Lua na esperança de que a árida solidão os humanizasse e os fizesse sentir que fora da solidariedade não adianta que alguém bata no peito e diga: eu sou revolucionário! Eu sou marxista! Eu sou cristão”. Na época, Freire fora trabalhar para o Conselho Mundial de Igrejas e se dizia marxista e cristão. Outro militante comunista da década de 1960, Flávio Tavares, creditava a projeção do educador à generosidade dos comunistas.
No resto do mundo, Freire bateu recordes com 35 títulos de doutor honoris causa e já foi citado mais de 550 mil vezes no Google Acadêmico — mais que Albert Einstein e Charles Darwin. Mas céticos começaram a aparecer. No livro “A marxificação da educação: o marxismo crítico de Paulo Freire e o roubo da educação” (New Discourses, 2022; trad. livre, sem edição no Brasil), o matemático e ativista americano James Lindsay faz duras críticas ao brasileiro. O autor pensa que Freire “revela o suficiente de seu caráter pelos nomes que invoca repetidamente: Karl Marx, G. W. F. Hegel, Vladimir Lênin, Mao Tse-tung, Fidel Castro e, com lugar de destaque, Che Guevara. Poucos teóricos da educação (pedagogos), se algum, são mencionados, citados como referência ou aplicados”.
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