“Mao”, de Andy Warhol: o ditador comunista não gostava de banhos, não escovava os dentes e era um poço de doenças sexualmente transmissíveis| Foto: Reprodução
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Ainda há bastante espaço livre na "História Universal da Infâmia" esboçada na década de 1930 por Jorge Luís Borges. Mestre da concisão, mas também da preguiça, o argentino elencou apenas sete malfeitores em seu bestiário. É tentadora a ideia de dar sequência à série — até porque, mesmo se nos limitarmos ao barco-sem-rumo do século XX, não faltarão candidatos à vaga de “oitavo passageiro”. Um deles, hors-concours: Mao Tsé-tung, ou Zedong, que se autointitulava “o Grande Timoneiro”, o infame que conduziu a China para um previsível naufrágio, e que ao morrer com 82 anos devia à justiça dos homens a morte de mais de 70 milhões de chineses — sem contar alguns estrangeiros e desafetos pessoais. 

Às vezes, são vários os motivos que levam os homens a imprimir sua marca mais horrenda na pele do mundo. Às vezes, os motivos se mesclam e se emaranham. Em Mao, cumulavam-se a ambição desmedida, a crueldade, a falta absoluta de sentimentos morais e uma série de “qualidades” que cabem sob um só “guarda-chuva”: a palavra infâmia. Assim se expressa o Mal.

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Um dia depois do Natal… 

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Em 26 de dezembro de 1893, um dia depois do Natal, nascia na cidade de Shaoshan aquele que os chineses (na época, já representando um quarto da população da Terra) amaram e temeram com a mesma perplexidade. Mao Tsé-tung, ou Mao Zedong, ou em caracteres locais: 毛泽东. Certamente a referência ao Natal é mais do que infeliz coincidência: é um festival de ironia, fazendo confluir em datas tão próximas o nascimento do Cristo e o do Anticristo… 

Já desde o início, os relatos biográficos sobre Mao se bifurcam. Alguns deles garantem que Mao nasceu numa família de camponeses e teve infância pobre. Outros relatam que o pai, Mao Yichang, era um fazendeiro próspero. Uns afirmam que o garoto viveu num lar harmonioso, com pais atenciosos e protetores; outros preferem apostar na figura do pai opressor, que eventualmente espancava a família. 

O que é História e o que é lenda, em tudo isso? Façam as apostas, mas lembrem-se de que, se a roleta é suspeita, a banca vence sempre. Porque as duas versões ajudam a criar o monstro legendário – principalmente a partir de 1906, quando o adolescente Mao abandonou a casa do pai para estudar em Changsha. No fim das contas, tudo se acomoda, como em qualquer mentira: a versão camponesa ajuda a chamar de ressentimento e revolta contra a pobreza todas as maldades que ele veio a perpetrar; na versão “família abastada”, o tempero é a suposta coragem de romper com as origens e fazer a proverbial “opção pelos pobres”...

A História traz poucos detalhes dos anos de estudos formais, que se estendem de 1913 a 1918. Mas sabemos que, depois de se formar professor, Mao se mudou para Pequim e começou a trabalhar na biblioteca da Universidade local – o que lhe permitiu contato imediato com Li Dazhao, cofundador em 1921 do Partido Comunista Chinês, o PCCh.  

A influência de Dazhao será decisiva para a biografia de Mao – sobretudo nas versões assumidamente hagiográficas. Já no mundo real, que é irrevogável e indiferente às mentiras, sabemos que ninguém pode pôr o dedo na ferida e dizer simplesmente, como Hamlet no Terceiro Ato da tragédia de Shakespeare: “Assim começa o Mal!” No caso de Mao, a maldade entrou em sua vida por diversas portas. Sabe-se que ele ingressou no Partido Comunista no ano mesmo de sua fundação, e que de 1921 a 1927 mestre e discípulo militaram juntos e intensamente, ora fazendo alianças, ora disputando espaço com o partido rival: o nacionalista Kuomintang. Aos poucos, o Partido Comunista Chinês foi crescendo em importância – e Mao foi crescendo e ganhando fôlego dentro dele. Quando a disputa ficou mais acirrada, o PCCh criou hostes próprias: o Exército Vermelho. Mao – adivinhem! – foi seu primeiro comandante.

A Grande Marcha: devagar se vai aonde? 

Das irrelevantes contribuições teóricas de Mao para a “dialética revolucionária”, destaca-se apenas a decisão de romper com o modelo soviético (de matriz urbana e industrial) e optar por “revolução camponesa”. De resto, os dois modelos foram fracassos retumbantes e sanguinários – mas cada um desastroso a seu modo.

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Em 1924, a História nos mostra Mao se estabelecendo na região de Jiangxi, onde até 1934 liderou a cegueira comunista (também conhecida como “resistência”). A essa altura, cercados e pressionados pelo agora inimigo Kuomintang, Mao e suas hostes decidiram bater em retirada – num episódio conhecido na história oficial como a Grande Marcha.

Consta que, de grandioso, o evento teve apenas o número de mortos: cerca de 100 mil soldados começaram uma caminhada de mais de 10 mil quilômetros sem comida e sem planos através de 11 províncias, sempre fugindo das tropas do Kuomintang. Em 1935, só uma parcela mínima conseguiu chegar a Yan’an. Algumas versões falam em 10 mil sobreviventes, outras arriscam 20 mil – mas todas falam de miséria, fome e dezenas de milhares de cadáveres. Quanto aos fatos, só um acabou se impondo, irrefutável: o crescimento da lenda Mao Tsé-Tung, que naquele mesmo ano foi proclamado Líder do Partido Comunista.

Acrescente-se a essa receita indigesta o longo conflito com um Japão invasor, só encerrado com a derrota dos japoneses ao fim da Segunda Guerra Mundial; juntem-se muita traição e violência, e o recomeço da disputa sangrenta entre nacionalistas e comunistas – e saberemos um pouco mais sobre como e quando começaram o Mal e o Mao. Em 1º de outubro de 1949, o pesadelo ganhava tons vermelhos mais fortes: nascia a República Popular da China. Crescia o poder do Mal (e do Mao).

“O Grande Salto à Frente”, rumo ao abismo 

Em pouco tempo, Mao Tsé-tung se tornou uma das pessoas mais influentes, poderosas e cruéis da nova República. Numa China que já vivia no limite da pobreza e do desgoverno, o Grande Timoneiro realizou a proeza de tornar as coisas ainda piores.

Era preciso recuperar a economia. Era preciso ampliar o controle do Estado. Para o primeiro projeto, Mao impôs planos econômicos que contrariavam a realidade e a matemática; para o segundo propósito, tratou de perseguir e eliminar seus opositores – o que abrangia toda e qualquer pessoa que discordasse dele. O resultado? Planificações e confiscos de terras, prisões em larga escala e execuções sumárias, fome e até canibalismo (na província de Fengyang, registraram-se nada menos do que 66 casos!). E mais alguns milhares, ou antes, milhões de cadáveres engordando as estatísticas.

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Avançando de fracasso em fracasso, em 1958 Mao Tsé-tung fabricou mais um: o Grande Salto à Frente, nova tentativa desastrosa de reorganizar a economia – o que só levou direto ao abismo o pouco que ainda restava da produção de alimentos. Institucionalizou a fome e em breves provocou a morte de dezenas de milhões de chineses. A fórmula, como sempre, era esdrúxula: Mao obrigou os camponeses a substituírem as atividades agrícolas pela fabricação de aço em fornalhas de fundo de quintal, usando a matéria-prima que tinham a seu alcance – as próprias ferramentas. E, como lenha para os fornos caseiros, todos queimaram seus móveis, um a um. Não faltou a cereja no topo desse bolo azedo: o que ainda sobrava das safras não pôde ser colhido, porque a população estava em casa… “produzindo aço”! Perdoem o imperdoável trocadilho, mas isso nunca poderia dar certo, “nem aqui nem na China”.

Mais uma vez, o insano e obcecado Mao se recusou a recuar. “A morte de 10 milhões ou 20 milhões não nos assusta", teria dito o monstro, que nunca ficava só nas palavras.

“Revolução Cultural”: uma Jovem Guarda Vermelha  

A  pá de cal nesse pagode  chinês ficou por conta da famigerada Revolução Cultural, nome pomposo para o processo que de 1966 a 1976 promoveu a delação e a lavagem cerebral numa escala só vista antes em romances distópicos. Corresponde também aos últimos dez anos de vida do nosso “personagem”.

O episódio ficou conhecido por sua brutalidade e pela extensão do estrago perpetrado. Durante 10 anos, o Partido Comunista Chinês (leia-se: Mao em pessoa) mobilizou os estudantes e as camadas mais jovens da população para que juntos perseguissem e denunciassem todos aqueles que ainda mantinham os “velhos hábitos”, definitivamente relacionados à burguesia. Era um decreto de morte para os inimigos do Novo Homem chinês – e isso incluía pais, cônjuges ou qualquer outro integrante da família. E havia também os professores, denunciados e massacrados em Porque o propósito era, justamente, destruir a educação e a família. E, por tabela, perpetuar Mao Tsé-tung no topo do poder.

A Jovem Guarda Vermelha não decepcionou. O saldo estimado de mais essa tragédia  ficou em torno dos 2 milhões de pessoas – além de incontáveis cérebros juvenis deteriorados e corrompidos. Com quase 1 bilhão de cópias impressas, o Livro Vermelho das “Citações” do Grande Timoneiro era o sucedâneo da Bíblia entre os jovens, e perde apenas para a própria Bíblia em qualquer lista dos mais vendidos no mundo.

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A saga integral pode ser lida em Mao – A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday (existe edição em português). Biografia avantajada para estômagos fortes, o livro contesta o heroísmo da Grande Marcha e desqualifica os relatos de que os rebeldes comunistas teriam enfrentado os japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial. Aqui apresentamos apenas a versão compacta com os piores momentos. Mas há um punhado de detalhes que mesmo a opção condensada não pode deixar de fora: o homem por trás da lenda.

A infame vida privada 

Como acontece com todos os tiranos, a “história” de Mao Tsé-tung e a “biografia” da República Popular da China acabaram se confundindo – até porque, durante décadas, a China foi sobretudo aquilo que o Grande Timoneiro determinou que fosse. Mesmo assim,  em cada homem habita uma dimensão irredutível: sua vida pessoal, que em geral aparece nos piores detalhes. Às vezes, um vício; às vezes, um certo mau hálito. No caso de Mao, o mau hálito era intenso – e os vícios eram muitos. Quem dá testemunho dessa esfera sombria é Li Zhisui, seu médico particular de 1954 até os últimos dias. Publicado em 1994, o livro A Vida Privada do Camarada Mao tece um retrato nada agradável, apoiado no tripé “pai omisso, marido infiel e amigo traiçoeiro”.

Ficamos sabendo, pelo livro, que Mao raramente tomava banho e que nunca escovava os dentes (consta que, no fim da vida, eles já estavam verdes,). A promiscuidade sexual  era nele uma segunda natureza – além de fonte permanente de vírus, bactérias e micro-organismos, que ele ia disseminando igualitariamente entre as incontáveis amantes.

Segundo o doutor Li Zhisui, Mao era um monstro “destituído de valores morais, incapaz de sentir amor, amizade ou calor humano”. Não satisfeito em espalhar o terror em seu povo, transmitia doenças às amantes — que por sinal foram muitas. Durante décadas, Mao promovia bailes duas vezes por semana, no Grande Salão do Povo (perto da praça Tiananmen) e no Salão do Lótus Primaveril, na residência particular em Pequim. Na verdade, eram meras desculpas para orgias sexuais, às vezes com quatro ou cinco mulheres ao mesmo tempo. "Quanto mais o Partido pregava o moralismo, mais o presidente praticava a promiscuidade hedonista", escreve Zhisui. "Ele tinha um verdadeiro harém”. Consta que eliminou várias dessas concubinas – por mero prazer, ou para não “deixar rastros”.

E assim termina... 

Contrariando toda justiça ou simetria poética, o homem que promoveu um banho de sangue e uma lavagem cerebral em larga escala na China teve morte pacata e doméstica. Um verdadeiro anticlímax: em 9 de setembro de 1976, com 82 anos, Mao Tsé-tung morreu de ataque cardíaco – o terceiro naquele ano. Seu corpo foi embalsamado e preservado num caixão de cristal quartzo, no ostensivo Mausoléu Mao Tsé-tung, onde é visitado e exposto regularmente, como as múmias de faraós e as efígies de deuses pagãos indestrutíveis.

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Destruir a realidade em favor de uma ideia: assim começa o Mal – e exatamente assim começou Mao Tsé-tung, como todo revolucionário. Mas não custa acrescentar (completando a fala de Hamlet) que “o pior vem sempre depois”. Às vezes, é um vírus; às vezes, são vários.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]