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A vida de Nicholas Winton, que salvou quase 700 crianças dos nazistas

Sir Nicholas Winton (na cadeira de rodas), que salvou quase 700 crianças tchecoslovacas do extermínio nazista no início da Segunda Guerra Mundial, compareceu à estreia em Praga de "Família de Nicky", no dia 20 de janeiro de 2011. O filme reúne depoimentos de sobreviventes, imagens de arquivo da época, fotos e gravações com câmeras amadoras e cenas dramatizadas.
Sir Nicholas Winton (na cadeira de rodas), que salvou quase 700 crianças tchecoslovacas do extermínio nazista no início da Segunda Guerra Mundial, compareceu à estreia em Praga de "Família de Nicky", no dia 20 de janeiro de 2011. O filme reúne depoimentos de sobreviventes, imagens de arquivo da época, fotos e gravações com câmeras amadoras e cenas dramatizadas. (Foto: EFE/Gustavo Monge)

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Em 1988, o corretor de bolsa de valores britânico Nicholas Winton foi convidado para sentar-se na plateia do show That's Life, da rede britânica BBC. Se viu orientado a se sentar na primeira fila, ainda que tenha insistido, em vão, em buscar um assento mais discreto. A apresentadora Esther Rantzen estava sentada, folheando documentos, aparentemente indiferente.

Até que olhou para as câmeras e explicou que em suas mãos havia uma lista de nomes de crianças salvas por Winton no início da Segunda Guerra Mundial, a maioria de origem judaica. Um deles era o de Vera Gissing, que depois se tornaria escritora e tradutora. E ela estava sentada ao lado do corretor.

Emocionado, só então Winton percebeu que participava de um programa em sua homenagem. A apresentadora então perguntou quem mais, naquele estúdio, devia sua vida a ele. E todos a sua volta se levantaram. Já eram adultos, pais, mães, avôs e avós. Até agora, as 669 crianças já deixaram estimados 6 mil descendentes no mundo — pessoas que simplesmente não teriam nascido sem os esforços do homem que organizou a “Kindertransport”, uma operação para levar de trem os jovens da Tchecoslováquia, onde viviam, até a Inglaterra, entre março e agosto de 1939.

Reconhecimento público

A partir do programa, a façanha de Winton se tornou pública. Em 2003 ele seria consagrado cavaleiro pelas mãos da rainha Elizabeth II, com quem se encontraria em outras diversas ocasiões. Livros, programas de televisão, os principais veículos jornalísticos da imprensa escrita contaram e recontaram sua trajetória, que em janeiro de 2024 chegou aos cinemas da Inglaterra com o longa-metragem 'One Life'. Anthony Hopkins interpreta o papel do herói britânico, que faleceu dormindo, em 2015, aos 106 anos. No Brasil, a produção ganha o nome 'Minha Vida' e tem estreia prevista para 14 de março.

O filme é baseado em uma biografia, escrita pela filha de Winton, Barbara. E relata de que forma o britânico evitou divulgar sua história, até mesmo da esposa Grete, com quem havia se casado posteriormente, em 1948.

O segredo seria mantido se, no começo dos anos 80, durante um trabalho de limpeza do porão, ela não tivesse encontrado cartas e documentos das crianças — os mesmos depois disponibilizados para a BBC. “As páginas do caderno estavam cheias de fotos, documentos, letras fotos, todas relativas à atividade frenética de um pequeno grupo de voluntários dedicados, que se uniram por impulso para ajudar no que puderem, especialmente quando descobriram que não havia ninguém mais fazendo a diferença”, se lê na biografia.

Ele não fazia questão que sua história ficasse conhecida, nem sequer era favorável à produção de um filme sua vida. Considerava que não havia feito mais do que sua obrigação. E ainda se sentia culpado por não ter conseguido tirar mais crianças do alcance do nazismo.

Oito trens

Nascido em 19 de maio de 1909 em Londres, Nicholas era o segundo de três filhos do gerente de banco Rudolph Wertheim e da esposa Barbara, dois judeus de origem alemã que haviam se mudado para a Inglaterra. O sobrenome da família, Wertheim, foi alterado para Winton para facilitar a adaptação — também se converteram ao catolicismo.

A partir do começo da década de 1930, o jovem seguiu carreira trabalhando em bancos, na Alemanha e na França. A experiência o habilitou a se tornar corretor na Bolsa de Valores de Londres. Praticava esgrima e chegou a ser selecionado para fazer parte da equipe britânica. Tinha alguma chance de disputar a Olimpíada de 1940, caso ela tivesse acontecido.

Em paralelo, já se sentia incomodado com o avanço do nazismo na Europa. Ao final de 1938, ele visitou Praga, na Tchecoslováquia, a convite de Martin Blake, integrante do Comitê Britânico de Refugiados e que vinha tentando retirar jovens judeus do país.

De fato, ali viviam famílias judias em condições precárias, que haviam fugido da perseguição na Alemanha e na Áustria, que já havia sido ocupada. Estava claro que era questão de tempo para a Tchecoslováquia ser invadido pelos exército de Hitler e estas pessoas seriam alvos fáceis para os nazistas.

Foi quando Nicky, como ele era conhecido por seus amigos, decidiu acessar seus contatos e sua experiência com o mercado financeiro para mobilizar esforços e retirar do país a maior quantidade possível de crianças. Ao visitar Praga a convite de Blake, ele abriu mão das férias esquiando nos Alpes Suíços.

Entre março de 1939, quando o país foi finalmente ocupado, e setembro, data do início oficial da Segunda Guerra, Winton passou a salvar filhos de famílias judaicas desesperadas — elas eram atendidos em um escritório improvisado num quarto de hotel em Praga, instalado na praça Wenceslas. Faziam fila do lado de fora, até a rua.

Winton então conseguia vistos para o acesso à Inglaterra, onde localizava famílias adotivas. Também reunia o dinheiro necessário para pagar as passagens de trem para todos e garantia que cada uma tivesse acesso à ajuda de custo prometida pelo governo britânico. E, sempre que necessário, organizava o pagamento de propinas para que integrantes da Gestapo, o serviço secreto nazista, fizessem vistas grossas.

Ao todo, um avião e sete trens fizeram o percurso, que incluía uma passagem por mar. Os pais costumavam se despedir, aos prantos, enquanto os filhos entravam nos vagões carregando no peito uma placa de papelão, pendurada em uma corda, com um número de identificação.

Um último comboio, com 250 crianças, foi barrado pelos nazistas precisamente em 1º de setembro de 1939, o dia oficial do início do conflito global — 248 delas nunca mais foram vistas, o que provocou um enorme sofrimento ao corretor britânico.

Algumas das "Crianças de Nicky", como são chamados os menores que escaparam do Holocausto nazista em 1939 graças ao britânico Nicholas Winton, posam em frente ao memorial "Farewell", dedicado a seus pais e que foi inaugurado na Estação Central de Praga, na República Tcheca, em 27 de maio de 2017. Foto: EFE/Gustavo Monge

Piloto de guerra

Boa parte dos pais dos 669 jovens morreria em campos de concentração, enquanto suas crianças recomeçavam a vida longe da casa. O destino de mais de metade dos jovens não foi mapeado posteriormente.

Quanto a Nicky, deixou a Tchecoslováquia depois de três semanas e organizou o restante da operação a partir de Londres, onde, sem condições de abandonar o emprego, se manteve trabalhando durante parte do dia. Atualmente, uma estátua em sua homenagem está instalada na estação central de trem de Praga, assim como placas em sua memória estão dispostas na estação de trem da Rua Liverpool, na capital do Reino Unido.

“Com a guerra declarada e a parte do trabalho de Nicky no esforço de resgate encerrada, não havia muito mais o que ele pudesse fazer pelas crianças que restaram no país”, afirma a filha no livro. “Mas ele e sua mãe, Barbara, conduziram temas pendentes na Inglaterra, como eventuais dificuldades financeiras das famílias adotivas. Ela continuou em contato com vários destes jovens, alguns por muitos anos”.

Entre as pessoas salvas por ele se incluem o político Alf Dubs, o matemático Heini Halberstam, o arquiteto Isi Metzstein, o jornalista Joe Schlesinger e o músico e escritor Otto Pick.

Winton foi piloto durante a Segunda Guerra, a partir de 1940. Permaneceu na Força Aérea até 1954. Depois retomou sua carreira na bolsa de valores, enquanto se manteve atuante em causas em defesa dos direitos humanos. A partir de 1988, sempre insistiu em lembrar que não agiu sozinho, que apenas ajudou a liderar um grupo de voluntários, que incluiu ainda os nomes de Doreen Warriner, Christine Maxwell, Margaret Dougan e Trevor Chadwick.

E que em nenhum momento colocou sua vida em risco diretamente. Estava apenas no lugar certo e na hora certa, e fez o que pôde, costumava dizer, com modéstia. “Não há nenhuma dúvida sobre o zelo de Nicky pela vida”, resume a filha na biografia.

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