Abdias do Nascimento, ex-militante integralista e talvez o maior nome do Movimento Negro brasileiro, publicou em 1978 a primeira edição de O genocídio do negro brasileiro. Com a violência causada pelo narcotráfico, o título remete logo ao mantra de que a polícia é racista e causa alarmantes índices de morte entre negros. (Na verdade, isso é manipulação de estatística, como já mostrei aqui).
No entanto, em 1978 o Comando Vermelho engatinhava, o PCC não existia e a violência brasileira tampouco. Em que consistiria o tal genocídio aludido no título? Cito o autor longamente, pra não dizerem que estou omitindo nada:
“Da classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação da ‘mancha negra’; da operatividade do ‘sincretismo’ religioso à abolição legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão censitária – manipulado por todos esses métodos e recursos – a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente designada ‘democracia racial’ que só concede aos negros um único ‘privilégio’: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos como assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do africano e seus descendentes.” Isto está no capítulo 9, intitulado “O embranquecimento cultural: outra estratégia de genocídio”.
Em toda essa verborragia, faltou uma coisa: morte. É genocídio sem mortes! [Deixe minha exclamação, sr. editor]. Quando a violência surgiu, esse povo deve ter comemorado, pois mortes tornam a narrativa do genocídio consideravelmente mais crível. Isso explica, também, por que não há nenhum esforço no sentido de combater o uso de drogas, já que as facções são uma grande causa de mortes violentas de moradores de favelas.
A ladainha a ser repetida pelo livro todo é que o Brasil é o pior país do mundo e quem elogia nossa terra é um racista a serviço de um complô da branquitude.
Lei contra propaganda racista é genocídio
Vamos às coisas listadas por Abdias como genocídio. A Lei de Segurança Nacional aludida é esta aqui, de 1967, assinada pelo presidente Castello Branco. É uma lei voltada contra a influência soviética, e a única alusão a raça ou cor se encontra no artigo 33, que proíbe a incitação pública “ao ódio ou à discriminação racial”, com pena de 3 meses a 1 ano de cadeia. Com a associação entre capitalismo e “imperialismo da brancura”, podemos supor que se espere da “raça negra” uma condição tribal, eternamente comunitária e coletivista, e que os soviéticos tendessem a ver os negros como bons selvagens a serem mobilizados, sob a tutela do branco, para a luta anticapitalista. Afinal, como já mencionado no último texto, eles queriam criar no Brasil um oblast (“república autônoma”) para negros e os oblasts soviéticos eram tão autônomos quanto é “democrática” a República Democrática da Coreia.
Os mulatos liquidam os negros
O carro chefe da acusação de genocídio é a ideia de que a miscigenação e o censo do IBGE servem para acabar com os negros. Uma das poucas verdades históricas afirmadas por Abdias do Nascimento é que houve uma tentativa, na época em que as ciências biológicas apoiavam o racismo (lá pela virada do XIX pro XX), de resolver o problema da presença negra importando muitos brancos e cruzando os dedos para os inferiores (negros) serem menos férteis que os superiores (brancos). A conclusão era que no século XXI o Brasil seria branco, por força da dominância dos superiores.
Assim, quando tentou ser eugênico, o Brasil trouxe mais gente e deixou todo mundo ter quantos filhos quisesse com quem quisesse. Tem país melhor do que este, neste aspecto? Abdias fala mal do Brasil como se não houvesse uma difusão do racismo científico por todo o Ocidente e julga o nosso país em termos absolutos, sem comparações nem avaliações de contexto. O mínimo que ele deveria fazer é compara o Brasil a outros países ocidentais de significativa população negra. Esterilização eugênica e proibição de casamentos “inter-raciais” nunca foram uma opção entre nós, ao contrário dos Estados Unidos.
Os negros não desapareceram e os mulatos estão por aí. Mas Abdias – que não é nenhum preto retinto – revela um verdadeiro ódio ao mulato. Vejam bem: o militante diz aos brasileiros que “mulato” é um termo ofensivo e de fato eles usam esse termo como xingamento, porque acham que mulato é uma coisa ruim. Diz ele:
“Situado no meio do caminho entre a casa grande e a senzala, o mulato prestou serviços importantes à classe dominante. Durante a escravidão, ele foi capitão do mato, feitor, e usado noutras tarefas de confiança dos senhores, e, mais recentemente, o erigiram como um símbolo da nossa ‘democracia racial’. […] E estabelecido o tipo mulato como o primeiro degrau a escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil.” Socorro, os mulatos vão acabar com os negros! Mais: “O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da mulher negra, foi erguido como um fenômeno do puro e simples genocídio.”
O mulato então tem que se redimir da sua condição de genocida nato e fruto de estupro, e fará isso afirmando-se politicamente como negro, muito embora não seja um. E se ele se declarar “pardo” no censo, o IBGE tem que corrigir e torná-lo negro para servir à causa. Tal como o Eixo, Abdias mira no ideal de pureza racial. Se você é mulato, está causando o genocídio do negro – mas nem o negro é acusado de exterminar o mulato, nem o branco. A mera existência do mulato, do mestiço, é tratada como um problema em si mesmo. Como negar que a meta é a pureza racial?
Os mulatos então ficam incumbidos de se redimirem perante os negros, sujeitando-se ao movimento negro e negando a própria existência. O mero fato de existir faz com que o mulato sirva às “classes dominantes” como ícone da miscigenação, sendo esta nada menos que um método de genocídio.
Fica proibida a palavra “mulato”. Ninguém mais pode mais cantar “meu Brasil brasileiro / meu mulato inzoneiro”, pois quem fizer isso é um racista cúmplice da casa grande.
Mas o Brasil só tem menos negros que a Nigéria
Abdias não prima pela inteligência. Logo depois de dizer que miscigenação é genocídio, ele dá um outro conceito de negro que torna esse mesmo genocídio impossível: negro é quem tem qualquer ancestral negro ou até índio, independentemente da cor. Se é assim, miscigenação é multiplicação de negros. Se for genocídio, é só do branco.
Diz ele, na Introdução, que “um brasileiro é designado preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, mestiço, cabra – ou qualquer outro eufemismo; e o que todo mundo compreende imediatamente, sem possibilidade de dúvidas, é que se trata de um homem-de-cor, isto é, aquele assim chamado descendente de africanos escravizados. Trata-se, portanto, de um negro, não importa a gradação da cor da sua pele.”
Neste passo, Abdias apaga os índios da composição demográfica do Brasil, transformando todos os seus descendentes em negros. No passo seguinte, ele adere às raízes do racismo científico ao adotar a infame one drop rule, que considera negro todo aquele "infectado" pelo sangue africano, não importando a sua cor. Ou seja, por essa regra, se você for ruivo, mas fizer a sua genealogia e achar um bisavô mulato, você é negro, embora seja ruivo. Cito Abdias:
“Se nossa perspectiva […] observasse uma linha rigorosamente racial [sic], classificaria todos os brasileiros com sangue de origem africana como negros, e chegaríamos de fato à conclusão de que o Brasil é de fato um país negro. De fato, e não em função de conceitos teóricos, já que perto de 80% da sua atual população de 110 milhões de habitantes estão definitivamente ‘contaminados’ [sic] com o sangue de origem africana, o Brasil se erige como o segundo maior país negro do mundo. Só excedido pela Nigéria.”
Para ele, em 1978, o IBGE é genocida (sic) porque não corrobora essa contagem fantasiosa de negros no Brasil. O genocídio orquestrado pelos brancos seria tão criminoso, mas tão criminoso, que deixa os brasileiros escolherem a própria cor no censo: “num país onde a população está condicionada pela preocupação de ser branca, a faculdade de cada recenseado declarar a sua própria cor ou raça significa que grande parte dos negros, assim como dos mulatos, tenham se declarado brancos.”
Assim, ele propõe que o burocrata iluminado considere que os pardos são negros envergonhados e “corrija” as autodeclarações, considerando-os negros numa canetada. Isso foi feito em 2004 e o resultado é que o IBGE encheu a Amazônia de negros fictícios. Se apagar do censo é “genocídio”, então o IBGE cometeu genocídio contra os índios. Genocídio defendido por Abdias, que adotou o espírito one drop rule para dizer que índio e negro é tudo a mesma coisa.
Os Protocolos dos Sábios da Mooca
Voltemos então à one drop rule. Tal como a “ideologia das classes dominantes” alega, o povo brasileiro é uma mistura de índios, brancos e negros. Logo, todo brasileiro com raízes neste país é mestiço. Brancos puros, só filhos de imigrantes que casaram entre si. Abdias era de São Paulo. O quatrocentão, o barão do café, descende de bandeirante. Bandeirante não casava com branca. E onde Abdias poderia encontrar brancos puros em São Paulo em 1978? Na Mooca, no Brás. Eram os descendentes dos empregados dos barões do café.
Pela régua defendida por Abdias, a classe de barões do café era composta por “negros de pele clara” que tinham escravos africanos até 1888 e depois disso trouxeram pobretões brancos para explorar. Se o próprio português é miscigenado com mouro, Portugal pode ser descrito como um Império Negro. E o Brasil, como a capital do empoderamento negro, pois expulsou os holandeses e trouxe brancos para trabalharem em condições análogas à escravidão.
Mas as capacidades cognitivas de Abdias eram limitadas. No mesmo parágrafo em que defende que todos portadores de sangue não-branco sejam considerados negros, diz que os negros vivem dominados por um complô de brancos. Aquela citação em que ele diz que só perdemos para a Nigéria em número de negros continua assim: “E o que sugere tal verificação? Simplesmente isto: que o Brasil é uma nação cuja maioria negra está sendo governada, por demasiado tempo, por uma minoria branca, a versão sul-americana da União Sul-Africana” (nome antigo da África do Sul, com Apartheid vigente).
Como é isso? A italianada tem Protocolos dos Sábios da Mooca para dominar o Brasil? A retórica de Abdias é parecida com a dos nazistas: na Alemanha existiria uma raça ariana majoritária, sufocada por uma raça de parasitas (os judeus) que conspiravam para sugar o trabalho dos vigorosos alemães sem pegar no batente e causavam degeneração física e moral por meio da miscigenação. Solução? Começar impedindo casamentos mistos, reservando empregos públicos para a raça majoritária. Depois, trabalho escravo. E no fim, o crematório.
O termo “parasitismo” é usado por Abdias para tratar da relação dos brancos (todos senhores) com os negros (todos escravos).
Negacionismo tácito
Para Abdias, o Holocausto, que nunca é mencionado no seu livro sobre racismo e genocídio, não foi um escândalo digno de nota. Ele fala do “maior de todos os escândalos, aquele que ultrapassou qualquer outro na história da humanidade: a escravização dos povos negros africanos”. Em primeiro lugar, a escravidão é normal na história da humanidade. Anormal é a ideia, surgida entre “brancos”, de que todos devem ser livres. Em segundo, ele subentende o tempo inteiro que só brancos escravizavam negros. É uma crença duplamente falsa, tanto porque brancos compravam negros já escravizados por outros negros, quanto porque os muçulmanos, não-brancos, eram os grandes escravizadores da África, Cáucaso e Mediterrâneo. Escravizavam muito, castravam muito e traficavam muito escravo – no caso dos negros, faziam atravessar o Saara a pé. A obra de referência sobre esse assunto, sem edição brasileira, é O genocídio ocultado: Investigação histórica sobre o tráfico negreiro árabo-muçulmano, do historiador senegalês Tidiane N'Diaye.
Conspiracionismo e ódio ao Brasil
No capítulo 9, lemos que o “único propósito” (sic) da “sociedade brasileira vigente” é que “as populações afrobrasileiras desapareçam, sem deixar rastro, do mapa demográfico do país”. Você e eu somos parte da sociedade brasileira vigente, então estejamos cá informados de que nosso único propósito é acabar com os negros, que executamos isso pelos meios mais sutis (cantarolando “meu Brasil brasileiro/ meu mulato inzoneiro”, por exemplo), e que tudo isso é pior do que o Holocausto.
Mas será que não teve nada de bom na história do Brasil, como a Abolição? Nananinanão. No capítulo intitulado “O mito do africano livre”, lemos que a Lei Áurea “não passou de um assassinato em massa” (sic). A explicação é que, com a liberdade, os senhores não precisavam mais cuidar do sustento dos escravos, o que é o mesmo que matá-los.
É um despautério sem tamanho e é revoltante que um lunático desses paute o IBGE e a educação (a ideia de ensinar história da África em todos os níveis educacionais é de Abdias também. Ele ainda queria que o Brasil ensinasse o suaíli aos negros como sua língua franca). Para piorar, esse gênio ainda elogia os abolicionistas. Se a Abolição foi assassinato, como Luiz Gama não é assassino? Quase toda a história dos negros no Brasil é uma desgraça sem fim, com duas exceções: o Quilombo dos Palmares e o Teatro Experimental Negro - criado pelo próprio Abdias.
O texto já ficou bem grande e eu não tratei do item “sincretismo”, que compõe o “genocídio”. Vale tratar dele, porque revela um verdadeiro desdém pela herança cultural africana do Brasil. Falo disso no próximo. Em seguida, falo dos racialistas e depois volto com Kabengele Munanga, o negro puro que a USP arranjou para falar mal de mestiçagem.
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