Primo Levi é uma leitura infinitamente mais leve do que Abdias do Nascimento, embora o primeiro seja um sobrevivente de Auschwitz e o segundo tenha sido aspone fascista. Requer um imenso refinamento escrever com leveza sobre um genocídio existente. Para fazer um livro como o de Abdias, bastam histrionismo e má-fé. Já que o Movimento Negro gosta de apagar o Holocausto, faço a seguinte pergunta: alguém consegue imaginar Auschwitz como uma feliz cidade conhecida por sua vibrante cultura judaica?
Agora, vamos a Salvador, o maior centro escravagista negro da América. Seu lugar mais famoso é o Pelourinho. Pelourinho, sem ser nome próprio, era uma espécie de sede da Justiça em tempos coloniais: o lugar de açoitar publicamente aqueles que deveriam ser castigados, fossem eles escravos fujões ou jovens fidalgos desobedientes ao pai.
Pois bem. No ponto onde ficava o pelourinho, e que dá nome ao lugar, o turista vê no alto as torres de uma bonita igreja da cor do céu, que surge da parte mais baixa dessa íngreme ladeira. É um impacto visual que o relevo espacial de Salvador dá: a Igreja fica lá embaixo e lá em cima ao mesmo tempo. Muito fotografada, chama-se Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, porque foi construída por pretos e funcionava como clube social para homens de cor ascendidos. Se o turista entrar lá e for para a sacristia, encontrará pinturas a óleo de cavalheiros pretos que patrocinaram a instituição. Isto já basta para mostrar como a realidade é complexa: coexistiram em Salvador negros patronos e negros escravos.
Se o turista der sorte, verá uma volumosa procissão de percussionistas andando pelo Centro Histórico. Os tambores têm um som grave, que impactam mais o peito do que as orelhas, e não é reproduzido de maneira fidedigna por caixas de som. Se for setembro, e você passear do Centro Histórico até a área comercial, verá alguns pares de filhos de santos a postos com um cestinho de palha cheio de pipoca dentro, junto com uma estatueta de São Lázaro. Estão vendendo bênçãos para custear uma festa para Omolu no terreiro de candomblé. Candomblé, aliás, significa “festa” em iorubá.
Fora dessa área central, no Rio Vermelho, comemora-se, no dia 2 de fevereiro, o dia de Yemanjá. De manhã cedinho, forma-se uma fila colossal para entregar aos pescadores presentes para Yemanjá. A ialorixá Stella de Oxóssi, uma espécie de papisa, incentivara os devotos a dar presentes biodegradáveis, como um espelho simbólico de papelão, para não poluir o mar. Os pescadores saem da Casa de Yemanjá, onde há uma escultura de uma mulher-peixe branca. Fica quase contígua a uma igreja católica de arquitetura moderna. Talvez você ganhe um santinho de Yemanjá com a imagem de uma mulher curvilínea à frente, sobre às águas (parecendo uma Conceição sem lua no pé nem véu na cabeça) e uma oração no verso.
Cultura alforriada
É evidente que a cultura africana iorubá floresceu neste pedaço do Brasil – coisa impensável quanto à cultura hebraica em Auschwitz. Segundo Abdias do Nascimento, o Brasil tinha mais escravos do que os Estados Unidos porque aqui era mais perto da África. Mas, se fosse assim, o ponto mais africano do Brasil seria o Rio Grande do Norte. E mais: Lisboa explorou Angola e Moçambique, lugares da África onde a cultura dominante não é iorubá. Os iorubás estão ali pelo Golfo da Guiné. Lá está o atual Benim, outrora chamado Reino do Daomé.
A Bahia tem essa cultura negra toda porque, à revelia de Lisboa, travou relações comerciais com reinos africanos livres, especialmente o do Daomé, uma potência escravagista. Daí resulta, dentre outras coisas, que no atual Benim a família Suzá, descendente do traficante baiano Félix de Souza, seja influente até hoje. Os baianos ganharam muito dinheiro importando escravos da Costa da Mina (no mesmo Golfo), que já vinham sabendo minerar e eram mercadoria muito valorizada desde a descoberta das Minas Gerais.
Escravos não eram a única mercadoria importada dos reinos africanos livres. De lá vinha também o azeite de dendê (nome iorubá) ou óleo de palma (nome português), usado pelos africanos para culinária e pelos ingleses como combustível no séc. XIX. Ambos os produtos dessa troca comercial entre escravocratas brasileiros e escravocratas africanos moldaram a cultura baiana. Sem um intenso comércio escravocrata, a Baía de Todos os Santos seria outra coisa. Obviamente, isso não implica uma defesa da escravidão. Implica, isso sim, que de coisas ruins podem surgir coisas boas e que uma cultura oprimida encontrou aqui solo para florescer. Como isso não é uma conquista?
Quem quiser que acredite no conspiracionismo de Abdias: “Quanto às sobrevivências culturais citadas para ‘provar’ um ‘antirracismo’ brasileiro, elas são apenas [sic!] resultados diretos [sic] dos mecanismos de controle social exercidos pelos senhores sobre seus escravos.” (Cap. II.) Será que o samba foi uma invenção dos Protocolos dos Sábios da Mooca? Vou inventar a teoria conspiratória de que Adoniran Barbosa trouxe o samba da Itália e que o efêmero presidente Ranieri Mazzili adulterou gravações e registros para parecer que esse gênero tem influência africana.
E eu faria isso sem grandes hipérboles. Afinal, o único exemplo que Abdias do Nascimento dá para provar essa conspiração é justamente a batucada dos negros. Ele pinça uma paráfrase de Roger Bastide de um documento em que algum Conde dos Arcos diz que é bom deixar os negros livres para batucarem aos domingos, porque isso reaviva as disputas tribais e mina qualquer possibilidade de coesão entre os escravos. Houve Condes dos Arcos governando a Bahia nos séculos XVIII e começo do XIX. Um único documento de governante serve para definir toda a relação do Brasil com as batucadas. O homem escreve sobre legado cultural africano no Brasil e não menciona música.
Cultura misturada
Voltemos aos fenômenos culturais descritos no começo. O candomblé não foi simplesmente “trazido da África”, como afirma Abdias. Os orixás foram trazidos, mas o candomblé, não. Luteranos e católicos são devotos de Jesus, mas têm religiões diferentes.
Os africanos cultuavam apenas o orixá do seu povoado. Os brasileiros têm um panteão e cultuam vários orixás. Esses orixás, mais ou menos como os santos católicos, têm suas especialidades. Assim, não é de estranhar que os brasileiros tenham feito o mesmo que os romanos e fundido imagens semelhantes. Vênus e Afrodite são deusas do amor? Então são a mesma pessoa. Omolu e São Lázaro são entidades que ajudam os doentes? Então são a mesma pessoa. Por isso, lá está o boneco de São Lázaro no cestinho de pipocas, representando Omolu.
E com certeza Omolu só passou a ter uma ligação indissolúvel com a pipoca no Brasil, uma vez que o milho é nativo da América. Ou será que conspiradores brancos obrigam há séculos os negros a botarem pipoca apenas para esta articulista branca apontar isto neste jornal? Yemanjá como sereia é novidade do Brasil. Na África, ela não era uma mulher muito diferente de Oxum, a deusa da água doce. O santinho dispensa comentários: é um jeito católico de cultuar uma entidade. Procissão, velas, santinhos: tudo isso é de origem europeia e tudo isso se faz para os orixás.
Quanto aos tambores, a batucada ritualística na África é feita em ocos de árvores sagradas. Aqui é que a batucada se organizou em tambores móveis e ganhou uma faceta toda profana, combinada depois com os mais diversos instrumentos. Daí vem o samba – que não é um exotismo negro, mas sim autêntico símbolo da cultura brasileira, essencial à Bossa Nova.
A Igreja do Rosário dos Pretos mostra que os negros aderiram ao catolicismo. Na religiosidade tradicional baiana, as procissões são sincréticas até as escadarias da Igreja, e o culto é católico normal dentro da Igreja. Os portugueses batizavam os escravos e muitos deles aderiram à fé católica. Segundo Abdias, isso é uma violência, porque os negros foram “obrigados” a se batizar. Ele não dá evidência nenhuma disso. Na Bahia de Jorge Amado, todo mundo era batizado, inclusive as mães de santo. É uma noção moderna demais, a de que um homem só pode acreditar numa religião. Na ótica antiga, quanto mais proteção, melhor. Não custa nada rezar pra Nossa Senhora e jogar flores pra Yemanjá.
Baiano, como mulato, é má coisa
Como vimos no texto anterior, Abdias do Nascimento elenca o sincretismo como uma das coisas que ele chama de genocídio. Só que aquilo é no capítulo 9. No capítulo 11, sincretismo é bom, porque é im-pos-sí-vel entre as religiões de brancos e negros: “Só mereceu o nome de sincretismo o fenômeno que envolveu as culturas africanas entre si, e entre elas e a religião dos índios brasileiros”. Infiro que é impossível, porque apenas três parágrafos depois ele menciona que “a macumba assimila a religião indígena, a iorubá, elementos do catolicismo e do espiritismo kardecista”. Ou seja: há sincretismo, mas não pode chamar de sincretismo se misturar religião vinda da Europa com religião de person of colour.
Até mesmo Pierre Verger e Jorge Amado são racistas. Pierre Verger foi um fotógrafo e historiador nascido na França, naturalizado brasileiro, que fixou residência e morreu velho na Bahia. Foi à África pesquisar o trânsito escravista entre a Bahia e o Daomé, tornou-se babalaô na Nigéria (babalaô é o sujeito que joga os búzios) e converteu-se ao candomblé. É muito bem quisto pela Bahia. Há uma escola pública com seu nome bem perto da sede do Ilê Aiyê, entidade carnavalesca ligada ao movimento negro.
Segundo Abdias, esse homem era racista, porque comete o abominável pecado de dizer que na Bahia os deuses iorubás (os orixás) são respeitados. Abdias pinça um trecho em que Verger, para corroborar isso, menciona um empreendimento imobiliário de luxo cujos prédios tinham nomes de orixás. “Nada é sagrado para a civilização ocidental branca e cristã. Teria de chegar a vez da venda dos próprios deuses. De fato, os orixás estão sendo objeto de recentes e lucrativas transações”, comenta ele. Tem prédio com todo tipo de nome. Perante um prédio com nome de santo católico ou de deuses pagãos europeus, Abdias poderia chamar de racista o construtor, já que não escolheu um nome iorubá.
Uma das poucas verdades ditas por Abdias é que os terreiros de candomblé sofreram perseguição policial. Jorge Amado fez com que muita gente soubesse disso graças ao seu romance Capitães da Areia, em que Pedro Bala fica encarregado de roubar da polícia um objeto de culto apreendido. Nas histórias de Jorge Amado, os orixás são reais, e seus filhos são personagens profundas na obra. Mas Abdias pinça uma passagem de Jubiabá em que uma filha de santo dança em transe, possuída por Omolu, com o “tronco […] perfeito de beleza, os seios duros e pontiagudos furando o pano.” Sem dar nenhum embasamento, ele declara que “a descrição de Amado não passa de um sacrilégio”. Se ele dissesse que a filha de santo era feia, era racista porque chamou a negra de feia. Quanto ao transe, qualquer baiano com cultura geral sabe que os orixás são reconhecíveis por suas danças. Se Abdias acha que o candomblé é austero como uma igreja luterana, é porque não sabe de nada mesmo.
Mas ele odeia a cultura iorubá viva na Bahia. Na verdade, odeia a Bahia. Quando ele cita um baiano concordando, chama-o só pelo nome. Se este for um baiano branco, não menciona a cor. Quando é para falar mal de um baiano escuro, chama-o de “mulato baiano”, como Nina Rodrigues (que na verdade é maranhense), George Alakija (psiquiatra de origem nigeriana que investigou o transe do candomblé) e Edison Carneiro. “Da Bahia” só aparece em contextos pejorativos, como “mulato”. (Veja-se, por exemplo, esta passagem do Prólogo, após desancar Alakija e Nina, comenta: “Por coincidência, são ambos mulatos, baianos e psiquiatras. Coincidência que se nos afigura assaz curiosa e interessante…”)
O negro não fazia teatro antes de Abdias
Para Abdias, só houve duas coisas boas na história dos negros no Brasil: a “república” dos Palmares, lá no séc. XVII, e o Teatro Experimental Negro (TEN), fundado pelo próprio Abdias em 1944. A Abolição, como vimos, não passou de “assassinato em massa”.
“O TEN educou, formou e apresentou os primeiros intérpretes dramáticos da raça negra – atores e atrizes – do teatro brasileiro”, diz ele no capítulo 14. Dois anos antes da fundação do TEN, Grande Otelo (1915-1993) era célebre a ponto de aparecer em filme de Orson Welles. E Benjamin Oliveira (1870-1954), que nasceu em cativeiro, não só atuava no teatro como escrevia peças e até gravava disco antes de Abdias nascer.
Abdias precisa apagar os sucessos dos negros e mulatos, tanto anônimos como famosos, para poder realçar sua própria imagem. Precisa inventar conspirações racistas para explicar o próprio fracasso.
Um objetivo do seu TEN era “tornar impossível o costume de usar o ator negro em papéis grotescos ou estereotipados: como [...] mulatinhas se requebrando”. Abdias, complexado, odeia o legado cultural africano que a Bahia esbanja e que um Verger sabe apreciar.
Para não dizer que do TEN não saiu nada, há que se apontar a destacada atriz Léa Garcia, com a qual Abias se casou e da qual se separou em 1958 (quando nem existia divórcio). Em 1975, ele se casa com uma norte-americana loira de olhos azuis com a qual teve filho e em 1978 escreve um livro dizendo que miscigenação é genocídio.
Florestan diz que ele está errado desde o prefácio
Por fim, não quero deixar passar batido que, se Abdias força o tempo inteiro uma divisão racial entre negros e brancos, tratada como inexorável, o uspiano branco Florestan Fernandes já dizia no prefácio que negros vêm ascendendo no Brasil e que, essa “tática” é construtiva, pois “[…] força a reeducação do branco na avaliação do negro e do mulato e põe em xeque os estereótipos ou os estigmas raciais”. Isto é uma admissão tácita de que o que move o preconceito brasileiro é status, não qualidades raciais intrínsecas, e que pode ser revertido pelo exemplo dos bem sucedidos, como aconteceu com a “raça amarela” (os japoneses) no Ocidente. A separação racial não é um fato, é um projeto.
Outro dia eu explico. Ainda tem o Kabengele na minha lista e agora é hora de folga de racialismo.