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Aborto na França: como sair da armadilha?

Ativistas feministas francesas e membros de associações de direitos das mulheres reagem após a aprovação de projeto de lei para consagrar o direito das mulheres ao aborto na constituição francesa, no palácio de Versalhes, nos arredores de Paris, França, 4 de março de 2024.
Ativistas feministas francesas e membros de associações de direitos das mulheres reagem após a aprovação de projeto de lei para consagrar o direito das mulheres ao aborto na constituição francesa, no palácio de Versalhes, nos arredores de Paris, França, 4 de março de 2024. (Foto: EFE/CHRISTOPHE PETIT TESSON)

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O aborto é vendido na França como uma conquista do feminismo, uma liberdade para as mulheres e uma condição de igualdade. Historicamente, isso é duvidoso. O movimento feminista da década de 1960, representado na época por La maternité heureuse [Maternidade feliz], foi rapidamente dominado por outra corrente, oriunda da tradição neomalthusiana e franco-maçônica: o grupo Littré. Foi esse movimento masculino, liderado pelo Dr. Pierre Simon, que incorporou a Maternité heureuse à International Planned Parenthood Federation e a transformou em um instrumento para reivindicar a legalização do aborto. Essa “captura” levou a demissões dentro da antiga Maternité hereuse incluindo a de sua fundadora e presidente, Marie-Andrée Weill-Hallé, que se opunha ao aborto.

Desde então, o Planejamento Familiar Francês tem feito causa comum com a ideologia franco-maçônica. Essa ideologia vê o aborto como um bem, uma liberdade que afirma a onipotência da vontade individual sobre a vida recebida de Deus. O feminismo desempenha um papel secundário nessa ideologia, e é concebido como uma revolta da mulher contra a condição feminina e maternal, muito distante do ideal da Maternité hereuse.

Precisamos ter a coragem e a clareza de enfrentar esse contexto ideológico para entender o significado de consagrar na Constituição francesa a afirmação de que o aborto seria uma liberdade.

Algumas vezes, sustentou-se que o aborto não teria lugar na Constituição. No plano jurídico, certamente, mas o mesmo não pode ser dito no plano simbólico. Uma Constituição define um povo e contém e expressa sua identidade e seus valores. As leis fundamentais do Reino da França reconheciam o catolicismo como a religião oficial. Ao se declarar laica, a República adotou um componente essencial do pensamento franco-maçônico. Agora, ela foi mais longe ao declarar a “liberdade de abortar”.

Implicações radicais

Consagrar o aborto como uma liberdade em vez de uma exceção, e a “liberdade de abortar” como um valor da República, tem implicações filosóficas e religiosas radicais. Isso demonstra a adesão a uma concepção materialista e voluntarista do ser humano que afirma o domínio da vontade sobre o ser, da vontade individual sobre a vida humana. Do ponto de vista comum e leigo, o aborto é um ato destrutivo e, portanto, negativo. Mas esse não é o caso do ponto de vista de seus promotores, que o veem como um ato positivo de autoafirmação. É uma concepção terrível do ser humano que acredita que a destruição voluntária da vida humana é a expressão da liberdade humana, e até mesmo seu ápice, pois seria a forma mais elevada de autonomia. É essa mesma concepção que promove a morte voluntária como uma liberdade e uma expressão da dignidade humana.

Para os leigos, o recurso maciço ao aborto tem o efeito de forçá-los a acreditar que o ser humano não tem alma, mas é apenas um corpo gradualmente dotado de faculdades intelectuais, porque se o feto é animado [dotado de alma], então seríamos assassinos. A partir de então, tornou-se insuportável olhar para o feto e ver nossa humanidade nele. O silêncio e a negação são a ordem do dia.

Consagrar o aborto como uma liberdade, e a liberdade de abortar como um valor da República, implica a adesão a uma antropologia tão específica que sua inclusão na Constituição equivale a torná-la uma crença oficial da República, um substituto para a religião do Estado. Esta é uma nova etapa na afirmação pública da Franco-Maçonaria como a Igreja da República francesa, tal qual declarou em essência o Sr. Macron perante o Grande Oriente da França em 9 de novembro de 2023. Naquela ocasião, ele prestou homenagem ao Grão-Mestre e Doutor Pierre Simon, o principal arquiteto da liberalização da contracepção e do aborto na França.

O aborto é uma armadilha diabólica para destruir vidas inocentes, ferir a maternidade, prender as mulheres na culpa e condenar a sociedade ao materialismo e, portanto, ao ateísmo, tudo sob o pretexto de falsa liberdade e por meio do poder dos instintos sexuais. Essa armadilha está agora encoberta pelo prestígio da Constituição e, como tal, tornou-se um dogma que é quase impossível questionar, sob pena de excomunhão social ou até mesmo de processo criminal.

O aborto, na França, está doravante sujeito a uma verdadeira censura que silencia e subjuga a maioria dos representantes eleitos, a mídia e até mesmo os bispos. A visão do diabo nos atordoa e nos deixa sem palavras. Somente são permitidas críticas secundárias e periféricas, por exemplo, da cláusula de consciência ou de um suposto desvio do espírito da lei Simone Veil, mas não aquelas relacionadas diretamente ao aborto. O tabu está bem guardado.

A armadilha do aborto está, portanto, profundamente enraizada na sociedade francesa e produz efeitos de longo prazo. Poucas figuras públicas ainda se atrevem a denunciá-la. No entanto, é urgente, para a salvação das almas e da França.

Então, o que fazer?

Diante da ideologia e do demônio, devemos recomeçar a partir da realidade e da caridade.

Mas, primeiro, a Igreja deve olhar de frente e analisar esse grande e histórico fracasso. Como a França chegou a tal ponto que menos de 10% dos parlamentares se opõem a essa constitucionalização? Será que duvidamos da justeza da causa da defesa da vida humana, da humanidade do conceptus? Fomos corajosos o suficiente? Nós realmente lutamos ou apenas fingimos? Nós realmente acreditamos na existência da alma? Temos verdadeira compaixão pelas mulheres grávidas? Será que nossa falta de coragem não foi também uma falta de caridade?

Nosso silêncio tem sido culpado, assim como nossa covardia, muitas vezes consistindo em resignação ou no uso de belas palavras, conceitos abstratos como “dignidade” e “tragédia”, para nos satisfazermos no plano teórico, mas sem nenhum efeito na realidade. Essas declarações não têm impacto na realidade; são golpes no ar, sabendo que a batalha está em outro lugar, no terreno da realidade das vidas; um terreno ocupado pela mídia e pelo “planejamento familiar” com dinheiro público.

“Pregar não é suficiente”, como disse-me recentemente um bispo francês. Temos de partir da realidade e da caridade. Precisamos fazer do aborto uma questão central na ação social da Igreja: cada diocese e cada paróquia deve se comprometer a ajudar mulheres grávidas e mulheres que abortaram, seguindo o exemplo das associações católicas existentes.

As mulheres grávidas em dificuldades precisam saber que serão acolhidas e ajudadas em todas as paróquias da França. Precisamos ajudar essas mulheres e, no caso daquelas que fizeram um aborto, precisamos ajudá-las a se reconciliarem consigo mesmas e com Deus, e tirá-las da armadilha do aborto. O Papa Francisco fez um grande bem ao conferir a todos os sacerdotes o poder de conceder a absolvição pelo pecado do aborto. Devemos também alertar as novas gerações. A caridade deve nos levar a fazer isso. Há muito de bem a ser feito.

E a criança?

Também precisamos falar sobre a criança, e não apenas sobre o sofrimento das mulheres. Diante daqueles que negam sua existência e humanidade, a Igreja deve ser mais explícita e dizer claramente o que é uma criança concebida, se ela é conhecida e querida por Deus, se ela tem uma alma e um destino eterno. Dizer o que é o fruto da concepção é uma necessidade para a educação sexual e religiosa, mas também para as mulheres que fizeram abortos e que não sabem como dar um nome à causa de seu sofrimento.

A Igreja tem o poder de quebrar essa mentira que esconde a própria realidade do ser abortado, e a ciência é sua aliada nisso.

Em nível político, esse retorno à caridade e à realidade pode assumir a forma do testemunho direto de mulheres cujo aborto não foi uma liberdade, mas uma imposição e uma fonte de sofrimento. O testemunho direto dessas mulheres é a maneira mais poderosa de romper com a ideologia, tocar os corações e abrir espaço para a caridade.

A constitucionalização do aborto é uma derrota em termos de ideias, mas ainda temos todo o campo da experiência humana. Temos de voltar a subir a colina a partir de baixo, da realidade; uma realidade dolorosa que ninguém quer ver ou se importar. Essa realidade dolorosa, vivenciada por tantas mulheres, acumulada e fechada no silêncio, é uma bomba. Se conseguirmos romper esse silêncio, quebrar esse tabu, essa bomba poderá explodir e mudar profundamente a visão da sociedade sobre o valor da vida e a fragilidade da mulher que a carrega e a transmite.

Grégor Puppinck, doutor em Direito, é presidente da European Centre for Law and Justice.

©2024 La Nef. Publicado com permissão. Original em francês: “Avortement : comment sortir du piège ?”.

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