"Nação Dopamina", livro da psiquiatra Anna Lembke lançado no Brasil pelo selo Vestígio, trata de um tema perturbador, porém fundamental para se compreender a sociedade atual: a maneira como o prazer desenfreado pode nos levar ao sofrimento.
Professora na Escola de Medicina da Universidade de Stanford, Anna combina histórias emocionantes de pacientes e pesquisas científicas de ponta para propor uma reflexão sobre a era dos excessos.
No recorte a seguir, ela explica como o avanço tecnológico não apenas facilita o acesso a substâncias e induz a comportamentos viciantes, mas também potencializa seus efeitos, desafiando nossa capacidade de autocontrole.
Um dos maiores fatores de risco para se tornar dependente de qualquer droga é o fácil acesso a ela. Quando a obtenção da droga é mais fácil, nossa probabilidade de experimentá-la aumenta. Depois de experimentá-la, ficamos mais propensos a nos tornarmos dependentes dela.
A atual epidemia de opioides nos Estados Unidos é um exemplo trágico e irrefutável deste fato. A quadruplicação de opioides prescritos nos EUA (oxicodona, hidrocodona, fentanil) entre 1999 e 2012, aliada à sua ampla distribuição em cada canto do país, levou a taxas crescentes de dependência de opioides e de mortes relacionadas.
Uma força-tarefa designada pela Associação de Escolas e Programas de Saúde Pública publicou um relatório em 1º de novembro de 2019 concluindo que: “A tremenda expansão do suprimento de fortes opioides vendidos sob receita médica (de alta potência, bem como de efeito prolongado) levou ao aumento em escala da dependência desses opioides e à transição de muitos para opioides ilícitos, incluindo fentanil e seus análogos, o que levou a um aumento exponencial de overdoses”.
O relatório também afirmou que o transtorno do uso “é causado pelas repetidas exposições a opioides”. Da mesma maneira, a diminuição do fornecimento de substâncias adictivas diminui a exposição e o risco de dependência e males relacionados.
Um experimento natural no século passado, para testar e provar esta hipótese, foi a Lei Seca, um banimento constitucional de alcance nacional sobre a produção, a importação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos de 1920 a 1933.
A Lei Seca levou a uma redução acentuada do número de consumidores e potenciais dependentes do álcool.4 As taxas de embriaguez pública e de incidência de doenças hepáticas relacionadas ao álcool caíram pela metade durante esse período, na ausência de novos remédios para tratar dependência.
Claro, houve consequências imprevistas, como a criação de um grande mercado clandestino a cargo de gangues criminosas, mas o impacto positivo da Lei Seca no consumo de álcool e a morbidez a ele relacionada é amplamente subestimado.
Os reduzidos efeitos da bebida, resultantes da Lei Seca, persistiram nos 30 anos subsequentes. Na década de 1950, à medida que o álcool passou a ser, novamente, mais acessível, seu consumo aumentou progressivamente.
Na década de 1990, a porcentagem de estadunidenses que bebiam álcool aumentou quase 50%, enquanto a bebedeira de alto risco aumentou 15%. Entre 2002 e 2013, a dependência alcoólica diagnosticável subiu 50% nos adultos mais velhos (acima de 65 anos) e 84% nas mulheres, dois grupos demográficos que antes eram relativamente imunes a esse problema.
Sem dúvida, o acesso mais amplo não é o único risco para dependência. O risco aumenta se temos pai, mãe, avô ou avó biológicos adictos, mesmo quando somos criados fora do lar dos dependentes.
A doença mental é um fator de risco, embora a relação entre ela e a adicção não esteja clara. A doença mental leva ao uso de drogas, o uso de drogas causa ou revela a doença mental, ou a coisa está entre uma e outra?
O trauma, a revolta social e a pobreza contribuem para o risco da dependência; as drogas passam a ser um meio de lidar e conduzir a mudanças epigenéticas – mudanças transmissíveis às cadeias de DNA fora dos pares básicos herdados –, afetando a expressão genética tanto no indivíduo quanto em sua prole.
Apesar desses fatores de risco, o maior acesso a substâncias adictivas pode ser o fator de risco mais importante para as pessoas modernas. O suprimento criou demanda, uma vez que todos nós caímos presas do vórtice de um uso compulsivo desenfreado.
Cada vez mais fortes
Nossa economia de dopamina, o que o históriador David Courtwright chamou de “capitalismo límbico”, está conduzindo esta mudança, auxiliada pela tecnologia transformadora que aumentou não apenas o acesso, como também o número, a variedade e a potência das drogas.
A máquina de enrolar cigarros, por exemplo, inventada em 1880, tornou possível passar de quatro cigarros enrolados por minuto para o impressionante número de 20 mil. Atualmente, são vendidos no mundo 6,5 trilhões de cigarros por ano, traduzidos para aproximadamente 18 bilhões de cigarros consumidos por dia, responsáveis por um número estimado de 6 milhões de mortes no mundo.
Em 1805, o alemão Friedrich Sertürner, enquanto trabalhava como aprendiz de farmácia, descobriu o analgésico morfina – um opioide alcaloide dez vezes mais potente do que seu precursor, o ópio. Em 1853, o médico escocês Alexander Wood inventou a seringa hipodérmica.
Essas duas invenções contribuíram para centenas de registros, em publicações médicas do final do século 19, de casos iatrogênicos (iniciados pelo médico), de dependência à morfina.
Numa tentativa de encontrar um analgésico opioide menos adictivo em substituição à morfina, os químicos vieram com um composto totalmente novo, a que denominaram “heroína”, de heroisch, palavra alemã para “corajoso”. A heroína revelou-se de duas a cinco vezes mais potente do que a morfina e abriu caminho para a narcomania do início dos anos 1900.
Hoje em dia, os potentes opioides de categoria farmacêutica, tais como a oxicodona, a hidrocodona e a hidromorfona estão disponíveis em todas as formas imagináveis: pílulas, injeções, adesivos, spray nasal.
Em 2014, um paciente de meia-idade veio ao meu consultório chupando um pirulito de fentanil vermelho-vivo. O fentanil, um opioide sintético, é de 50 a cem vezes mais potente do que a morfina.
Além dos opioides, hoje muitas outras drogas são também mais potentes do que no passado. Os cigarros eletrônicos – chiques, discretos, sem cheiro, com sistemas de disponibilização de nicotina recarregável – leva a taxas mais altas de nicotina no sangue em períodos mais curtos de consumo do que os cigarros tradicionais. Eles também vêm em inúmeros sabores destinados a atrair adolescentes.
A maconha de hoje é de cinco a dez vezes mais potente do que a da década de 1960 e é encontrada em biscoitos, bolos, brownies, pastilhas, óleos aromáticos, tinturas, chás... a lista é infinita.
E todo o mundo a comida é manipulada por técnicos. Após a Primeira Guerra Mundial, a automação das linhas de produção de salgadinhos e frituras levou à criação das batatas fritas embaladas. Em 2014, os americanos consumiram 51 quilos de batatas por pessoa, sendo 15 quilos de batatas frescas e os 36 quilos restantes de batatas processadas.
Quantidades imensas de açúcar, sal e gordura são acrescidas a grande parte dos alimentos que comemos, bem como milhares de sabores artificiais são incluídos para satisfazer nosso apetite moderno por coisas como sorvete de rabanada e bisque tailandesa de coco e tomate.
Com acesso e potência crescentes, o polifármaco – ou seja, o uso de múltiplas drogas simultaneamente ou com grande proximidade – passou a ser a norma.
Drogas digitais
Meu paciente Max relatou seu histórico de uso de drogas para mim. Ele começou aos 17 anos com álcool, cigarros e maconha. Aos 18, cheirava cocaína. Aos 19, mudou para oxicodona e alprazolam. Ao longo dos seus 20 anos, usou Percocet, fentanil, cetamina, LSD, PCP, DXM e MXE, chegando à oximorfona, um opioide de classificação farmacêutica que o levou à heroína, que ele usou até me procurar, aos 30 anos.
No total, ele passou por 14 drogas diferentes em pouco mais de uma década.
O mundo de hoje oferece um vasto complemento de drogas digitais que antes não existiam, ou, se existiam, agora estão acessíveis em plataformas que aumentaram exponencialmente sua potência e disponibilidade. Isto inclui pornografia online, jogos de azar e videogames, só para citar alguns.
Além disso, a própria tecnologia é adictiva, com suas luzes pulsantes, seu estardalhaço musical, seu conteúdo ilimitado e a promessa, com uma participação contínua, de recompensas cada vez maiores.
Minha própria progressão, de um romance açucarado de um vampiro relativamente domesticado para o que equivale à pornografia socialmente sancionada para mulheres, pode ser atribuída ao advento do leitor eletrônico.
O ato de consumo por si só se tornou uma droga. Meu paciente Chi, um imigrante vietnamita, viu-se fisgado no ciclo de busca e compra de produtos online. Para ele, a euforia começava com a decisão do que comprar, continuava com a antecipação da entrega e culminava no momento em que ele abria o pacote.
Infelizmente, a euforia não durava muito além do tempo que ele levava para arrancar a fita adesiva da Amazon e ver o que havia dentro. Seus cômodos estavam cheios de bens de consumo baratos e ele devia dezenas de milhares de dólares. Mesmo assim, não conseguia parar. Para manter o ciclo funcionando, passou a encomendar produtos ainda mais baratos – chaveiros, canecas, óculos escuros de plástico –, devolvendo-os imediatamente após a entrega.