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Psiquiatria e Justiça

Adélio Bispo, Thomas Crooks, e o dilema entre saúde mental e culpa por crimes

Adélio Bispo (de vermelho), autor da tentativa de assassinato contra Jair Bolsonaro, é levado pela Polícia Federal em Juiz de Fora após o interrogatório em 7 de setembro de 2018. Bispo foi absolvido por insanidade, mas está em um presídio.
Adélio Bispo (de vermelho), autor da tentativa de assassinato contra Jair Bolsonaro, é levado pela Polícia Federal em Juiz de Fora após o interrogatório em 7 de setembro de 2018. Bispo foi absolvido por insanidade, mas está em um presídio. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

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Atentados contra a vida de presidentes como o cometido por Thomas Crooks contra Donald Trump no último dia 13, e o cometido por Adélio Bispo contra o então candidato Jair Bolsonaro em 2018, geram um interesse imediato na saúde mental dos autores e, caso tenham transtornos psiquiátricos, podem levar a penas mais brandas ou exoneração pela Justiça. Mas a ideia de que portadores de certos transtornos são inimputáveis, ou isentos de agir por motivações políticas, não é unanimidade.

John Hinckley Jr., que tentou matar a tiros o presidente americano Ronald Reagan em 1981, hoje está em liberdade e publica vídeos em que canta e toca violão no YouTube. “É um crime o quanto este artista é subestimado”, diz um comentário sarcástico em um dos vídeos.

A liberdade de Hinckley (que ainda assim foi confinado até 2016 em hospital psiquiátrico) foi possível porque ele usou da “defesa por insanidade”, aceita por um tribunal em seu julgamento de 1982. O descontentamento com esse resultado levou a modificações na lei americana. A Lei de Reforma da Defesa por Insanidade de 1984 restringiu essa defesa em casos federais, estabelecendo que é a defesa que tem que provar com “evidências claras e convincentes” que o réu sofre de doenças mentais, em vez de a acusação ter que provar que ele tem pleno controle de suas faculdades mentais.

Thomas Crooks manifestou desdém por apoiador de Trump

Notoriamente, Hinckley alegou que o atentado tinha o propósito de impressionar a atriz Jodie Foster, por quem tinha uma obsessão, não aparentando motivações políticas. Se Thomas Crooks tinha motivação política para tentar matar Trump, ainda não está claro: ele doou para os democratas, mas foi registrado antes como eleitor republicano.

Um colega de ensino médio, Vincent Taormina, disse à Fox News que teve um debate acalorado com Crooks antes das eleições de 2016 em que ele foi “um esnobe e arrogante”, expressando desdém por todos os políticos, e ridicularizando Taormina por apoiar Trump enquanto é de origem hispânica. Na época, contudo, o futuro assassino tinha apenas 12 anos.

É bem possível, como apontou a Gazeta do Povo, que Crooks tenha sido convencido pela retórica hiperbólica e desonesta contra Trump, inclusive na imprensa, de que ganharia notoriedade e aprovação se cometesse o crime.

Também não se sabe se Crooks tinha transtorno psiquiátrico. Há sinais no histórico escolar de que era altamente inteligente, mas podia ter consequências mentais por sofrer bullying na escola e ser muito isolado socialmente. Ele tinha um emprego pouco glamouroso. É plausível, portanto, que visse no assassinato de Trump um atalho para o reconhecimento social que não havia obtido, apesar de sua inteligência.

Motivação política de Adélio Bispo foi confessada

Adélio Bispo de Oliveira, por sua vez, declarado inimputável por transtorno mental, confessou intenções políticas. Um relatório de junho de 2019 junto à sentença do juiz Bruno Savino, da 3ª Vara Federal de Juiz de Fora (MG), onde aconteceu a facada, resumiu o que o esfaqueador declarou em interrogatórios da polícia sobre suas motivações.

Adélio disse que “defende a ideologia de esquerda, enquanto o candidato Jair Bolsonaro defende ideologia diametralmente oposta, ou seja, de extrema direita”. Aqui, temos indícios da influência direta da retórica exagerada dos opositores de Bolsonaro na época: o autor do atentado acreditava que o candidato defendia “o extermínio de homossexuais, pobres, negros e índios”, e disse que “não concorda com o fim das terras indígenas, conforme defendido por Bolsonaro”, nem “com as privatizações em massa”, preferindo “um Estado forte e presente em todos os setores do país”.

Em mais um interrogatório, Adélio, que foi afiliado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), reiterou que sua motivação “se deu em razão das ideias propostas pelo candidato, assim como em razão das suas manifestações públicas com conotações racistas, contra os interesses dos povos indígenas, a favor de armar toda a população, além de pregar o extermínio de todas as pessoas que tenham a ideologia de esquerda”.

Exemplo dessa retórica está até no livro sobra a pandemia publicado em 2022 pelos senadores petistas Randolfe Rodrigues e Humberto Costa, no qual acusam Bolsonaro de querer “exterminar os povos indígenas”.

O advogado Hugo Freitas apontou que influenciadores de esquerda como o humorista Antonio Tabet, ao defender a censura, dizem que o limite da expressão é se “morre gente por causa disso”, como disse Tabet ao podcaster censurado e exilado Bruno “Monark” Aiub em 2021. “Acontece que o próprio Antonio Tabet, há anos, faz manifestações de ódio a Bolsonaro em redes sociais”, afirmou Hugo para a Gazeta do Povo. “Sem citar seu nome, já o chamou de ‘assassino’, ‘demônio’ e ‘canibal’. Um dos descritores que mais usou foi ‘genocida’”.

Para Freitas, a relação, ainda que indireta, entre esse tipo de retórica e a facada não é especulação, “porque há provas concretas e judicialmente reconhecidas disso”. A intenção do advogado é criticar os chamados por censura na esquerda: “certamente Antonio Tabet não defenderia que ele próprio fosse preso por suas falas, então é preciso adotar outro critério”, como a exortação direta ao crime. “Fazem o mesmo tipo de retórica inflamante e depois pedem leis de censura para calar os outros, alegando que ‘morre gente’ por causa do discurso alheio”, disse.

Adélio Bispo foi diagnosticado com transtorno delirante persistente, condição na qual a pessoa tem crenças irrazoáveis persistentes de natureza geralmente persecutória ou de autoengrandecimento. Por isso, foi “absolvido impropriamente”, o que significa que cometeu o ato, mas naquele momento não era responsável por sua própria conduta por motivo de insanidade. Ele está num presídio de Campo Grande (MS), e recentemente estava para ser transferido para um hospital de custódia em Minas Gerais. A transferência foi suspensa este mês pelo Superior Tribunal de Justiça por causa de superlotação do hospital.

Para Roberto Motta, ex-Secretário Executivo do Conselho de Segurança do Rio de Janeiro e autor do livro “A Construção da Maldade” (Avis Rara, 2022), o fato de Adélio Bispo ter transtorno psiquiátrico “não afeta em nada” a tese de que ele esfaqueou Bolsonaro por motivos políticos. “Esse convencimento poderia ter sido feito, por exemplo, pela mídia, através da repetição incessante de narrativas contra o candidato”.

Transtornos psiquiátricos eliminam responsabilidade? Até os transtornados não têm certeza

Emmett Rensin é um ensaísta de esquerda americano que foi demitido pela revista Vox em junho de 2016 por tuitar “se Trump vier à sua cidade, comece um tumulto”. Em entrevista de maio deste ano ao jornalista Jesse Singal, Rensin explicou que essa era uma forma de desafiar a retórica exagerada contra o candidato: se ele é tão ruim quanto dizem, no mínimo deveriam começar a quebrar coisas quando ele visita sua cidade. Como não fazem isso, então os militantes não são sinceros.

No mês anterior, Rensin publicou uma autobiografia brutalmente honesta sobre viver com seu próprio transtorno, The Complications: On Going Insane in America (em tradução livre, “As complicações: sobre enlouquecer nos Estados Unidos”). Ele foi diagnosticado com um tipo de bipolaridade que compartilha características com a esquizofrenia, por envolver ouvir vozes e ver coisas.

Certa vez, quando um amigo morreu, ele ficou convencido de que um cachecol deixado por ele era mágico e invadiu, em pleno surto psicótico, o apartamento da viúva para roubar o objeto. Rensin também confessa que acreditava que um colega de apartamento estava conspirando contra ele e o esperou diversas vezes com uma faca na mão. O autor também relata sua troca de correspondência com um assassino em massa esquizofrênico, Herbert Mullin, que morreu na prisão acreditando que um dia convenceria as autoridades de que estava reformado.

Sem paciência para o controle politicamente correto da linguagem a respeito dos transtornados, a autobiografia é bem-informada sobre o estado do conhecimento das doenças mentais (precário, mas com alguns tratamentos que funcionam geralmente por motivos desconhecidos), faz um apanhado sobre a crueldade histórica contra seus portadores, mas também critica o papo “terapêutico” em voga hoje que “mima” transtornados como ele.

“A retórica dos ativistas em torno do sentimento de vergonha tem uma premissa que confunde a vergonha com a culpa”, diz Emmett Rensin. “Toda vez que me dizem que não devo me envergonhar pelas consequências da minha doença, o que na verdade estão dizendo é que estar doente não é culpa minha. Que não escolhi. Os sintomas, especialmente antes da medicação, não são da minha responsabilidade. Então, assim segue o argumento, eu não deveria ter vergonha disso, não mais que vergonha de uma deficiência física por causa de um defeito de nascença”.

Emmett diz que o transtorno não é algo que ele tem, mas algo que ele é: sua persona falsa é aquela criada pela medicação, para poder conviver com o resto da sociedade.

“Uma das tarefas eternas da vida moral é aprender a aceitar que a malevolência deliberada não é a única forma de perturbar as outras pessoas”, conclui o ensaísta. “Há algo de infantil em dizer ‘bem, eu não quis fazer isso, então não é culpa minha’ quando alguém diz ‘você me feriu’. Somente o pior tipo de narcisista nunca conseguiria sentir vergonha. Somente o pior tipo de agente pueril precisa desenvolver um arcabouço elaborado de justificação para explicar por que nada é culpa dele, e que na verdade ele é corajoso por se sentir bem e orgulhoso o tempo todo, e se você disser o contrário, você está abusando dele.”

“Se você bota fogo na casa de alguém durante um episódio psicótico”, diz Rensin, “talvez a vítima esteja mais bem disposta a lhe perdoar, mas a casa ainda é um entulho de cinzas. Se você está pilotando um avião comercial, sofre um episódio psicótico agudo e o lança contra uma montanha tentando escapar de OVNIs imaginários, então muitas centenas de passageiros ainda estarão mortos. Talvez sentimentos de culpa insuperáveis façam com que alguns pacientes parem de tomar os remédios, mas, se eu não sentisse vergonha, eu não tomaria os meus”.

Um arcabouço moral alternativo

Em um artigo publicado na revista Philosophy, Psychiatry & Psychology em 2012, a filósofa Hanna Pickard propôs uma nova forma de interpretar a responsabilidade de portadores de transtornos de personalidade, um grupo de condições que inclui a psicopatia, formas persistentes de paranoia e dificuldades de interação social, o transtorno borderline e o narcisismo.

A proposta de Pickard é diferenciar a responsabilidade da culpa. “É extremamente importante que os profissionais médicos possam falar claramente com os usuários de seus serviços a respeito de sua responsabilidade por comportamentos problemáticos”, afirmou a pensadora, “sem insinuar que os comportamentos sequer possam ser moralmente errados e a pessoa, ruim”.

Por exemplo, pode-se dizer que os pacientes “podem ser responsáveis por agressões verbais contra os profissionais médicos, mas sem culpa, porque estão agindo para aliviar altos níveis de estresse psicológico e não têm os mecanismos alternativos para lidar com isso”, sem transformar “responsáveis” em “moralmente responsáveis”. Essa forma de enxergar as coisas, disse Pickard, devolve a agência aos pacientes, sem tratá-los como tão imputáveis quanto as pessoas que não têm suas dificuldades.

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