*Colaborou André Luzardo
Uma pesquisa nova do Datafolha encomendada por duas organizações não-governamentais da educação afirma que 91% dos brasileiros concordam que o abuso sexual de crianças e adolescentes pode ser prevenido pela educação sexual. Uma maioria de 73% pensa que essa disciplina deve estar presente nas escolas.
A amostra foi de 2090 pessoas que foram entrevistadas em março deste ano. O título da pesquisa é “Ultraconservadorismo na educação”. Respondendo se a escola está mais preparada que os pais para explicar puberdade e sexualidade, 47% expressaram concordância completa, 24% concordaram em parte. Uma quase unanimidade de 96% concorda que a escola deve oferecer informação sobre doenças venéreas e formas de preveni-las. Quanto aos alunos aprenderem na escola a respeito de como evitar gravidez indesejada, 93% dos respondentes concordaram.
Esses números são consistentes com pesquisas de opinião pública entre americanos. Em uma pesquisa de 2005 da Pew Research, 78% dos respondentes foram favoráveis ao ensino escolar sobre métodos anticoncepcionais. Em outra mais recente e abrangente pesquisa, 64,1% consideraram como “muito importante” a educação sexual na middle school (11 a 13 anos de idade) e 82,7% na high school (14 a 18 anos). Em relação aos tópicos, a grande maioria (entre 81,6-97,8%) concorda que já na middle school sejam abordados a puberdade, relacionamentos saudáveis, abstinência, contraceptivos, doenças venéreas e consentimento. Divisões partidárias não se mostraram muito grandes, exceto quanto ao tópico “orientação sexual” na middle school, onde a grande maioria dos democratas (83,8%) são a favor enquanto pouco menos da metade dos republicanos (48,1%) têm a mesma opinião.
No Brasil, a educação sexual focada em planejamento familiar e evitar doenças sexualmente transmissíveis acontece há décadas nas escolas públicas. A geração que hoje chega aos 40 anos costumava aprender na escola a respeito da “puericultura”, disciplina subordinada à pediatria que chegou ao Brasil no final do século XIX. Os pais mais jovens, portanto, defendem que suas crianças obtenham os mesmos conhecimentos que eles adquiriram na escola.
Essa postura não se confunde com uma concordância com pautas progressistas como a introdução de conceitos da diversidade sexual e a pauta LGBT. Uma pesquisa de janeiro do PoderData, por exemplo, apontou que o apoio ao casamento gay caiu de 51% para 45% no Brasil. Quando mal introduzidas, essas questões podem contribuir para confusões de identidade e más recomendações, como a de tratar toda criança que diz que quer pertencer ao sexo oposto como “trans”, quando a maioria delas se resolve sem necessidade de transição.
Educação sexual é eficaz? O que diz a literatura acadêmica
Uma revisão de 2020 de Eva Goldfarb e Lisa Lieberman, ambas do Departamento de Saúde Pública da Universidade Estadual de Monclair, na Nova Jérsei, filtrou 80 estudos entre dezenas de milhares a respeito do estado da arte da educação sexual nos últimos 30 anos. As autoras sugerem que a educação sexual tem sucesso em reduzir a homofobia, com recursos didáticos como convite a pessoas LGBT para que contem sua história de vida. Um dos estudos, envolvendo 227 estudantes do ensino médio canadenses, viu redução no uso de xingamentos homofóbicos entre eles.
Estudos na Califórnia e nos Países Baixos indicam que a presença da educação sexual reduz o bullying contra os alunos LGBT e que até melhora a saúde mental deles, baixando a incidência de ideações suicidas. Quanto à educação sexual mais clássica, são observadas melhorias quanto à percepção e atitude em relação à violência entre parceiros íntimos — alguns poucos estudos usaram o método mais rigoroso da distribuição aleatória dos estudantes entre quem teve aulas em educação sexual ou não. Além disso, “esta revisão encontrou evidências fortes para a eficácia dos esforços de prevenção do abuso sexual infantil”, dizem Eva e Lisa. As crianças aprenderam a respeito de qual toque de adulto é apropriado e a respeito do que é normal para cada etapa de seu desenvolvimento. Também foram orientadas a não reproduzir atitudes incorretas como culpar vítimas pelo estupro.
Em uma revisão de 2016 feita pelo Centro de Intervenções Baseadas em Evidências da Universidade de Oxford e encomendada pela UNESCO os autores não encontraram evidências de que a educação sexual aumenta a atividade sexual ou DSTs, uma preocupação bastante comum.
Se a educação sexual não aparenta ter efeitos negativos em desfechos biológicos, como gravidez e DSTs, será que ela teria efeitos positivos? Aqui a evidência não permite tirar uma conclusão clara. Há poucos estudos de alta qualidade sobre o assunto, como apontam Goldfarb e Lieberman, e a própria revisão da UNESCO. Um estudo de longo prazo americano constatou não haver efeito na taxa de natalidade adolescente quando outras variáveis eram controladas, como religiosidade, características demográficas e políticas locais sobre o aborto. De fato, estados americanos com maior religiosidade e conservadorismo estavam associados a maiores taxas de gravidez adolescente, embora não se saiba ao certo se há relação causal entre essas crenças e esse resultado.
É interessante levar em conta também o que têm a dizer os alunos. Em um estudo qualitativo envolvendo vários países, incluindo o Brasil, os alunos expressaram certa insatisfação com a maneira como a educação sexual era ensinada em suas escolas. Muitos relataram timidez, inclusive da parte dos professores, e insatisfação com a ênfase negativa, demasiado “científica” e sem muita relevância para a vida real dos alunos.
Uma das maiores dificuldades na avaliação científica dos efeitos da educação sexual é a tremenda variabilidade tanto nos tópicos curriculares quanto na maneira como esses são abordados. Além disso, e como esperado, esse tópico é particularmente sensível à influência de ideologias políticas conservadoras e progressistas, o que pode trazer efeitos indesejados. Do lado conservador há uma tendência em reduzir a educação sexual à abstinência apenas, algo que estudos já citados mostram não ter o efeito esperado. Do lado progressista vemos cada vez mais ganhar terreno a ideia do gênero como construção social, uma posição não científica e que remonta ao mito da tábula rasa, a ideia há tempos desacreditada de que a mente e o comportamento humano são influenciados somente pelo ambiente. Ainda não há estudos sobre os efeitos que essa ideia pode ter no contexto escolar, mas é plausível que ela possa confundir adolescentes cujo comportamento não se encaixe no padrão masculino/feminino e contribuir para o atual aumento dos casos de disforia de gênero provavelmente causados por contágio social.
Influências sobre a área
Nos Estados Unidos, três ONGs publicam desde 2012 as Diretrizes Nacionais de Educação em Sexualidade (NSES), amplamente adotadas em distritos escolares pelo país. A segunda edição das diretrizes foi publicada em 2020. Goldfarb e Lieberman comentam que essa edição teve como atualização notável “um foco proeminente em justiça social e equidade, além da interseccionalidade”. O que isso significa é que há uma influência ideológica da “teoria crítica da raça” — uma vertente acadêmica que busca explicar o racismo em termos de relação de poder entre grupos e afastar o entendimento da solução para o assunto no tratamento igual independente da raça — e outras vertentes do identitarismo acadêmico.
“Justiça social” é um termo bem conhecido utilizado por diversas escolas de pensamento de esquerda, incluindo o comunismo. “Equidade” é um termo cuja semântica foi modificada mais recentemente pela constelação de estudos em política identitária. Em vez de ser um sinônimo de igualdade ou o mesmo tratamento para indivíduos independente de sua identidade, “equidade” neste ambiente ideológico significa uma pressão pelos mesmos resultados, por exemplo pela representação proporcional de grupos em diferentes ambientes educacionais e profissionais. Essa meta pode levar a injustiças, como a dispensa de pessoas interessadas e talentosas por não serem parte de grupos “protegidos”.
Quanto à “interseccionalidade”, termo criado pela acadêmica Kimberlé Crenshaw para se referir à confluência de opressões em mulheres negras (sexismo e racismo), pertence à área conhecida como “teoria crítica da raça”. Kimberlé propõe em um artigo que a ideia de tratar as pessoas igualmente como se não tivessem cores diferentes, o que os americanos chamam de “cegueira à cor”, “não faria sentido numa sociedade em que grupos identificáveis haviam sido tratados de forma diferente”. Neil Gotanda, outro teórico crítico da raça, chama a integração dos negros à cultura americana na era pós-segregação de “genocídio cultural”. John Calmore, da mesma linha, afirma que a teoria crítica da raça “rejeita os ditames tradicionais que imploram que se escreva e estude como um observador desinteressado cujo trabalho supostamente é objetivo, neutro e equilibrado”. Os teóricos abraçam a subjetividade e rejeitam a imparcialidade que se busca na ciência.
Em um volume organizado por Kimberlé de título “Teoria Crítica da Raça: Os Principais Textos que Formaram o Movimento” (em tradução livre, 1996), aos autores atacam explicitamente a forma como foi feita a dessegregação racial da sociedade americana, optando por “recuperar e revitalizar a tradição radical da consciência racial entre os afro-americanos e outras pessoas de cor”. A ideia vai contra pesquisa replicada em psicologia que indica que a menor ênfase em identidade racial ajuda a combater o racismo, como discutindo antes aqui na Gazeta do Povo.
O fato de diretrizes recentes em educação sexual usarem o vocabulário e as ideias dos movimentos identitários e seus idealizadores evidencia que os pais, enquanto aprovam a presença da educação sexual nas escolas, devem estar atentos a qual base teórica é utilizada para tanto. A educação sexual que lembram com nostalgia em sua própria formação pode não ser tão baseada em conhecimentos quanto eles pensam, e pode ter elementos de radicalismo político.
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