Biólogo de formação e atualmente presidente das Comissões de Proteção e Defesa dos Animais da Ordem dos Advogados Brasil (OAB) do Rio de Janeiro e nacional, o advogado Reynaldo Velloso protagoniza uma causa inédita no Brasil: é o representante de uma égua, vítima de anemia equina, que pleiteia o direito de não ser sacrificada até o mês de dezembro, quando está previsto o nascimento de seu primeiro filhote.
Há quatro meses, Flor (como é hoje conhecido o animal) foi encontrada ao relento, no município de Nova Friburgo, na Região Serrana do Rio, e foi adotada por uma família. Ocorre que a doença da qual é portadora é infecciosa e, de acordo com Código Sanitário Animal Internacional, deve levar à eutanásia do animal, ainda que este esteja assintomático – como é o caso de Flor. O vírus responsável pela doença é semelhante ao HIV humano, podendo ser transmitido pela placenta. O filhote, portanto, pode estar contaminado.
Através de Velloso, o caso de Flor chegou ao Executivo: no último dia 10, a OAB-RJ entrou com um recurso administrativo no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Rio para garantir a sobrevivência da égua até o parto. A base do pedido é, justamente, o direito inalienável ao nascimento - neste caso, conferido ao filhote.
O debate sobre a inclusão dos animais nos direitos conferidos ao homem, contudo, abarca uma série de questões de ordem moral e jurídica. Na quarta-feira (22), por exemplo, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, fez um comentário sobre o caso em seu Instagram. "Parabéns OAB pela iniciativa em evitar um aborto. Toda vida merece ser protegida desde a concepção, inclusive a humana!", escreveu a ministra. Ontem à noite, a Agricultura informou, em nota à imprensa, que acatou o pedido da OAB, suspendendo a eutanásia de Flor até análise administrativa final.
Por telefone, Velloso falou à Gazeta do Povo sobre o assunto.
Como o senhor se envolveu na causa da égua Flor?
Foi a família quem me procurou. A égua, que ganhou de um dos filhos do casal o nome de Flor, foi resgatada magra e doente no mês de março, no município de Nova Friburgo, na Região Serrana. Mandaram construir uma baia e toda a estrutura necessária para mantê-la a salvo.
No processo, então, o senhor representa a família?
Não. É importante ressaltar que quem entrou com o recurso administrativo foi a própria OAB. Eu estou representando a égua. Neste caso, ela é autora do pedido. É inédito ter uma égua reivindicando o direito de ter o seu filho.
Qual é o principal argumento do pedido?
O filhote tem 50% de chance de nascer saudável - porque a doença pode ou não ser transmitida pela placenta – e, ao mesmo tempo, está isolado, de modo que não apresenta risco para outros. Diante disso, eu basicamente aplico ao animal não-humano o direito ao nascimento previsto para o animal-humano. A Declaração Universal de Direitos dos Animais já prevê que todos os animais nascem iguais diante da vida e têm o mesmo direito à existência.
É justo comparar uma vida humana à de um potrinho?
Sim, porque se trata de vida. O animal sente fome, frio e medo. O que está em jogo não é a capacidade de pensar, mas a de sofrer. Não se deve olhar do ponto de vista jurídico, mas da compaixão.
Se um potrinho possui o direito inalienável ao nascimento, mesmo diante das circunstâncias desfavoráveis, a mesma régua deve valer para o ser humano, para falar de aborto?
Não gosto de equiparar ao aborto porque é uma outra questão. Eu acho que cada um pode fazer o que quiser com o corpo. Mas a legislação ambiental manda matar a égua que, se pudesse falar, tenho certeza de que diria que quer ter o filhote. Se a mãe humana não quer ter o filho, isso é outra história.
Então, mesmo que o pertença ao feto, pode estar subjugado ao poder de escolha da mãe?
O ser humano tem que avaliar se é correto matar um feto na barriga da pessoa. Mas, de novo, não quero entrar na questão do aborto, porque não é o caso. Estamos falando do direito de nascer. A égua não tem escolha e a gente se propõe a defender. O aborto é uma questão jurídica.
A decisão de imputar a um animal um direito humano traz outras implicações jurídicas?
Claro. Mas estamos trabalhando em todas as frentes. Tramita no Congresso um projeto de lei apelidado de “Animal não é coisa”, para alteração no artigo 82 do Código Civil que, hoje, prevê que os animais são um bem móvel. Se aprovado, serão tratados como seres “sencientes”: podem ter personalidade jurídica, receber habeas corpus e outras proteções legais.
No limite, isso pode impedir, por exemplo, o abate para consumo? Sim. Mas, veja, daqui a dez, 20 anos, vai acabar esse negócio de comer carne. Nossos hábitos de hoje serão vistos com a mesma ferocidade com que enxergamos os dinossauros. Sabe o filme do Steven Spielberg, que a gente vê rasgando a perna pra lá, sangue pra cá, e acha uma coisa horrorosa? Daqui a três, quatro gerações, vamos ver o consumo de carne do mesmo jeito. São os chamados paradigmas, que a gente vai quebrando aos poucos. É uma luta por amor que ninguém pode conter.
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