“O gelo se forma nas pontas das minhas asas. Meu halo turvo, uma trilha de vapor no ar vazio. Acima das nuvens, vejo minha sombra voar. Do canto do meu olho marejado. Um sonho incólume diante da luz da manhã”. Se você visualizou no olho da sua mente esta cena descrita na música Learning to Fly, da banda Pink Floyd, poderá surpreender saber que sua experiência não é universal. Algumas pessoas não são capazes dessa visualização. É a condição chamada afantasia.
Não é uma doença e não consta nos manuais de transtornos psiquiátricos. “Conversar com essas pessoas é fascinante. Tendemos a pensar que o acesso à percepção visual, conceituação e memória é a mesma coisa para todos. Nada poderia estar mais longe da verdade”, diz Paolo Bartolomeo, neurologista e pesquisador no Instituto do Cérebro de Paris. “Os afantásicos não conseguem formar mentalmente a imagem do rosto de seus pais, amigos ou cônjuges quando eles não estão por perto. Mas conseguem descrever as características físicas de seus entes queridos: essa informação visual foi armazenada, de uma forma ou outra”, explica.
Junto ao colega Jianghao Liu, Bartolomeo fez um dos poucos estudos sobre a condição, publicado em setembro passado na revista científica Cortex. Entre os 117 participantes que relataram alguma diferença na capacidade de imaginação, 44 eram afantásicos, com pouca ou nenhuma visualização mental. Interessantemente também foram incluídos 31 hiperfantásicos, ou seja, pessoas com capacidade de formar imagens mentais mais vívidas que a média.
No teste do estudo, os participantes se sentaram, um a um, frente a uma tela em branco. Uma voz anunciava uma qualidade visual de um objeto, como a forma, depois duas palavras para objetos que tinham de visualizar (como “castor” e “raposa”) e um adjetivo físico como “comprido”. Os cientistas perguntavam, então, qual dos dois objetos mais correspondia ao adjetivo, e registravam a rapidez e precisão das repostas. Finalmente, a “resposta correta”, como a raposa comprida, era exibida na tela, e os pesquisadores registravam aspectos da percepção da imagem.
O principal resultado foi que os afantásicos eram mais lentos, em média, para processar a informação visual, em especial formas e cores. Eles também confiavam menos em suas respostas. Mas eles não tinham dificuldade de perceber e associar as imagens reais aos conceitos correspondentes. Estudos anteriores mostraram que eles também não têm dificuldades de responder a perguntas a respeito de conceitos abstratos. A dificuldade está em traduzir a imagem literal em uma imagem mental simulada na experiência consciente.
“Essa peculiaridade é provavelmente compensada por outras estratégias cognitivas, tais como listas mentais de características visuais que permitem aos afantásicos lembrar tudo o que viram”, comenta Bartolomeo. Além de avançar a curiosidade, esse tipo de pesquisa tem o potencial de ajudar pessoas como as que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático, nas quais imagens mentais intrusivas são uma fonte de sofrimento.
Conversando com afantásicos
A Gazeta do Povo entrevistou três pessoas que relataram algum grau de afantasia. O estudante Lucas Martin, de 19 anos, percebeu que era diferente das outras pessoas na formação de imagens mentais quando perguntou a respeito para sua mãe aos 14 anos. Quando ele pensa em sua última refeição, ele relata que “por um rápido segundo vem a imagem na minha mente, depois eu revivo o cheiro, e há uma lista amorfa do que eu comi”. No caso dele, a visualização chega a se formar, “com um fundo preto”, mas logo se desfaz. Ele diz que ser afantásico não o incomoda, e acha que seria conveniente que mais pessoas soubessem da existência de pessoas como ele.
O engenheiro eletrônico Eduardo Lippmann e seu irmão gêmeo idêntico Fernando, de 36 anos, fizeram um teste online e foram classificados como “hipofantásicos” — um baixo grau de visualização que o estudo de Bartolomeo incluiu na afantasia. Eduardo descobriu que era diferente há seis anos, quando no trabalho alguém leu um artigo sobre a dificuldade de pensar em imagens. Enquanto os outros colegas de trabalho achavam curioso ou até cômico, ele “estava tendo uma epifania e repensando toda a minha vida. Foi extremamente esclarecedor ter consciência disso”. Estimulados pelas perguntas da reportagem, eles conversaram entre si e Fernando investigou melhor sua semelhança com o irmão.
Eduardo conta que, na infância, “apesar de ter as melhores notas, eu não conseguia fazer dobraduras de papel na aula de artes porque não conseguia ver uma pessoa realizar um movimento e em seguida ‘rever’ o movimento na minha mente”. Ele relata que tem uma memória muito boa para informações analíticas. Ao pensar em sua última refeição, também não tem dificuldade de reformar na imaginação os cheiros e sabores, mas só consegue “criar uma imagem bem malformada, que dura poucos instantes e não é uma memória da refeição. É só uma tentativa de criar uma imagem a partir de uma palavra solta. Consigo listar tudo o que comi, mas isso não vem na minha mente como algo falado ou escrito”.
Fernando Lippmann dá detalhes de sua tentativa de reformar na imaginação sua última refeição: não tem dificuldades com a textura dos alimentos, como se sentiu enquanto comia, ingredientes e temperos que reconheceu e “movimentos que fiz durante a refeição, como a mastigação e manuseio dos talheres”. Mas “imagens são difíceis de mentalizar, quando aparecem são foscas, apenas mostram uma fração do alimento ou apenas o formato e somem rapidamente da imaginação”. Como Lucas, ele tem na cabeça uma lista que “não é lida por nenhuma voz, é algo muito mais rápido do que a narrativa de uma voz, mas também não é imagem”.
A condição, como relatou o cientista de Paris, afeta a visualização de rostos. Fernando conta que na adolescência tinha dificuldade de reconhecer pessoas que viu poucas vezes, e medo de não reconhecer a namorada que teve aos 15 anos “porque não conseguia me lembrar da fisionomia dela”. Quando ele a via, tentava se concentrar no rosto, em detalhes que o ajudariam a se lembrar. Seu medo era infundado, pois a condição não afeta o reconhecimento de rostos. “Era apenas um medo por conta da dificuldade de imaginar a imagem dela”, relata. “Senti como se fosse uma deficiência na capacidade de foco, mas aceitei que meu cérebro era muito lógico e bom para matemática, lógica e memória, então teria que ser ruim em outra coisa”. Seus sonhos, contudo, são complexos e vívidos. Eduardo tinha outra estratégia: se sentava com uma cadeira vaga ao lado na festa, se alguma moça com vestido preto (que ele memorizou antes, no encontro) se sentasse a seu lado, ele saberia que era a mesma com quem estava flertando antes de ela ir ao banheiro.
Os gêmeos Lippmann, que são de Curitiba, acreditam que é muito positivo que a afantasia seja mais conhecida. “Não consigo responder, por exemplo, se acho que um quadro ficará bom ou não na parede”, diz Eduardo, cuja esposa ajuda na tarefa simplesmente pendurando o quadro em diferentes paredes para ele ver. Para Fernando, “é muito positivo que as pessoas conheçam que existe mais de uma maneira de pensar. Isso ajuda a entender o próximo, respeitar quando alguém tem dificuldade com algo ‘óbvio’ ou ‘simples’”.
O conhecimento da afantasia é antigo, mas o termo é recente
Foi Aristóteles quem primeiro chamou a capacidade de formar imagens de “fantasia”. Mas os primeiros a chamarem a ausência dessa capacidade de “afantasia” foram os britânicos Adam Zeman (Faculdade de Medicina da Universidade de Exeter), Michaela Dewar (Departamento de Psicologia da Universidade Heriot-Watt em Edimburgo) e Sergio Della Sala (Universidade de Edimburgo), em um artigo de 2015 publicado na revista Cortex.
O pioneiro na mensuração da capacidade de visualização mental foi o gênio Francis Galton, primo de Charles Darwin. Em 1880, Galton relatou ter encontrado em suas explorações uma pessoa que disse que não tinha “nenhum poder de visualização... eu me lembro da mesa do café, mas não a vejo”. O próprio pesquisador era um provável hipofantásico e especulava que “homens de ciência” como ele tinham visualização mais tênue, mas seu primo mais famoso, proponente da teoria da evolução, disse ser capaz de visualizar objetos de forma “tão distinta quanto se eu tivesse as fotos diante de mim”.
No século seguinte, a psicologia deu pouca atenção ao assunto, com algumas notáveis exceções entre psicólogos que eram eles próprios afantásicos. Zeman acredita que ao menos parte dos que têm essa curiosa condição são assim de forma congênita, como sugere o caso dos gêmeos Lippmann, que têm completa semelhança genética.
O estudo dessa diversidade humana já está abrindo novas fronteiras na pesquisa da natureza da consciência, um dos maiores mistérios para o conhecimento científico. A percepção do mundo real e a imaginação compartilham de muitas das mesmas partes do cérebro: é como se a consciência fosse uma simulação do mundo, e nossa percepção uma “alucinação controlada”. Recuperando o trabalho pioneiro da psicóloga Mary Cheves Perky, que em 1910 desenvolveu um teste demonstrando que algumas pessoas não conseguiam distinguir imagens esmaecidas em uma tela de sua própria imaginação, os neurocientistas Nadine Dijkstra e Stephen Fleming, do University College em Londres, publicaram novas descobertas em 2023 na revista Nature Communications.
Os cientistas descobriram que nós distinguimos realidade de imaginação pela intensidade do “sinal” de cada uma. “Pela razão de os sinais gerados internamente serem geralmente mais fracos, a força da percepção dos sentidos é usada para indicar a realidade”, contam. “Os sinais imaginados e percebidos de fato são misturados, com os julgamentos a respeito da realidade sendo determinados pelo teste desse sinal misto ser forte o suficiente para cruzar um limiar de realidade”. Uma consequência disso é que, se a visualização imaginada for forte o suficiente, ela se torna indistinguível da realidade para a subjetividade do indivíduo — isto acontece em alguns casos de hiperfantasia, em alguns transtornos psiquiátricos e experiências com drogas.
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