O governo do PT e os políticos de esquerda seguem cautelosos, para não dizer omissos, diante das ameaças do ditador venezuelano Nicolás Maduro de anexar o território de Essequibo, na Guiana. Ninguém tem dado a cara para bater, provavelmente esperando a crise esfriar. E quando os jornais tratam do tema, as fontes são quase sempre “pessoas próximas ao presidente”, “a diplomacia brasileira”, “assessores de Lula”, “parlamentares da base de apoio”, etc.
Para saber o que os progressistas realmente pensam sobre a questão, é preciso descer alguns degraus e passear pela grande rede “vermelha” composta por sites, blogs e canais do YouTube. Nesse ambiente mais “alternativo”, dirigentes partidários, professores universitários, políticos atualmente sem mandato, jornalistas, influencers e militantes em geral se mostram à vontade para reiterar sua admiração por Maduro.
De forma geral, não há quem seja a favor de uma invasão militar à Guiana. Mas não porque se leve em conta as consequências da violência para o povo guianense – e, sim, por receio do envio de tropas norte-americanas à região. No fim das contas, tudo gira em torno dos Estados Unidos e da luta contra o “imperialismo”.
Em uma entrevista para o site Brasil 247, o ex-deputado, ex-presidente do PT e ex-presidiário José Genoino afirma: “Discutir o imperialismo inglês é um direito da Venezuela”. Ele ainda menciona, e condena, a presença na Guiana da empresa americana Exxon Mobil – “que explora de maneira única e monopolista o petróleo da região”.
A companhia de petróleo também é o alvo de um texto da revista Fórum. “Exxon Mobil: a pivô do conflito entre Venezuela e Guiana tem hálito de enxofre”, diz o título do artigo do jornalista Yuri Ferreira. Segundo ele, a “ficha corrida” da empresa é “um escândalo só” e inclui episódios de tortura e estupro.
A mesma Fórum ainda conseguiu fazer uma conexão improvável entre venezuelanos, guianenses, o guru Jim Jones e, acreditem se quiser, Jair Bolsonaro. No artigo “Essequibo, da crise de Guiana e Venezuela, foi palco de tragédia da seita de Jim Jones”, o jornalista e professor de Literatura Brasileira Henrique Rodrigues explica que “Às vezes comparado ao bolsonarismo, pelo delírio megalomaníaco e fidelidade doentia dos súditos, o movimento do líder maluco levou mais de 900 norte-americanos ao suicídio”.
Hospedado no portal UOL, o site Opera Mundi tem reproduzido declarações de integrantes do governo de Maduro e publicado textos pró-anexação. Um deles, intitulado “Duzentos anos de história: por que Essequibo é do povo venezuelano”, afirma que “um tribunal fraudulento montado pela Inglaterra e os EUA decidiu em 1899 que este território deveria passar para a antiga Guiana Britânica. Uma fraude histórica sobre a qual seus herdeiros da República Cooperativa da Guiana vêm se apoiando para não se sentar para negociar de forma pacífica com a Venezuela e acertar a devolução de Essequibo”.
Autor do texto (compartilhado por vários outros blogs de esquerda), o venezuelano Anisio Pires – cientista social formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e também colaborador do site oficial do PT – ainda diz: “As autoridades da Guiana vêm se subordinando desde 2015 a certos acordos colonialistas com a multinacional Exxon Mobil e a pactos pouco soberanos com o governo dos Estados Unidos, permitindo de maneira provocadora e perigosa incursões de tropas do Comando Sul dos EUA em seu território, ameaçando realizar também movimentos no território reclamado pela Venezuela”.
No jornal Brasil de Fato, Eduardo Vasco (identificado como “jornalista especializado em política internacional”) escreve que “ao reivindicar o Essequibo, a Venezuela defende também os interesses do Brasil”. Afinal, “se o conflito é entre Caracas e o imperialismo, a esquerda está absolutamente correta em apoiar Maduro”. Ainda segundo Vasco, “o governo de Nicolás Maduro tem evitado desde sempre uma solução bélica, preferindo a esfera diplomática para resolver o problema”.
Criador do Opera Mundi, o jornalista Breno Altman tem se notabilizado por seu apoio ao Hamas desde os ataques contra Israel em outubro do ano passado. Mas ele também dá seus pitacos sobre a atual tensão na América do Sul. Para ele, a Venezuela é a “vítima dessa história” e a Guiana se permite ser usada pelos americanos, que querem avançar econômica e militarmente sobre o continente.
Ao concluir um vídeo de 50 minutos sobre o tema, Altman dá um conselho para o presidente Lula: “Seria bom que ele botasse ordem em seu ministro da Defesa [José Múcio] e outros integrantes do governo, que parecem, gostosamente, estar a serviço dos interesses norte-americanos na América Sul, tratando a Venezuela como inimiga e a Guiana como a vítima de uma suposta, ou possível, agressão venezuelana”.
Para progressistas, a mídia estigmatiza a figura do ditador venezuelano
Bruno Altman ainda ataca a “imprensa de direita”, que apenas “repercute a posição da Casa Branca” e estigmatiza a posição de Nicolás Maduro, classificando-a como “intempestiva, belicosa e agressiva”.
Outra crítica da imprensa, a professora e sindicalista Elenira Vilela (que nesta semana virou notícia por dizer que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro “precisa ser destruída”) afirmou em uma live que “O motivo de tanto alarde em relação à forma como Maduro está tocando essa questão é porque a Venezuela faz parte do que a mídia hereditária e hegemônica chama de Eixo do Mal”.
Na revista Fórum, o geógrafo e escritor Francisco Fernandes Ladeira comenta: “Como sabemos, quando se fala em ‘noticiário internacional da grande imprensa’, também se fala em ‘manipulação pró-interesses imperialistas’. Quando se fala em Venezuela, em especial, temos mais manipulações ainda. Daí surgem todos aqueles clichês, maniqueísmos, tipificações e falsas narrativas: ‘o ditador Maduro’, ‘a ditadura bolivariana’, ‘populismo’, ‘venezuelanos estão comendo cachorros’, ‘um país em constante estado de caos’, ‘caudilho’, ‘chavismo é sinônimo de bolsonarismo’ e por aí vai”.
O tratamento dos jornais com relação à disputa também foi tema de uma série de posts de João Pedro Stédile, uma das principais lideranças do MST. “É impressionante o trabalho de desinformação e manipulação, com seu posicionamento abertamente a favor dos EUA diante do caso do Essequibo”, afirmou, no X/Twitter.
Em outro momento, Stédile diz: “O conflito agora é do povo da Venezuela em defesa de seu patrimônio contra interesses da empresa Exxon. Simples assim. Daqui a duas décadas, quando terminar o petróleo, eles aceitarão e vão dizer que, de fato, o território sempre foi venezuelano, desde a luta de Simón Bolívar”.
Motivação eleitoral de Maduro é encarada com naturalidade pelos esquerdistas
Para muitos analistas, a volta ao tema de Essequibo e o posterior referendo sobre a anexação não passa de um factoide criado por Nicolás Maduro para se cacifar de olho nas eleições presidenciais deste ano. Para a esquerda, no entanto, a manobra é normal, legítima, “faz parte do jogo”.
Em uma reportagem sobre o assunto publicada no Brasil de Fato, Rafael Araújo, professor de História da América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, acredita que Maduro conseguiu dois trunfos com a consulta pública. “Um deles é mobilizar as bases do PSUV, o partido governista, e unificá-lo para preparar as bases políticas e sociais que apoiam o presidente para a eleição do ano que vem. O outro é tirar o foco da reorganização das oposições para a eleição, visto que houve ampla mobilização do eleitorado venezuelano nas primárias oposicionistas”.
Para a geógrafa Iole Ilíada, que participou de uma live para discutir a anexação promovida pelo Opera Mundi, os governos bolivarianos nunca foram muito afeitos a essa pauta. E o referendo, segundo ela, foi uma forma de mobilizar a população e mostrar que Maduro está atento a isso. No mesmo debate, o historiador e youtuber Jones Manoel (candidato ao governo de Pernambuco pelo PCB em 2022), chamou a oposição venezuelana de “burra” por não apoiar o pleito.
Secretária-geral do Foro de São Paulo e membro da executiva nacional do PT, a psicóloga Mônica Valente fez pouco caso do oportunismo eleitoreiro do ditador. Em uma entrevista ao site da rede CNN, em que defendeu o direito da Venezuela de reivindicar o Essequibo, ela disse: “Talvez tenha ligação com a eleição, sim. Mas pode também ser pelo fato de a Guiana ter concedido licenças para exploração de petróleo na parte marítima, sobre a qual não há decisão nenhuma”.
Como se vê, o governo pode estar em silêncio, porém manda os seus recados por meio de terceiros.