A depressão moral e a desorientação intelectual que tomaram conta da França nos últimos vinte anos têm uma causa principal: não sabemos mais em que sistema político estamos vivendo. Mais precisamente, o regime em que vivemos não é mais aquele em que supomos viver. Supomos viver em uma democracia liberal, mas as instituições desse regime estão se esgotando e são incapazes de cumprir sua função. Em que regime estamos vivendo realmente?
O regime democrático-liberal baseia-se na combinação de dois princípios que devem estar intimamente ligados para que o regime funcione adequadamente, mas que são em si mesmos distintos e podem ser separados, exatamente como estamos vendo hoje na Europa e particularmente na França.
Primeiro princípio: o Estado é o guardião imparcial dos direitos dos cidadãos e membros da sociedade, protegendo a igual liberdade de todos e de cada um. Segundo princípio: o governo é representativo — representativo dos interesses e desejos de um povo historicamente constituído, representativo de seu modo de vida e de seu desejo de governar a si mesmo. Esses dois princípios estão ligados por um terceiro, o da soberania do povo.
Assim, no regime moderno, um povo histórico se governa soberanamente, com a condição de que a igualdade e a liberdade dos cidadãos sejam respeitadas na formação e aplicação da lei. O Estado é imparcial, mas partidos necessariamente parciais se alternam no governo. Essa alternância permite que as opiniões e os interesses que dividem o corpo cívico se sintam suficientemente representados pelas instituições governamentais. Esse sistema que permite as oposições mais ferozes é a raiz da maior estabilidade possível, porque permite uma troca moral e afetiva entre governantes e governados, entre de um lado a confiança dos governados, se não no partido que governa, pelo menos no sistema que organiza a mudança, e do outro o senso de responsabilidade daqueles que governam que sabem a quem devem prestar contas.
Hoje, essa troca moral e afetiva está praticamente congelada, pois a alternância de poder foi privada de sua virtude representativa e purgativa. A partir das décadas de 70 e 80, a direita e a esquerda abandonaram seus respectivos “povos” de referência — a direita, a nação; a esquerda, os “trabalhadores” — e o sistema representativo ficou vazio.
As chamadas direita e esquerda “governistas” se uniram em uma referência comum à “Europa”, mas o que parecia prometer uma política menos partidária levou, em vez disso, à desconfiança e até mesmo a uma espécie de secessão dos dois “povos” assim negligenciados.
A classe dirigente agora obtém sua legitimidade não de uma representatividade que lhe escapa, mas de sua adesão a “valores” que ela pretende inculcar nas populações recalcitrantes.
Dessa forma, permitiu-se que o governo representativo se atrofiasse, transferindo a maior parte da legitimidade política para o Estado produtor da norma imparcial. Para ser perfeitamente imparcial, para ser insuspeita, a norma acabará tendo que se desvincular totalmente do corpo político no qual o Estado estava enraizado e a cuja legitimidade sua própria legitimidade estava intimamente associada.
A despolitização do Estado
Vemos já aonde esse movimento está nos levando. Se a instituição do Estado está disposta e é capaz de garantir efetivamente a igualdade de direitos dos membros da sociedade, bem como a busca livre e sem distorções de seus interesses particulares, há realmente alguma necessidade de um governo representativo com essa troca moral e afetiva, sempre precária, entre governantes e governados, que mencionei? Por que o Estado garantidor de nossos direitos e interesses deveria estar intimamente e indissoluvelmente ligado ao corpo político histórico do nosso país?
A mudança na legitimidade que estamos testemunhando se deve ao fato de que um Estado ligado a um corpo político em particular sempre parecerá menos imparcial do que um Estado desvinculado de qualquer afiliação política. Somente a despolitização completa do Estado pode, então, garantir sua total imparcialidade.
De acordo com a nova legitimidade, o direito do “migrante climático”, por exemplo, prevalece sem qualquer contestação possível sobre o direito do corpo político, que tem apenas o seu “bem comum” para invocar — uma noção que é, na verdade, ininteligível hoje para o juiz, civil ou penal, que quer apenas julgar em nome da humanidade em geral, da humanidade sem fronteiras.
Assim, e tal é a imensa revolução da qual hoje somos testemunhas, ou melhor, os atores e as vítimas desse novo regime; é o corpo político do qual somos cidadãos que está na raiz de toda a injustiça por causa dessa preferência por si que ele não pode deixar de sentir e exercer. Esse ponto merece que o consideremos um pouco mais.
Para a opinião que nos governa, todo órgão político, toda república, é uma divisão arbitrária no tecido sem costura da humanidade. Que direito temos de nos separar da humanidade dessa forma? De declarar como “bem comum” aquilo que é, no máximo, o bem próprio de alguns, de um “nós”? Além disso, mesmo dentro de nossas fronteiras arbitrárias, “nós” exercemos um poder não menos arbitrário sobre todos os tipos de grupos — as “minorias” — aos quais impomos esse suposto “bem comum”.
O trabalho da justiça, portanto, é trazer à luz as minorias oprimidas, fazer com que seu clamor seja ouvido, tarefa indefinida, interminável, porque não podemos adivinhar hoje qual nova minoria oprimida virá à tona amanhã. Note-se que aqueles que clamam por um novo direito geralmente não apresentam nenhuma justificativa além de uma “igualdade” genérica, sem se preocupar em estabelecer se esse critério é aplicável ou relevante no contexto considerado.
Por que os novos direitos escapam da obrigação de se justificar? Por que essa recusa em argumentar? Simplesmente porque a deliberação, a troca de argumentos, pressupõe necessariamente uma sociedade constituída, uma conversação cívica, um modo de vida compartilhado, um mundo comum – em suma, tudo o que a reivindicação minoritária denuncia e rejeita como seu opressor, seu sufocador, seu carrasco. De fato, o debate pressupõe não uma concordância sobre verdades políticas, religiosas ou outras, mas pelo menos aquele mínimo de sentido compartilhado e de confiança que tornam a discussão possível, e que a reivindicação minoritária rejeita como a forma mais insidiosa de opressão da maioria.
As falsas promessas da Europa
O aspecto mais deletério desse movimento de duas vertentes que estou tentando delimitar é que, tanto interna quanto externamente, ele obedece a um princípio de ilimitação. Nunca teremos terminado de abolir as fronteiras, assim como nunca teremos terminado de emancipar as minorias. Nunca terminaremos de desconstruir o que o animal político construiu, de desfazer o que ele a muito custo ordenou, organizou.
Talvez nunca tivéssemos embarcado em uma aventura tão estéril se não tivéssemos acreditado que a remoção das fronteiras nacionais prometia uma “nova fronteira”, a “fronteira exterior” da Europa, ou que a remoção do “comum” nacional prometia o novo “comum” da União Europeia.
A prova de que essa promessa era ilusória é que a União Europeia é incapaz de pôr fim à sua “expansão”. No entanto, cada passo nessa direção significou um enfraquecimento político da Europa, tanto pelo aumento de sua heterogeneidade interna quanto pela diminuição de sua capacidade de se relacionar judiciosamente com o exterior. Essa compulsão pela expansão ignora o fato de que, quanto mais nos expandimos, mais entramos em contato com novos contextos e dificuldades inéditas, exigindo uma capacidade cada vez maior de deliberar, decidir e agir — algo que faltou à Europa desde o começo.
Portanto, a União Europeia, longe de substituir a fraqueza das nações que a compõem por sua força, está apenas confirmando e tornando irreversível o abandono da república representativa, que foi o regime no qual nossos países, a França particularmente, encontraram na era moderna essa aliança da força e da justiça que é a própria finalidade da existência política.
Pierre Manent é professor associado de filosofia em Toulouse (França), diretor de estudos da École des hautes études en sciences sociales desde 1992, hoje no Centro Raymond Aron de Pesquisa Política.
© 2024 La Nef. Publicado com permissão. Original em francês: “Sommes-nous en régime libéral ?”.
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