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O que era para ser uma semana decisiva e simbólica para o cinema norte-americano acabou se tornando o início de uma fase turbulenta, ainda sem previsão de calmaria. Com estreias internacionais praticamente simultâneas, os filmes ‘Oppenheimer’ e ‘Barbie’ vinham mobilizando o público nas redes sociais e tinham tudo para virar ícones da reocupação das salas de exibição após o período da pandemia. O fenômeno até ganhou o apelido de ‘Barbieheimer’ – uma brincadeira com suas propostas totalmente diferentes (a história do físico conhecido como o “pai da bomba atômica” enfrentando nas telas uma comédia protagonizada pela boneca mais popular do mundo).
As esperanças do setor, no entanto, foram por água abaixo com a greve convocada pelo sindicato que representa cerca de 160 mil atores de todo o país e exige, principalmente, a definição de um sistema de remuneração mais adequado à era do streaming. A interrupção das atividades, iniciada no último dia 13, inclui ensaios, gravações e aparições públicas para a divulgação de lançamentos. Com isso, até eventos como os festivais de Veneza e Toronto, além da edição anual do Emmy (a maior premiação voltada à televisão), correm o risco de não acontecer nas datas previstas.
Como os roteiristas também estão em greve desde maio, a indústria do cinema e da tevê se viu completamente paralisada pela primeira vez desde 1960, quando as duas categorias se uniram para exigir melhores condições de trabalho. Mas a nova crise vai bem além de questões salariais ou relacionadas às transformações no modelo de negócios de um mercado constantemente impactado pelo surgimento de novas tecnologias. Ela escancara o fato de que Hollywood esconde, por baixo de sua aparência progressista e politicamente correta, uma indústria marcada pela ganância e pelos erros estratégicos de seus executivos.
Para começo de conversa, a realidade está mostrando que o streaming não é um ramo tão lucrativo quanto parecia ser – especialmente para as companhias que já pegaram o bonde andando. De acordo com um relatório produzido pela empresa de consultoria e auditoria norte-americana Deloitte, esse mercado “gera apenas um sexto da receita por residência do que a gerada na era da tevê a cabo, que se aproximava dos ganhos do setor global de energia”. O estudo ainda conclui que “o público está fragmentado, é muito fácil cancelar assinaturas e a publicidade ainda não entrou no negócio como poderia. O conteúdo acabou ficando mais caro de se produzir e adquirir”.
A base da pirâmide
As preocupações do sindicato dos atores, o Screen Actors Guild – American Federation of Televison and Radio Artists (SAG-AFTRA), basicamente se concentram em dois eixos: aumento do pagamento de royalties para aparições em plataformas de streaming e controle do uso da inteligência artificial no que diz respeito à imagem dos artistas. O primeiro é o mais urgente, pois trata de mudanças já ocorridas no sistema de exibição e produção de séries e filmes.
Enquanto os contratos tradicionais normalmente são baseados no sucesso comercial dos projetos – e, portanto, envolvem valores variáveis –, a remuneração oferecida por serviços como Netflix e Amazon é sempre fixa. E, ao contrário dos programas da televisão tradicional, os seriados do streaming costumam ter poucos episódios e podem demorar anos para ganhar uma nova temporada. À primeira vista, esse contexto apenas torna os grandes astros um pouco menos ricos, porém ele afeta seriamente a vida do restante da classe, que não pode se dar ao luxo de ficar sem trabalhar.
Presidente do SAG-AFTRA, a atriz Fran Drescher (famosa por protagonizar nos anos 1990 a sitcom ‘The Nanny’) tem chamado a atenção justamente para a situação dessa parcela quase anônima da categoria. “Quando fiz o programa, há 30 anos, todo mundo embarcava no trem do dinheiro. Hoje, 99% dos atores têm dificuldade para viver com os salários que são pagos”, afirma.
Drescher também se tornou uma das poucas vozes de Hollywood com coragem para apontar as distorções entre os ganhos da base e do topo da pirâmide. “Sete, oito dígitos... É um dinheiro louco que eles [os executivos dos estúdios] ganham. E não se importam de agir como barões de terras medievais”, acusa a comediante – ao mesmo tempo em que astros progressistas como Mark Ruffalo preferem sugerir saídas pseudorrevolucionárias na linha “Vamos tomar os meios de produção e fazer nossos próprios filmes”.
Frans Drescher (uma democrata que já foi nomeada “enviada diplomática para questões de saúde feminina” pelo governo do republicano George W. Bush) está somente querendo mostrar que, se um modelo de negócios está passando por reajustes, todos os envolvidos devem se adequar. Não é o que acontece com empresas como Netflix e Warner Bros./Discovery, só para citar dois exemplos.
A primeira perdeu cerca de 1 milhão de assinantes do ano passado para cá, enquanto a segunda ainda não conseguiu lucrar com o próprio serviço de streaming. Ambas cortaram bilhões de dólares de seus orçamentos, demitiram milhares de colaboradores, cancelaram programas e frearam novos projetos. No entanto, os CEOs da Netflix, Reed Hastings e Ted Sarandos, ganharam cerca de US$ 50 milhões em 2022 (o equivalente a R$ 240 milhões, cada um). E David Zaslav, chefão da Warner, faturou, sozinho, US$ 39 milhões (R$ 187 milhões na cotação atual).
Esse tipo de deturpação faz parte do jogo do capitalismo? Sim. Mas não deixa de ser interessante observar uma indústria que se orgulha de defender os oprimidos e marginalizados expor os próprios podres e sua falta de empatia (para usar um termo da moda woke).
Um novo Reagan
Na segunda-feira (17), a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP, Aliança dos Produtores de Filmes e Televisão), representante da Netflix e dos grandes estúdios, emitiu um comunicado afirmando que os grevistas estão “descaracterizando as negociações”. O texto ainda revela que o SAG-AFTRA recusou, em 12 de julho, um acordo no valor de US$ 1 bilhão englobando aumento de salários e royalties, planos de saúde e seguros, entre outras formas de proteção.
Isso explica a declaração, no estilo “lenha na fogueira”, dada pelo CEO da Disney, Bob Iger, à revista ‘Variety’, dois dias depois da reunião fracassada – e que muita gente encarou como provocação gratuita. “Eles [os grevistas] possuem um nível de expectativas que não é realista. Eles estão aumentando os desafios que a nossa indústria já enfrenta, o que é, francamente, perturbador”, disse o executivo.
Diante desse impasse, há quem venha torcendo pelo surgimento de um novo Ronald Reagan para apaziguar os ânimos. É que o ex-presidente, apesar de entrar para a História como um republicano linha dura e ultraliberal, também foi um hábil representante sindical dos atores antes de ingressar para valer na política partidária.
Ele estava em seu sexto mandato à frente do Screen Actors Guild quando a categoria iniciou a grande greve, junto com os roteiristas, de 1960. Na época, a popularização da televisão representava uma “ameaça” para os artistas semelhante a dos serviços de streaming atualmente.
Sempre polêmico, Reagan desagradou parte de seus colegas por não conseguir os royalties exigidos pelas participações em filmes antigos reprisados na tevê, porém obteve sucesso nas negociações sobre pensões e planos de saúde – conquistando na assembleia do sindicato os votos da maioria, ou seja, dos atores menos conhecidos (os mesmos citados por Fran Drescher em seus discursos).
"Perpetuidade"
Por fim, há o temor dos grevistas com relação ao uso desmedido da inteligência artificial em filmes e séries. Cada vez mais realistas, as sequências forjadas digitalmente podem recriar um artista morto ou replicar um figurante quantas vezes for necessário, entre muitas outras possibilidades capazes de cortar custos para os estúdios. É um processo irreversível, e a categoria também quer ser remunerada por esse tipo de aparição.
Aliás, uma produção que mistura animação e atores lançada dez anos atrás ilustra bem essa preocupação. No longa ‘O Congresso Futurista’ (disponível na plataforma Prime Video), uma atriz em dificuldades financeiras (vivida por Robin Wright) aceita a proposta de ter sua imagem escaneada e utilizada para sempre por uma empresa. Como se trata de uma trama distópica, as consequências dessa decisão são catastróficas.
Astros consagrados já assinam contratos preservando sua imagem após a morte. Samuel L. Jackson, por exemplo, afirmou em uma entrevista recente para a revista ‘Rolling Stone’ que se preocupa com isso há alguns anos. “Quando leio um contrato e vejo palavras como ‘perpetuidade’, risco aquela m* na hora”, disse, do seu jeitão característico. Mas, mais uma vez, esse é o tipo de conforto de que os atores anônimos, sobre os quais nunca ouviremos falar, não dispõem.