Na edição do Prêmio Nobel da Paz de 2018, dois protagonistas da luta contra o fim da violência sexual foram os agraciados. Denis Mukwege, um ginecologista congolês que tratou milhares de vítimas de estupro coletivo em um hospital na República Democrática do Congo, e Nadia Muradi, ex-escrava sexual do Estado Islâmico que se tornou uma ativista no combate à escravidão sexual. Abaixo, uma matéria que a Gazeta do Povo publicou em 2017 sobre o relato de Nadia.
Militantes do Estado Islâmico (ISIS, na sigla em inglês) perderam o último de seus redutos em setembro de 2017, mas para a sobrevivente yazidi Nadia Murad, uma nova batalha estava apenas começando.
Três anos após escapar das milícias no norte do Iraque, Murad publicou um pungente livro de memórias, “The Last Girl” (“A última garota”, sem edição em português), sobre as provações sofridas enquanto escrava sexual.
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O inquietante relato pessoal de Murad faz parte do seu esforço, representada pela advogada de direitos humanos Amal Clooney, de levar os membros do Estado Islâmico à justiça por crimes de guerra e genocídio contra o povo yazidi.
“Isso não é algo que eu escolhi”, disse Murad, 24 anos, em uma entrevista no lounge de um elegante hotel londrino. “Alguém tinha que contar essas histórias. Não é fácil.”
Quando o ISIS venceu no norte do Iraque em 2014, milhares de yazidis foram mortos e outros milhares sequestrados, incluindo mulheres e meninas que foram levadas como escravas sexuais. Oficiais da ONU afirmaram que a violência cometida contra a seita minoritária se constitui em genocídio e o Conselho de Segurança da ONU criou uma força-tarefa para coletar evidências de tais atrocidades no Iraque.
Nadia Murad tornou-se a primeira Embaixadora da Boa Vontade da ONU para sobreviventes de tráfico humano, em 2016, e tem expressado sua preocupação com as milhares de mulheres e meninas yazidi que podem ainda ser prisioneiras e com as sobreviventes que ela espera que sejam levadas dos campos e realocadas.
“O objetivo deste livro é assegurar que todo mundo saiba o que aconteceu com os yazidi e como eles sofreram”, disse Murad. “Há outros sobreviventes que sonham um dia poder testemunhar sobre o que o ISIS fez a eles. Nossas histórias podem fazer a diferença.”
‘Capturadas’
Quando a guerra começou, Murad era uma estudante levando uma vida tranquila no vilarejo de Kocho, no norte do Iraque.
“Todos eram pobres”, ela disse. “Nós estávamos satisfeitos com uma vida que era simples e humilde. Éramos pessoas pacíficas e abertas.”
As milícias chegaram em Kocho em agosto de 2014 e ordenaram que todos fossem para o prédio da escola. Os homens foram forçados a sair e sons de tiros logo foram ouvidos. Uma quantidade numerosa de homens foi morta, incluindo seis irmãos de Murad.
Murad foi colocada em um ônibus com outras mulheres, parentes e vizinhas e os militantes do ISIS começaram a apalpá-las. Um deles colocou a mão embaixo da blusa de Murad e tentou fazer “coisas que acontecem entre casais quando eles se casam”. Atiradores do ISIS levaram a mãe de Murad para ser morta. Eles atearam fogo em uma idosa.
Murad e as outras jovens foram levadas para a casa de uma família rica na cidade de Mosul, onde multidões de homens as agarravam.
Um homem apagou um cigarro na barriga de Murad. Outro escolheu três mulheres, pagando por elas em dólares. O resto delas foi oferecida em um caótico mercado de escravas e Murad foi carregada pelo primeiro de seus carrascos.
“Eu coloquei os detalhes no livro para que eu não tenha que contar a história todas as vezes”, disse ela, entristecida.
Fuga
As lideranças do Estado Islâmico criaram uma lógica “religiosa” para justificar o abuso sexual das mulheres yazidi e de meninas de até 9 anos de idade. Algumas das yazidi cometeram suicídio. Murad sofreu estupro coletivo como punição por tentar fugir.
“O que me deu força foram as centenas, se não milhares, de jovens prisioneiras”, disse. “Eu dizia para mim mesma, nós somos capazes de sobreviver a isso.”
Um dia um atirador do ISIS a deixou sozinha em uma casa e Murad encontrou uma porta destrancada. Ela saiu para o pátio, escalou uma parede e caiu, aterrorizada, em uma rua vazia.
“Não era uma questão de coragem”, disse. “Você tem medo de ser morta, ou torturada. Tudo o que você pensa é como sobreviver.”
Murad caminhou pelas ruas escuras de Mosul com seu rosto coberto por um longo véu. Ela bateu na porta de uma casa e implorou para que a ajudassem.
A família que morava na casa a deixou entrar e em um dado momento conseguiu levá-la escondida para fora do território do ISIS, identificando-a como a esposa de um dos homens. Assim que chegaram à última parada, ela viu uma foto sua em um flyer que continha fugitivas procuradas.
Ela então dirigiu-se a um campo de refugiados e foi aceita como refugiada na Alemanha, em 2015. Murad hoje vive com sua irmã, viúva de guerra, em um apartamento em Stuttgart.
Ela ainda é assombrada pela falha do povo de Mosul em ajudar mais as mulheres yazidi.
“Havia 2 milhões de civis em Mosul e 2 mil jovens prisioneiras lá”, disse. “Havia milhares de famílias em Mosul que poderiam ter ajudado outras moças, mas eles não o fizeram. As mulheres tinham de usar véus em Mosul. Teria sido fácil levar as yazidi escondidas para fora dali.”
Muitos daqueles que, de fato, ajudaram as yazidi exigiram milhares de dólares – a família da cunhada de Murad pagou 20 mil dólares para deixá-la em segurança.
No verão passado, Murad retornou à sua cidade natal para uma acolhida e lágrimas escorreram de sua face quando ela entrou na agora destruída casa da família.
“Nós esperávamos que o nosso destino fosse o mesmo dos homens e que nós seríamos mortas, mas, ao invés disso, europeus, sauditas, tunisianos e outros militantes vieram, nos estupraram e nos venderam”, contou em um discurso improvisado que foi gravado por repórteres.
Murad espera que um dia ela olhe “nos olhos dos homens que me estupraram e veja eles levados à justiça”, e seja “a última garota com uma história como a minha.”
Ela tem ainda uma outra ambição: quer se tornar maquiadora e cabeleireira, ou até abrir o seu próprio salão – um lugar que tradicionalmente serve como local de refúgio para as mulheres.
“Talvez as pessoas lembrem de mim por ser uma cabeleireira, não uma sobrevivente” do ISIS, ela disse. “Eles esquecerão disso”.
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