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Uma aparente fraude pode ter resultado no desperdício de milhões de dólares de financiamento público destinados às pesquisas sobre o Alzheimer, atrasando a descoberta da cura da doença. Investigações conduzidas pelo médico neurocientista Matthew Schrag, da Universidade Vanderbilt, no estado americano do Tennessee, e pela revista Science apontaram sinais de imagens adulteradas ou duplicadas em dezenas de artigos científicos, alguns deles importantes para a aprovação do medicamento Simufilam, da farmacêutica Cassava Sciences.
A doença de Alzheimer, um tipo de neurodegeneração que afeta principalmente a memória dos idosos, ainda é incurável. Diferentes intervenções que reduzam o risco já foram propostas: de tomar café a fazer palavras cruzadas e tomar uma dose anual da vacina para gripe. Há também um componente genético. Quando teve o seu genoma sequenciado em 2007, o codescobridor da estrutura do DNA James Watson não quis saber se carregava variantes genéticas de predisposição para a doença, pois “não há muito o que possamos fazer”.
Uma das bases genéticas propostas para o Alzheimer envolve a proteína beta-amiloide, que se acumula em placas nos neurônios, prejudicando sua função. Diferentes tentativas de desenvolver drogas com base nessa hipótese fracassaram. Com o Simufilam veio algo novo: aparente fraude.
Schrag foi contratado por um cachê de 18 mil dólares como investigador pelo advogado de dois outros neurocientistas interessados na falência da Cassava Sciences, segundo reportagem da revista Science. Schrag analisou a literatura científica e encontrou sinais de imagens adulteradas ou duplicadas em dezenas de artigos, incluindo aqueles dos quais a aprovação da droga depende. O relatório da investigação foi enviado às principais agências de fomento de pesquisa dos Estados Unidos.
Um dos artigos impugnados pela investigação de Schrag é um estudo publicado na revista Nature em 2006 citado por mais de dois mil outros estudos, segundo o próprio periódico, que acrescentou uma nota de preocupação à publicação. O primeiro autor é Sylvain Lesné, da Universidade de Minnesota. O artigo relata a descoberta de um subtipo da beta-amiloide que causaria demência similar ao Alzheimer em roedores. O ano de publicação marcava cem anos desde que o próprio neuropatologista alemão Alois Alzheimer, que dá nome à doença, observou as placas de proteína no cérebro de um paciente vítima de demência. Que as placas de beta-amiloide realmente estão nos pacientes, há poucas dúvidas. A questão premente é se são causa ou consequência da degeneração.
Fabricações “chocantemente óbvias”
O cientista detetive evita a palavra fraude pois não tem acesso a possíveis imagens originais não publicadas, mas aponta que há sinais indicativos de problemas. A Science conduziu uma investigação própria de seis meses que corroborou os achados de Schrag e encontrou motivos para duvidar de mais de 70 imagens nos estudos de Lesné, entre outros. Lesné não respondeu ao contato da revista. Em maio deste ano, ele obteve a aprovação de uma verba de pesquisa do governo americano de mais de US$760 mil com validade de cinco anos. Um responsável pela aprovação da verba foi coautor do estudo de 2006.
Elisabeth Bisk, bióloga molecular e consultora em análise forense de imagens, disse à revista científica que “os resultados experimentais obtidos podem não ter sido os desejados, e os dados podem ter sido adulterados para se encaixar melhor numa hipótese”. Para ela, há figuras que parecem montagens feitas a partir de imagens de diferentes experimentos. Algumas são fabricações “chocantemente óbvias”, comentou a especialista em Alzheimer Donna Wilcock, da Universidade de Kentucky.
As imagens são, na maior parte, fotos de resultados do teste conhecido como “Western blot”, que mostra as proteínas como bandas em blocos de gel. Por mais cuidado que se tenha na manipulação, é raríssimo que duas bandas fiquem com formatos ou imperfeições iguais, o que seria indício de manipulação. Nos estudos de Lesné, há fileiras inteiras de bandas idênticas.
Se as suspeitas forem confirmadas, são dezenas a centenas de milhões de dólares em financiamento público de pesquisa desperdiçados. Somente em 2021, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA investiram 287 milhões em pesquisas que mencionam a beta-amiloide e o Alzheimer. Cientistas que propõem hipóteses diferentes para explicar a doença de Alzheimer reclamam de uma “máfia da amiloide” que dificulta seu acesso a recursos e forma cartéis no principal processo decisório da publicação de artigos — a revisão por pares.
Alguns, como John Forsayeth, professor de neurocirurgia da Universidade da Califórnia, comparam a hipótese da beta-amiloide a modelos ptolomaicos do sistema solar que punham a Terra no centro. Quando enfrentavam problemas na ideia de que os planetas giram em órbitas circulares em torno da Terra, os astrônomos ptolomaicos, em vez de abandoná-la, propunham que as órbitas não pareciam à primeira vista com círculos porque eram círculos sobre círculos, ou “epiciclos”. Grande esforço para não mudar de ideia — como quem adultera fotos de proteínas para defender uma hipótese favorita sobre a doença de Alzheimer.
Karen Ashe, uma médica neurocientista colaboradora de Lesné e coautora do estudo de 2006, é reticente a rebater completamente os problemas achados por Schrag, mas foi a um fórum online onde Schrag encontrou os primeiros indícios para dar explicações alternativas. Ela forneceu algumas imagens originais em maior resolução. Mas as imagens só aumentaram as suspeitas de Schrag, dando mais detalhe das bandas copiadas.
Outro coator de Lesné é Denis Vivien, biólogo
celular da Universidade de Caen na Normandia, em cinco dos artigos suspeitos.
Vivien crê que os artigos sobreviverão ao escrutínio, mas confessa que já
desconfiava do colega. Quando estavam trabalhando para um artigo que seria
publicado na revista Nature Neuroscience, Vivien achou algumas fotos
preparadas por Lesné suspeitas e pediu a estudantes que refizessem o
experimento. Os estudantes falharam em replicar o resultado. Confrontado, Lesné
negou que havia algo errado. Vivien diz que removeu o artigo da esteira da
publicação “para preservar minha integridade científica” e rompeu contato com o
colaborador.
Apesar de ser
relutante em afirmar certeza de fraude, Matthew Schrag medita: “Você pode
trapacear para publicar um artigo. Pode trapacear para conseguir uma verba.
[Mas] não pode trapacear para curar uma doença. A biologia não se importa”. Ele
acredita que a beta-amiloide ainda pode ter algo a ver com as causas do
Alzheimer. Mas as fundações estão abaladas.
Sobre as reclamações contra a “máfia da amiloide”, o psicólogo britânico Stuart Ritchie comenta em seu livro de 2020 Science Fictions (“Ficções Científicas”, em tradução livre) que “as histórias de bullying e intimidação que acontecem quando os pesquisadores desafiam a hipótese amiloide sugerem uma área na qual o viés se tornou coletivo, onde novas ideias não alcançam a vez que merecem, e onde os cientistas rotineiramente falham em aplicar a norma do ceticismo organizado às suas próprias teorias favorecidas”.