Sempre falo da importância de estudar as origens da civilização ocidental, a fim de evitar a defesa de ideias sem o conhecimento de suas origens. É atroz que alguém enuncie frases como se o fizesse pela primeira vez, quando séculos atrás estas já foram escritas, sob formas mais inteligentes, ou mesmo refutadas por obras clássicas. Já escrevi aqui sobre Tales de Mileto, que trata da unidade do cosmos, com o propósito de que ninguém se sinta um pequeno fragmento do mundo, sem participação na totalidade. Eis agora o momento de apresentar o seu sucessor, Anaximandro de Mileto.
Em primeiro lugar, a sua atividade intelectual tem forte vínculo com a vida. O que afirmo para afastar a imaginação de que os filósofos nutrem ideias distantes da realidade, ou são incapazes de fazer ciência. As realizações de Anaximandro mostram o contrário. Ele é responsável por introduzir, no mundo grego, o gnômon babilônico, instrumento de difícil nome, mas de simples entendimento; trata-se da parte do relógio solar que projeta sombras, o primeiro instrumento utilizado para marcar as horas. E o seu empreendimento de matematização do tempo está alinhado à geometrização do espaço. Com efeito, Anaximandro é o primeiro grego a esboçar um mapa geográfico, delineando os caminhos para chegar a novas culturas.
Arché
Curiosamente, tais realizações práticas não o afastam de questões teoréticas. Como faz parte da natureza humana questionar: “Quem sou eu? De onde vim? Qual é o sentido da minha vida?”, Anaximandro pergunta pelo princípio e fim de todas as coisas, que os gregos chamam de “arché”. Neste sentido, a sua busca é idêntica à do mestre, mas a resposta que encontra é diferente; o discípulo não está à procura de um elemento particular, senão que diferencia o princípio do principiado. Ele reconhece que todos os entes estão marcados por geração e corrupção, nascimento e morte, divisão e limite; somente o Princípio é ilimitado e indeterminado, eterno e ingênito, imortal e divino.
Assim, a “arché” de Anaximandro não pode ser nem a água (união entre frieza e umidade), nem a terra (frieza e secura), nem o ar (calor e umidade), nem o fogo (calor e secura). Nenhum elemento pode dar origem aos demais, pois uns estão em guerra contra os outros: calor e frieza não se unem, tampouco umidade e secura.
Como poderiam, se o quente está naquilo que se expande, enquanto o frio no que se recolhe? E a umidade está naquilo que se adapta, enquanto a secura no que resiste? Em exemplos concretos, uma pedra, que representa a terra, é fria e seca, então fica recolhida e resiste no seu espaço, incapaz de se transformar em outra forma, ou de ser facilmente penetrada; enquanto a água do rio adequa-se à forma do espaço que ocupa, e pode ser facilmente atravessada.
Apeiron
Com efeito, o fogo, a água, a terra e o ar estão limitados a ser o que são, de modo que não podem ser outra coisa, tampouco simbolizar a totalidade. Ao dar-se conta disso, Anaximandro indica que o Princípio deve ser um Infinito (Apeiron) metafísico, considerado em sua relação com a Possibilidade universal. É algo a que se chega através da própria etimologia da palavra: o Infinito é o que não tem absolutamente nenhum limite, nem de número nem de espaço nem de tempo.
Portanto, os elementos, as entidades particulares são tão distintas deste “Apeiron”, que, quando pensa nelas, o filósofo afirma: “De onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade, pois têm de pagar penitência e de ser julgadas por suas injustiças, conforme a ordem do Tempo.”
Este é o fragmento mais famoso de Anaximandro. O que vocês conseguem pensar a respeito dele?
Experiência existencial
Eu sugiro que leiam de novo, fazendo um exercício de interpretação, antes de seguir com a leitura da minha. Pois a filosofia consiste em converter experiências existenciais em abstrações teóricas e vice-versa. A primeira conversão foi realizada no momento em que Anaximandro enunciou as suas palavras, que partiram de uma experiência concreta e foram convertidas em uma abstração.
Agora a nossa tarefa é a inversa, a saber: converter a abstração de volta em uma experiência existencial, possivelmente a nossa experiência com o nascimento, o perecimento, a justiça e o tempo. Se isto não for feito e o leitor permanecer num mundo conceitual, ele não raciocinará sobre a realidade, e, em última instância, nada compreenderá.
Feito isso, podemos interpretar o fragmento junto à tradição, considerando que muitos leram a sentença de Anaximandro sob forma pessimista. Eles identificaram o nascimento como uma espécie de injustiça cósmica, cuja expiação só pode acontecer com a morte. É que o ato de individuação da existência implica no confronto ontológico, ou na preeminência de uns contrários sobre os outros.
Em termos concretos, a existência do fogo guerreia contra a água, como o ser humano luta contra o animal. Enquanto isto rompe o equilíbrio do cosmos, o Tempo tem o poder reparador, através da morte, de reintegrar as oposições. Contudo, há também uma forma otimista de ler o fragmento. Por esta via, a injustiça cósmica é o próprio ato de separação do Uno originário, restaurado com a morte, após as criaturas pagarem penitência por suas injustiças particulares.
Seja como for, Anaximandro traz uma novidade à cultura grega, uma ascensão que deixa de conceber o Infinito como uma ideia negativa. Antes, ele era colocado longe da ciência, por ser impensável, ilimitado, indefinido. Agora, com Anaximandro, o Infinito aparece como fonte inesgotável de vida e matéria substancial da filosofia.
*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia
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