As pesquisas não param de comprovar: animais são muito mais parecidos conosco do que podemos imaginar. Elefantes se reconhecem no espelho, sinal de que sabem que são indivíduos únicos. Golfinhos dão a si e aos outros membros do grupo nomes próprios. Vacas sentem dor e prazer. Abelhas sofrem depressão. Polvos desenvolvem atividades repetitivas com o objetivo de desenvolver habilidades – costumamos chamar isso de brincar e achávamos que só nós tínhamos essa habilidade.
Papagaios apresentam estágios do sono semelhantes aos nossos e são inclusive capazes de sonhar. Orangotangos se expressam com “eu não sei”, prova de que são capazes de raciocinar sobre o que conhecem e o que não conhecem. Diante de todas essas constatações apontadas pela ciência, reforçadas por séculos de debates filosóficos, a religião retoma a pergunta: Será que todas essas espécies têm alma?
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As evidências sobre a intensa vida cognitiva de nossos colegas de planeta vêm se somando em um ritmo tão acelerado que, em 2012, um grupo de cientistas de referência em suas áreas (principalmente biologia, psicologia e neurociência) que participava de uma conferência na Universidade Cambridge publicou o manifesto “The Cambridge Declaration on Consciousness” (“A Declaração de Cambridge sobre Consciência”).
Polêmica neurocientífica
O grupo de 26 cientistas afirma: “A ausência de neocórtex não parece ser garantia de que um organismo vivo não experimente estados afetivos. Evidências convergentes apontam que animais não humanos têm substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos, que se somam à capacidade de exibir comportamentos intencionais.” A respeito da expressão “animais não humanos”, é uma construção que ajuda a lembrar que, afinal, também somos animais.
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Os pesquisadores tocam num ponto sensível: o neocórtex cerebral. Nós temos, os mamíferos também, talvez as aves (há indícios, porém não provas), mas não os demais animais. Não é um órgão qualquer. Desenvolvido muito recentemente em termos evolutivos, ele nos habilita a desenvolver nossa linguagem tão complexa. É, principalmente, onde está alojada nossa consciência de nós mesmos e do mundo.
Ou seja: nós somos capazes de experimentar o medo, mas um peixe, por exemplo, simplesmente apresentaria uma reação instintiva de sobrevivência. O grupo do manifesto chama a atenção para um ponto: essa visão, a de que o neocórtex sozinho é quem garante a sensibilidade, vem sendo severamente questionada nos últimos anos. Os novos estudos indicam que a consciência está dispersa por várias áreas do cérebro.
“No mínimo, é muito mais provável do que improvável que todos os mamíferos, as aves, os polvos, os peixes e muitas outras criaturas são conscientes a ponto de serem conscientes e sentir dor”, afirma o autor do manifesto, o neurocientista Philip Low, pesquisador da Universidade Stanford e do MIT(Massachusets Institute of Technology)”
E a alma?
As constatações dessas pesquisas indicam que, enquanto buscamos vida inteligente em outros planetas, estamos cercados de seres muito mais habilidosos em termos cognitivos do que éramos capazes de supor. Mas daí a afirmar que animais têm alma?
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Antes de mais nada, é preciso definir alma: em poucas palavras, e de acordo com a visão mais aceita pelas maiores religiões, é a essência incorpórea que está na essência de todas as pessoas. As religiões e a filosofia têm explicações para ela. A ciência também, desde que se considere que alma e consciência podem ser consideradas bastante semelhantes. “Não tenho motivo algum para duvidar que animais tenham alma”, afirma Marc Bekoff, professor emérito de Ecologia e Biologia Evolucionária na Universidade do Colorado.
Diferentes pontos de vista sobre o mesmo tema
As principais religiões monoteístas acreditam na existência de uma alma, a essência incorpórea que habita o corpo físico e mortal. Mas a visão sobre a alma dos animais varia, de pensador para pensador, até mesmo dentro das próprias instituições - tanto é que o papa Paulo VI disse nos anos 1970 que os animais vão para o céu, sendo que um de seus sucessores, Bento XVI, afirmou que eles têm alma mortal.
Cristianismo: Foi o teólogo Tomás de Aquino que cravou a interpretação usada por Bento XVI: a de que animais têm uma alma que desaparece junto com o corpo falecido. Apenas humanos, criados à imagem de Deus, teriam almas imortais. Mas o debate se mantém. Os mórmons e os anglicanos, por exemplo, insistem que todos os animais vão para o céu.
Islamismo: Chamada Rûh, a alma imortal dos humanos será testada por Alá no dia do Juízo Final. As aprovadas vão para o céu, e as reprovadas seguem para o inferno. Só não fica claro se os animais também serão avaliados, já que o Islã acredita que eles também têm almas imortais. Além disso, a religião acredita que as pessoas que vão para o céu poderão pedir o que quiserem. E se o morto pedir para ficar com seu animal de estimação? Em tese, ele seria atendido.
Judaísmo: Identifica a alma como o sopro da vida concedido por Deus a Adão, mas considera que os animais também receberam esse sopro – logo, têm espírito, e ele é imortal como o nosso. A presença de alma ajuda a explicar, por exemplo, a proibição de se alimentar do sangue de aves e mamíferos (é no sangue que ficaria a essência de cada indivíduo). Mas a religião não deixa claro nem mesmo se existem céu e inferno. Nem esclarece o que acontece com as almas dos bichos depois que eles morrem.
Filosofia
Definições de alma, a relação entre alma e consciência, definições de consciência, diferenças entre o espírito dos humanos em relação ao dos animais... Pensadores debatem essas questões há dezenas de séculos. Aristóteles, por exemplo, propôs no século 4 a.C. a existência de uma alma vegetativa em plantas, uma alma sensitiva em animais e uma alma racional em humanos. Mas foi Descartes quem, no século 17, mais influenciou o pensamento do Ocidente sobre o assunto.
O filósofo francês definiu que apenas seres humanos tinham consciência – logo, alma. Os demais seres vivos seriam autômatos. “Descartes defendeu um raciocínio preconceituoso, não científico”, afirma Philip Low.
Michael Jawer, pesquisador sediado em Washington e coautor de “The Spiritual Anatomy of Emotion”, escreveu um artigo para a revista eletrônica Aeon em que defende uma tese coerente com o pensamento contemporâneo: a de que animais têm, sim, alma, tanto quanto nós. “Se os seres humanos têm almas, é porque são mais motivados pela senciência do que por consciência.” Em tempo: senciência é a capacidade de sentir o mundo à volta e reagir a seus estímulos.
“Como apontava em 1970 o psicanalista Alexander Lowen”, Jawer continua, “‘A alma de um homem está em seu corpo. Através de seu corpo a pessoa faz parte da vida e da natureza. Se estamos identificados com nossos corpos, temos almas e nossos corpos estão identificados com toda a criação’. E também existem entre animais não humanos extraordinários exemplos de identificação com a natureza”.
E é a senciência dos animais que tem atraído muitos dos pensadores mais influentes da atualidade. “Para mim é irrelevante se animais têm consciência parecida com a nossa”, afirma o professor de veterinária da Universidade de Bristol John Webster, autor de “Animal Welfare: A Cool Eye towards Eden”. Os animais com senciência não vivem apenas o presente. Eles não experimentam apenas formas primitivas de sofrimento, como fome e sede, mas também as sensações mais complexas, como o desespero.”
Ciência
Não é de hoje que os pesquisadores se debruçam sobre a inteligência, a psicologia e a consciência dos animais. Em 1872, Charles Darwin fundou um campo de estudos inteiro, a etologia, que estuda o comportamento animal. Fez isso publicando um único livro, chamado “A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais”. A noção de que nossos colegas de planeta tinham sentimentos e uma vida interior rica era muito comum na época. Na década de 1970, os estudos com primatas promoveram um novo salto na área: estava cada vez mais claro que nossos primos eram muitíssimo semelhantes a nós.
Desde então, o que se vê são estudos de caso e observações que ampliam o leque de animais parecidos conosco. Até mesmo invertebrados, como os polvos, entraram na lista dos seres extremamente inteligentes e sensíveis. “Tudo indica que a consciência dos animais é muito semelhante à nossa em termos de dar atenção ao ambiente e às relações sociais”, aponta o professor Marc Bekoff. “Algumas espécies podem também ser conscientes a respeito de seus próprios corpos, a respeito de sua existência como seres individuais.”
Espécies diferentes têm diferentes graus de consciência, assim como evoluíram seus órgãos de diferentes maneiras.
“A consciência e a habilidade para planejar podem ter evoluído inicialmente para favorecer a tomada de decisões com foco na recompensa de longo prazo e para minimizar o sofrimento de curto prazo”, afirma Philip Low.
Para Marc Bekoff, com ou sem alma, os animais merecem mais respeito da nossa parte. “Se animais têm consciência tanto quanto nós, nós deveríamos tratá-los com mais compaixão e respeito. Não deveríamos matá-los, vestir suas peles, comer suas carnes, fazer pesquisas prejudiciais a eles.
Frango indigesto
A declaração de Cambridge alcançou o objetivo de chamar a atenção para uma mudança radical na maneira como a ciência entende a psicologia e a neurofisiologia dos animais não humanos. O governo da Índia, por exemplo, levou o assunto a sério e, em 2013, declarou que considera os golfinhos e as baleias como “pessoas não-humanas”.
Philip Low lembra que, depois da divulgação do texto, um dos assessores do então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, o convidou para almoçar nos arredores da Casa Branca. “Ele me perguntou por que o presidente deveria se interessar pelo assunto”, Low conta.
A resposta foi: “Imagine que estamos em novembro de 1938, na Alemanha, e você trabalha para o governo e tem nas mãos um documento assinado pelos líderes da pesquisa com anatomia do país. Este documento rejeita a noção ridícula de que os judeus são inferiores. Sendo que não existe nenhuma evidência disso, por que deveríamos tratá-los como se fossem inferiores?”.
A argumentação de Low continuou: “Agora, eu tenho em mãos um documento, a Declaração de Cambridge, assinado pelos líderes da neurociência de nossa época, dizendo que não existe nenhuma evidência de que não-humanos não são conscientes. Como podemos continuar tratar os demais animais como inferiores?”. O assessor ouviu em silêncio, parou de comer sua quesadilla de frango e pediu a conta.
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