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Apesar dos esforços de Pequim, o #MeToo chega à China

A tenista chinesa Peng Shuai
Caso da tenista Peng Shuai mostra que a China está bem distante de ser a "sociedade exemplar" apregoada pelo ditador vitalício Xi Jinping. (Foto: Francis Malasig/EFE/EPA)

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Que dó dos ditadores. Está cada vez mais difícil para eles governarem por meio do terror, obrigarem as pessoas a acreditarem em sua legitimidade e imporem sua ideologia única. Apesar de toda a tecnologia que eles têm a seu dispor — espionagem virtual, censura das redes sociais, programas de reconhecimento facial — as pessoas já não mais acreditam neles.

Nos lugares onde é perigoso demais protestar, as pessoas recorrem à ironia. Até na União Soviética, o humor popular sempre foi a forma que o povo encontrou de rir de seus déspotas e suas pretensões tirânicas. Sejam quais forem os obstáculos, a verdade aparece – seja na Cortina de Ferro de ontem ou no Great Firewall de hoje em dia. Como prova, apresento o fato de que o movimento #MeToo chegou à China de Xi Jinping, país que deveria estar hermeticamente fechado para as influências ocidentais.

A grande questão a mobilizar a opinião pública chinesa hoje em dia, por meio de redes paralelas e do boca-a-boca que contorna a imprensa oficial, não é Xi se declarando seu próprio sucessor, e sim a denúncia de Peng Shuai de que Zhang Gaoli a estuprou. Quem são Peng Shuai e Zhang Gaoli? Peng é uma tenista de fama mundial – a melhor e mais popular tenista chinesa. Zhang é ex-membro do alto escalão do Partido Comunista e ex-vice-primeiro ministro.

Peng acusou Zhang de tê-la estuprado várias vezes, com a cumplicidade da própria esposa, que trancou a porta para ele. Tais crimes eram comuns na velha China e também entre a elite do Partido Comunista: o próprio Xi expulsou várias personalidades comunistas por “corrupção e devassidão”. E ninguém foi mais “devasso” do que Mao Tsé-tung: ele deflorava jovens virgens e passava os dias na cama.

O que há de novo no caso Peng Shuai é o fato de, pela primeira vez, a vítima se expressar abertamente e acusar um dos homens mais poderosos da China. Mais do que isso, ela pediu para que todas as vítimas expusessem os estupradores e assediadores. O movimento #MeToo de fato chegou à China, apesar dos esforços do Partido Comunista para impedir que o país fosse contaminado por ideias ocidentais.

Lembre-se de que, quando o movimento #MeToo surgiu nos Estados Unidos, depois das escapadas de Harvey Weinstein e Dominique Strauss-Kahn, a imprensa oficial chinesa disse que esse tipo de devassidão só poderia acontecer nos países capitalistas, já que a China permanecia pura, com as mulheres sendo iguais aos homens. Mas essa afirmação jamais teve credibilidade na China; os hábitos sexuais de Mao e seus sucessores eram conhecidos dos chineses. Também está claro que não há mulher em cargo político importante na China. Mas ninguém esperava que Peng fizesse o que ela ousou fazer. Ela sem dúvida foi influenciada pelo movimento #MeToo (como toda a Ásia patriarcal, da Coreia do Sul ao Japão) e se considerava relativamente protegida por ser um ícone nacional.

Sério, um ditador não tem mesmo descanso. Peng provavelmente será poupada (apesar de não ser vista em público já há algum tempo) e Zhang terminará seus dias na prisão ou num campo de trabalhos forçados. Xi não tem escolha. Mas esse caso, que sem dúvida estabeleceu um precedente, não ajudará a China em seu esforço por se passar por uma sociedade exemplar.

A imagem do Partido Comunista já está desgastada: em apenas dois anos, testemunhamos o desastre mundial da Covid-19, que começou em Wuhan; a conquista de Hong Kong; as ameaças a Taiwan; os jogos de guerra no Pacífico; a prisão e extermínio de uigures; o aumento da censura; um presidente se declarando ditador vitalício; agressões à Índia; o apoio resoluto ao totalitarismo norte-coreano — e por aí vai.

Depois de nove anos de poder absoluto, Xi destruiu o “modelo chinês”. O maoísmo era uma ideologia de exportação (por mais abominável que fosse), enquanto a China de hoje não tem nada a exportar que não bens materiais.

O século 21 não será chinês. Que pena da China e de seu povo – já que essa já foi uma grande civilização cuja destruição teve início com a conquista militar do Estado por Mao. O que restava dela está sendo destruído por homens sedentos de poder. Curioso que a revolução tenha começado com uma mulher.

Guy Sorman é um intelectual francês, editor do City Journal e autor de vários livros.

©2021 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês 

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