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Em seu novo livro, The Lost Art of Dying: Reviving Forgotten Wisdom [A arte perdida de morrer: recuperando a sabedoria esquecida, por enquanto sem edição no Brasil], a dra. Lydia Dugdale convida os leitores a uma discussão animada sobre a vida e a morte, dando conselhos e oferecendo elementos que fomentam a reflexão pessoal. As digressões sobre a morte levam a temas como memento mori, vida virtuosa, comunitarismo, rituais e espiritualidade como formas de navegar pela crise existencial da morte.
O livro está dividido em nove capítulos, intitulados “Morte”, “Finitude”, “Comunidade”, “Contexto”, “Medo”, “Corpo”, “Espírito”, “Ritual” e “Vida”. Os capítulos transbordam aforismos, análises sociológicas, história, filosofia, doenças antigas e alusões artísticas. Às vezes eu me perdia entre os assuntos que mudavam rapidamente e precisava consultar o título do capítulo. Às vezes as palavras me faziam revisitar meus antigos encontros com a morte, tanto na vida pessoal quanto na profissional, enquanto médica que trabalha com geriatria e tratamento de viciados. Talvez a autora tenha previsto essas reações. A morte mexe com todo mundo e esse livro permite que os leitores pratiquem essa realidade a seu próprio tempo.
O livro começa com um homem inconsciente em sua cama de hospital. As filhas dele querem que ele seja mantido vivo a todo custo. Os médicos explicam a futilidade disso, mas têm de atender os desejos da família. O coração do homem para de bater. Desfibrilação, remédios e massagem cardíaca o ressuscitam. Noventa minutos mais tarde, o coração dele para de bater novamente. Desfibrilação, remédios e massagem cardíaca o ressuscitam. Mais alguns minutos se passam o coração do homem para novamente. Desta vez nada é capaz de ressuscitá-lo. As filhas choram. Os médicos se frustram. Ninguém pensa: “É assim que quero morrer”.
Experiências como essa levaram a dra. Dugdale, médica da Columbia University e especialista em ética médica e no tratamento de idosos, a criar um compêndio sobre a morte de acordo com a tradição ars moriendi (a arte de morrer). A literatura ars moriendi remonta à Europa medieval, quando os sobreviventes da Peste Negra precisavam de esperança e de uma guia sobre o que esperar, dizer e fazer diante de moribundos. A sabedoria ars moriendi ajudava as pessoas a lidarem com problemas físicos e emocionais comuns. O desespero, a perda de fé e outras atribulações ainda estavam presentes, mas os entes queridos sabiam como reagir a isso, geralmente com perguntas que reavivavam a esperança e a paz.
Isso não quer dizer que exista uma fórmula para eliminar o medo e simplificar o ato de morrer. Não há pílula mágica capaz de resolver o mistério da morte, mas esse novo livro mostra aos mortais como usar os recursos médicos e as práticas culturais para morrer melhor. Ele dá ênfase à nossa interdependência e alerta os leitores para a importância de evitar a obsessão terapêutica, reconhecendo as dimensões morais da morte e do luto e, assim, amadurecendo.
Uma questão médica
Os avanços da medicina levaram algumas pessoas a acreditarem que são capazes de vencer a morte. O medo de um tratamento passar batido faz com que os médicos insistam em oferecer — e os pacientes insistam em aceitar — tratamentos debilitantes, apesar de haver pesquisas mostrando os danos causados por eles.
Um estudo de 2010 realizado pelo Massachusetts General Hospital com pacientes com câncer de pulmão comparou o tratamento paliativo com o tratamento padrão. Os pacientes que usavam tratamento paliativo com apoio psicológico viveram mais e relataram uma melhor qualidade de vida do que os que receberam o tratamento médico padrão.
Os médicos ficaram surpresos com os resultados, mas obtiveram números semelhantes aplicados a grupos diferentes. Dez anos mais tarde, muitos oncologistas ainda não sabem quando passar do tratamento curativo para o paliativo.
Quimioterapia, imunoterapia e outros avanços tecnológicos podem gerar esperanças falsas e desperdiçar o tempo e a energia dos pacientes. Os pacientes equivocadamente associam tratamento à esperança. Ao mesmo tempo, a doença, o cansaço, os remédios e a depressão prejudicam o raciocínio, dificultando a tomada de decisões. Entre as fontes do livro estão descrições de procedimentos de ressuscitação, rituais para se “desligar os aparelhos” e questionários que ajudam as pessoas a avaliarem os danos e benefícios do tratamento.
Há conselhos específicos também sobre hospitalização. “Quando a morte se anuncia”, alerta Dugdale, “temos que nos manter sãos, protegidos da sedução dos hospitais e não contar com a tecnologia para nos livrar do medo da morte”. A autora diz que em algumas ocasiões a morte no hospital é necessária, mas sua mensagem é a de que é melhor morrer em casa, com o apoio da comunidade e cercado por objetos familiares.
Uma questão moral
Cuidar do próprio corpo é uma pequena parte do que significa morrer bem. Dugdale também trata das necessidades emocionais inevitáveis e das questões existenciais. No final do livro, desenhos reforçam seus conselhos, assim como as últimas palavras: “Para morrer bem é preciso viver bem, e vivemos melhor em comunidades que nos ajudam a encontrar um sentido na finitude e a ver beleza na decadência”.
A realidade se apodera do leitor na última palavra: “decadência”. A deterioração, a desintegração, os corpos sob a terra. Os significados não são bonitos, mas o conselho para se procurar beleza na decadência é claro.
Como se encontra beleza na incapacitação e na extinção? Reconhecer a dignidade humana é o primeiro passado. Perceber a dignidade numa pessoa incapacitada é difícil numa sociedade que valoriza a eficiência e as posses. Uma amiga certa vez me descreveu seu trabalho num hospital, dizendo: “Não há nada de digno numa pessoa doente que precisa de outra para limpá-la e vê-la vomitando”. Essas experiências assustam e confundem muitas pessoas que esquecem que a dignidade é algo interior. Na verdade, os efeitos indignos da doença podem se sobrepor à dignidade humana, nas nunca suplantá-la.
Satisfazer as necessidades humanas é o trabalho moral da caridade. Em geral, pessoas em estado terminal precisam de outras para se lembrarem de quem são, quem foram e de como será sua vida após a morte. Em 'A Peste', Camus descreve o trabalho dos agentes sanitários. “Não era um trabalho glorioso, era um trabalho moral, e era necessário para a comunidade, porque permitia que os participantes encarassem seu medo da morte e ao mesmo tempo cuidassem uns dos outros”.
Mas cuidar de um moribundo é complicado. A morte chega e leva um tempo para partir. A impaciência toma conta dos entes queridos que se sentem pressionados a consertar alguma coisa e estar em qualquer lugar que não ao lado de um moribundo. Nos anos 1960, Dame Cicely Saunders fundou o movimento hospitalar contemporâneo para ensinar as pessoas a superarem essa impaciência. De acordo com Saunders, as necessidades dos moribundos se resumem ao que Jesus mencionou no Getsêmani: “Fiquem aqui e vigiem comigo”. Os cuidadores precisam ser leais, levando seu conhecimento e compaixão para o leito de morte, mas também estando presente quando não houver mais nada a fazer.
“Doutor, você não pode fazer nada?!” O tempo que passei com crianças, pacientes dementes, viciados, moribundos e suas famílias me ensinou a respirar fundo, permanecer focada e a me conectar. Quando a pessoa diante de você quer algo que você não pode dar, dê a ela sua presença. Fique com elas e as vigie.
Uma questão de luto
O luto começa muito antes de a pessoa morrer. A literatura ars moriendi medieval estimula os membros da comunidade a visitarem o doente para velá-lo ainda em vida. As pessoas compartilhavam memórias, ria e choravam, pediam perdão e perdoavam. Isso reforçava a importância de cada vida e permitia que o moribundo se despedisse de tudo e de todos com mais facilidade.
A dra. Dugdale descreve intrincados rituais de embalsamento, limpeza e funerários que mantêm essa conexão quando as pessoas lidam com a perda de um ente querido ou um membro da comunidade. Rituais funerários religiosos, como os da tradição judaica, oferecem companhia e consolo durante todo um ano. Pessoas “espiritualizadas, mas não religiosas” podem usar os recursos da fundação Freedom from Religion para planejarem “cerimônias fúnebres seculares sem Deus.” As pessoas se curam no luto conjunto. A dra. Dugdale diz que os rituais funerários são, na melhor das hipóteses, uma encenação. Eles são encenados por e para a comunidade e foram criados para despertar emoções e ajudar as pessoas a entenderem a verdade sobre a vida para além de si mesmas. O luto conjunto amadurece a todos.
A pandemia de Covid-19 interrompeu nosso luto. Os pacientes se veem isolados na hora da morte. Seus entes queridos sentem medo, perda e culpa ao longo da doença e depois da morte. As restrições jurídicas e de saúde pública impedem o luto coletivo, expondo os sobreviventes a um risco maior de complicações em decorrência da perda. Os sobreviventes não podem se contentar com o “caminho do arrependimento menor”. Eles não podem ter certeza de que todo o possível foi feito pela pessoa, não ouvem as últimas palavras delas, não podem se despedir.
Individual e institucionalmente, as pessoas estão trabalhando para criar novas formas de serviços fúnebres. Durante o lockdown, quando os funerais presenciais foram proibidos, vi um trator velho lentamente levar o caixão do meu primo para o cemitério. Os carros se enfileiraram na estrada para homenagear o agricultor. Não pudemos abraçar ou acompanhar a viúva, mas estávamos ali presentes.
Você aprende a morrer bem quando sua comunidade trata da questão médica e moral, e do luto, descritos em 'The Lost Art of Dying: Reviving Forgotten Wisdom'. Infelizmente os que mais precisam são os que provavelmente não lerão a mensagem de esperança e os conselhos práticos do livro. As pessoas em estado terminal geralmente estão distraídas ou cansadas demais para ler. Assim, leia esse livro antes de precisar dele. Leia para si e compartilhe com pessoas na sua comunidade. Essa sabedoria não pode se perder ou ser esquecida de novo.
Sally White é médica geriatra, além de cuidar de viciados em drogas.