A resistência contra toda a forma de “apropriação cultural ” é uma luta contra o inimigo errado
Historicamente, a adoção de elementos culturais de um povo por outro é não apenas inevitável, mas, em regra, positiva.
O antropólogo franco-belga Claude Levy-Strauss (1908-2009) escreveu no livro “Tristes Trópicos”, fruto de sua pesquisa no Brasil da década de 1930, que “uma cultura não se desenvolve a não ser no contínuo e constante relacionamento com as demais, o que envolve todos os intercâmbios culturais”.
O processo de absorver elementos de outra cultura e transformar em algo da “nossa” é tão antigo quanto o processo civilizatório. Os exemplos são incontáveis: do futebol ao samba, da matemática à democracia.
“É inevitável porque a sociedade faz isso. As culturas são hibridas, múltiplas. Não são singulares, são plurais”, afirma Rosana Schwartz, professora de sociologia do Núcleo de Estudos de Gênero, Raça/Etnia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (SP) em entrevista ao UOL.
Em um país com história de colonização como o Brasil, a assimilação cultural é a regra, e o debate em torno da questão é cada vez mais frequente e irascível, pois a expressão “apropriação cultural” é vista atualmente como usurpação, de conotação negativa, especialmente por ativistas de grupos étnicos minoritários que militam na defesa de suas identidades culturais.
Qual é o limite?
“A identidade de cada brasileiro é marcada pela vasta diversidade cultural. O Brasil foi povoado por uma imensa variedade de etnias, de africanos a europeus, apresentando costumes, tradições, religiões, crenças, conhecimentos e técnicas extremamente e heterogêneas”, explica a jurista Luciana Bortolozzo em artigo no site Conjur, no qual analisa os limites jurídico e econômico das “apropriações culturais”.
No artigo, ela defende que haja uma baliza jurídico e social para que a apropriação não se transforme em exploração.
Um limite possível seria a burla à propriedade intelectual e a criação de estereótipos inadequados de expressões e tradições culturais.
Extremos como a suspensão de aulas de yoga em uma universidade no Canadá ou a censura à menina que usou turbante para esconder a falta de cabelos em razão do tratamento contra o câncer só são possíveis porque esta discussão interessante e complexa saiu dos campi para virarem matéria prima de diatribes no “permanentemente ultrajado terreno da internet”, como escreveu a colunista americana Jenni Avins no artigo “The Dos and Don’ts of Cultural Appropriation”, (Os Podes e os Não-podes da apropriação cultural”, em tradução livre), publicado originalmente no The Atlantic .
Avins defende que “apropriação cultural” feita pelo mercado da moda, gastronomia ou do entretenimento em outra forma de produto cultural deve ser tratada como qualquer colaboração criativa. Ou seja: “é preciso dar o crédito e se for caso pagar royalties de seu uso a quem detenha o direito”.
Bem como o uso de símbolos sagrados como acessórios de moda – sem que o uso seja justificado – nunca é uma boa ideia, e qualquer situação que tente afirmar a superioridade de um povo sobre outro é “indefensavelmente idiota”.
Vestindo o chapéu alheio
A literatura é um dos campos do espectro cultural onde esta discussão é mais presente. Não raro, algum escritor é criticado e tem a legitimidade de seu trabalho questionada por escrever sobre grupos étnicos aos quais que não pertence.
A escritora americana Lionel Shriver, autora do livro “Precisamos Falar Sobre Kevin”, usou um provocativo sombrero mexicano num debate numa universidade americana e foi recebida com ira por ativistas das redes sociais.
Shriver explicou que fez a provocação para mostrar seu ponto de vista sobre os perigos em exigir que os autores escrevam só sobre os grupos aos quais eles mesmos pertencem. Para ela, a literatura de ficção é um exercício de empatia e de compreensão.
“É isso que a gente [os escritores] é paga para fazer, não? Entrar na cabeça dos outros e experimentar os seus chapéus”.