O texto a seguir integra o livro 'O que Não te Contaram Sobre o Movimento Antirracista' (2023), das sociólogas Geisiane Freitas e Patrícia Silva. Lançada pelo selo Avis Rara, a obra busca apresentar a verdade por trás de conceitos que fazem parte da narrativa hegemônica estabelecida pela esquerda, mas que não se sustentam com dados – como “racismo estrutural”, “lugar de fala” e “apropriação cultural”.
Em 2009, a famosa marca de moda Arezzo protagonizou um episódio curioso: ao colocar em sua campanha de alto verão as atrizes brancas Cláudia Raia, Mariana Ximenes e Patrícia Pillar usando acessórios (turbante e colares) associados à “cultura negra”, a marca foi acusada de apropriação cultural.
A acusação foi pautada no argumento de que a marca não havia contratado modelos negros para o ensaio e que os objetos utilizados tinham uma simbologia que havia sido desrespeitada pela empresa.
Em 2017, a estudante Thauane Cordeiro relatou, em seu perfil no Facebook, que estava na estação de metrô quando foi interpelada por uma mulher que a criticou por estar usando um turbante. Thauane informou que a mulher a acusou de cometer apropriação cultural. Thauane era uma mulher branca em tratamento contra um câncer. O acessório na cabeça a ajudava a se sentir mais bonita durante a fase difícil de tratamento de sua doença.
Em 2020, Evandro Pereira desfilou em um bloco de carnaval na cidade de São Paulo com um cocar indígena presenteado por uma liderança pataxó. No mesmo bloco estava a estudante indígena Yamani Pataxó, que foi às lágrimas ao ver um homem branco usando o cocar de seu povo. Ela disse: “Quando vi o cocar do meu povo sendo usado de forma irresponsável na folia, senti agulhadas no meu espírito. Me deu tontura, minha perna ficou mais fraca”.
Por sua vez, Evandro acreditava estar homenageando o povo indígena ao utilizar o cocar. Ele disse: “Estou honrando a etnia e honrando quem fez o cocar. Ganhei há oito anos e saio com ele em todos os carnavais”. Após conversar com membros do bloco, Evandro decidiu tirar o cocar e concluir o desfile com um chapéu prateado.
Certamente, o leitor já ouviu o termo “apropriação cultural” em redes sociais, programas matinais de TV ou debates acadêmicos. O termo é responsável por instaurar uma onda de cancelamentos, especialmente em épocas carnavalescas, como foi possível observar nos exemplos citados anteriormente.
Contudo, poucos esclarecem o que estão chamando de apropriação cultural. Também é possível observar que poucos discorrem a respeito de qual conceito de cultura é utilizado pelos progressistas e como, para eles, tal conceito culmina no termo “apropriação cultural”.
De acordo com Rodney William [antropólogo e pesquisador paulista], autor do livro 'Apropriação Cultural' (2020), cultura é:
(...) um conjunto de características humanas que não são inatas e abarcam muito mais do que aspectos visíveis, concretos. O jeito de andar, falar e pensar; de se vestir, se portar e sentir; a fé, a visão de mundo, as relações; as criações, as instituições e os valores de um grupo; a arte e o saber. Em síntese, cultura pode ser compreendida sob vários ângulos: ideias, crenças, valores, normas, atitudes, padrões, abstrações, instituições, técnicas etc. Tudo isso, inserido na cultura de um povo, possui significados e história.
Contudo, o que não é considerado por William – e pelos defensores da ideia de apropriação cultural – é que há hierarquias culturais; não da forma como a antropologia evolucionista apontava, atribuindo o desenvolvimento de suas respectivas sociedades às características étnicas dos sujeitos. A hierarquia se dá como um conjunto cultural compartilhado por todos.
Por exemplo: culturas que praticavam o infanticídio ou o canibalismo, obviamente, não estão no mesmo patamar que culturas que defendem a vida desde a concepção. Culturas que exaltam promiscuidades conjugais, imoralidades sociais e todo tipo de relativismo são inferiores por aquilo que defendem, não pela composição racial ou étnica de seu povo.
William reconhece que existe a aculturação na sociedade, e explica: “Aculturação consiste na fusão de duas ou mais culturas diferentes a partir do contato permanente que gera mudanças em seus padrões culturais”.
Em um país de dimensões continentais como o Brasil, que possui diversidade em sua origem étnico-racial, a aculturação é um processo intenso. Porém, para o autor, “embora [a aculturação] seja uma espécie de troca recíproca, por vezes, um grupo oferece mais do que recebe (...)”. Ou seja, na perspectiva do autor, no processo de aculturação há a dominação de um grupo sobre o outro, que seria o fator vital para a determinação da apropriação cultural.
Aglutinando a perspectiva da antropologia interpretativa com as noções de Kabengele Munanga [antropólogo brasileiro-congolês] e Abdias do Nascimento [ator, dramaturgo, professor e referência do movimento negro brasileiro], William passa páginas desenvolvendo o que apropriação cultural NÃO é:
Em boa parte dos aspectos da aculturação, a dominação está presente, seja pelo componente social, seja pelo componente histórico. Não há apropriação cultural quando um grupo excluído ou marginalizado é forçado a assimilar traços da cultura daqueles que o dominam para sobreviver, como ocorreu durante todo o processo de colonização, em especial na escravidão. Apropriação cultural é exatamente o oposto.
Só bem mais adiante William anuncia a origem do termo, que, segundo ele, foi organizado por Harmut Lutz [especialista alemão em estudos literários] em 1990. A partir daí, é possível localizar uma definição: “(...) apropriação cultural decorre da exploração de elementos de uma cultura por indivíduos ou grupos que efetivamente não pertencem a essa cultura (...)”
William explora a relação do processo de apropriação cultural com o regime escravocrata:
Como já demonstrou Abdias do Nascimento, a partir da violência da escravidão, todas as heranças culturais negras foram esvaziadas. O colonizador se apropriou da cultura do escravizado inclusive como uma forma de aniquilá-lo. Portanto, definir apropriação cultural vai muito além de formular uma lista do que pode ou não ser usado.
É inegável que o efeito da escravidão na sociedade brasileira foi perverso e teve impactos em âmbitos sociais e culturais. Contudo, o autor associa dados da realidade com narrativas que fomentam o sentimento de antagonismo racial. Por conta da magnitude territorial e da composição cultural heterogênea – embora a militância negra contemporânea faça parecer a cultura da África como uma só –, há complexidade nos estudos a respeito do continente africano e do período de escravidão.
O primeiro aspecto imprescindível a ser observado é: a escravidão é uma antiga ferramenta utilizada pela humanidade (nós sabemos que é óbvio, mas achamos que precisa ser dito). Além disso, na África, já existia escravidão antes da chegada dos europeus.
O segundo aspecto que deve ser observado é: em termos de cultura, a premissa de dominação utilizada para fundamentar o conceito de “apropriação cultural” ignora que a aculturação é uma via de mão dupla; sendo assim, o “dominador” também absorve a cultura do “dominado”.
Após desenvolver um elegante malabarismo teórico, o autor brinda o leitor com o que ele quer, de fato, saber: o que pode ou não pode usar? Aqui vem a resposta:
Para se ter uma dimensão do que “pode” ou “não pode” é preciso avaliar o lugar social de quem faz uso de algum elemento de outra cultura. A posição que se ocupa, a classe social a que pertence, o grupo racial ou étnico ao qual se vincula, o grau de influência enquanto pessoa pública, além do contexto, tudo isso pode determinar, e desviar completamente de seus pensamentos originais, os efeitos de suas atitudes. Como já vimos, nem a “melhor das intenções”, nem as mais “singelas homenagens” livram alguém do risco de cometer apropriação cultural.
Ou seja, o conceito de apropriação cultural é completamente relativo. Você pode estar “cometendo” apropriação cultural – ou não – a depender de um conjunto de variáveis sociológicas. A apropriação cultural é, sobretudo, circunstancial, pois depende de quem executa a ação e de quem a avalia.
Vamos aqui dar um exemplo do relativismo consequente na aplicação do conceito de “apropriação cultural”. No começo deste capítulo, nós contamos que um homem branco utilizou um cocar e o retirou por seu uso ofender uma estudante indígena. Na cidade do Rio de Janeiro, há um bloco carnavalesco chamado Cacique de Ramos. Trata-se de um bloco tradicionalíssimo do subúrbio carioca, que desde 1961 desfila com fantasias que lembram as vestimentas dos povos originários brasileiros e norte-americanos.
Observando a dinâmica de cancelamentos no Carnaval, a imprensa procurou a direção do Cacique de Ramos para verificar se haveria mudanças na indumentária de seus componentes. Fábio Martins, o diretor do Cacique de Ramos, afirmou o seguinte:
A questão identitária é importante e respeitamos bastante. Porém, se faz necessário separar o que é ofensa e o que é homenagem. Os fundadores do Cacique de Ramos possuíam nomes com referências indígenas: Aymoré, Ubirajara, Ubirany, entre outros. Se nos carece legitimidade para levantar bandeiras sobre a causa indígena, nos sobra legitimidade para falar sobre Carnaval. E por isso afirmamos que no Cacique de Ramos imperam o respeito e valorização da nossa cultura, cujo índio é um dos elementos formadores.
Em sua página em uma rede social, o historiador Luiz Antonio Simas apontou inconsistência na tentativa de cancelar todas as coisas que não se encaixam perfeitamente na narrativa delirante de parte da militância. Simas diz:
A turma que vai “cancelar” o Cacique é aquela que, em 2022, vai tentar reverter voto do povão oferecendo café caseiro com bolo de fubá na praça. Estamos no mesmo barco, remando contra a maré, mas assim fica difícil.
Intacto, o Cacique de Ramos desfilou em 2020, no mesmo ano que Evandro Pereira, o homem branco que retirou o cocar para não ofender uma indígena em São Paulo. O ativismo histérico perdeu naquele Carnaval do Rio de Janeiro; a força da tradição venceu.
A verdade é, caro leitor, que é bem mais difícil cancelar um tradicional grupo suburbano do que um homem branco no Baixo Augusta. Vocês conseguem imaginar a quantidade de negros e pobres que a militância cancelaria ao conseguir acusar o Cacique de Ramos de apropriação cultural?
Temos outro exemplo de como a apropriação cultural é relativa. No mesmo bloco em que Evandro Pereira deixou de usar o cocar, a atriz Alessandra Negrini também estava presente. E ela do mesmo modo utilizava indumentária indígena. A fantasia da atriz não foi bem recebida pela militância das redes sociais, mas foi justificada por vários ativistas, inclusive Sônia Guajajara, deputada federal eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL-SP) e atual Ministra dos Povos Indígenas do Brasil:
Muita gente usa acessórios indígenas como fantasia. Isso a gente não concorda. Mas quando a pessoa usa de uma forma consciente, como um manifesto para amplificar as vozes indígenas, então tudo bem, é compreensível.
Perceberam a diferença? Como Alessandra Negrini é aliada da militância progressista, está autorizada a utilizar a indumentária indígena. Por sua vez, como Evandro não era aliado, não tinha autorização para utilizar o cocar que recebeu de presente de uma liderança indígena.
O que parece, caro leitor, é que apropriação cultural é só mais um instrumento para viabilizar a sanha autoritária tão comum no progressismo, que foi fomentado pela vanguarda da intelectualidade. O termo demarca, mais do que termos os anteriores, como a esquerda se tornou iliberal. Um texto publicado pelo The Economist, intitulado 'The threat from the illiberal left' ('A ameaça da esquerda iliberal') demonstra, com perfeição, como a esquerda corrompe a liberdade:
O ataque da esquerda é mais difícil de entender, em parte porque a América “liberal” passou a incluir uma esquerda iliberal. Descrevemos esta semana como um novo estilo de política se espalhou recentemente pelos departamentos universitários de elite. À medida que os jovens graduados conseguiam empregos na mídia de luxo e na política, negócios e educação, eles traziam consigo o horror de se sentir “inseguros” e uma agenda obcecada por uma visão estreita de obter justiça para grupos de identidade oprimidos. (...) eles também trouxeram táticas para reforçar a pureza ideológica, não colocando seus inimigos em plataformas e cancelando aliados que transgrediam – com ecos do estado confessional que dominava a Europa antes de o liberalismo clássico se enraizar no final do século XVIII.
Felizmente, “apropriação cultural” parece ser um termo ainda restrito aos círculos ativistas e universitários. Ao ser questionado sobre o cancelamento de pessoas com fantasias de índio no carnaval e o debate sobre apropriação cultural, Bira Presidente, fundador do Cacique de Ramos, afirmou o seguinte ao portal G1: “No subúrbio, ninguém está preocupado com isso”.
Nós subscrevemos Bira Presidente; não estamos preocupadas com isso. Cultura tem origem e não tem dono.