Em país nenhum do mundo o famoso verso de Manuel Bandeira – “a vida que poderia ter sido e que não foi” – soa tão verdadeiro e tão amargo.| Foto: Pixabay

Nós brasileiros adoramos ir a Buenos Aires, sentir o frio, comer uma carne ou pratos vegetarianos – a cidade tem vários restaurantes vegetarianos maravilhosos, como o Artemísia, em Palermo Hollywood – e tomar um vinho. Descendo para o sul, podemos esquiar, ver as geleiras, e ter, deslumbrados, a impressão de que Deus começou a criar o mundo pela Patagônia.

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Mas volto a Buenos Aires. Assim como Paris, a cidade dá a sensação de que a cultura é algo relevante, presente na vida das pessoas. Passei seis meses lá por conta do doutorado em literatura comparada e, desafiando qualquer estereótipo de classe, até o jovem quitandeiro tinha algo a dizer sobre meu tema, o Facundo de Sarmiento. Não sei quantos brasileiros de fora da academia teriam algo a dizer sobre clássicos do século XIX.

Além da riqueza natural da Patagônia e da riqueza cultural de Buenos Aires, a Argentina tem os vinhos de Mendoza e de outras regiões. Há muitos vinhos excelentes. Entendo quem prefira um vinho europeu. Mas a região de Bordeaux, na França, que produz os vinhos de maior prestígio do mundo, já era valorizada pelos vinhos no tempo do Império Romano. Já a Argentina atingiu um nível próximo do europeu de qualidade com alguns anos de investimentos sérios e hoje as diferenças são mais de estilo. O novo mundo, por definição, tem um longo caminho a percorrer – mas o potencial é altíssimo e os resultados já são apaixonantes.

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Os percalços desse caminho, infelizmente, são enormes, e estão escancarados. Nós brasileiros já esquecemos o que é viver com inflação. Acreditamos que o real pode servir, como diz a teoria monetária, de “reserva de valor”. Isso significa que você pode vender ou comprar qualquer bem, como um apartamento, em reais. Agora, experimente discutir o preço de um imóvel em Buenos Aires em pesos. Impossível. Pior ainda: muitos estabelecimentos aceitam dólares e reais. E não só: uma lei obriga os estabelecimentos a aceitar cartões de débito (mas não de crédito), sinalizando que a onipresença do dinheiro vivo – “efectivo” – aponta a pujança da economia informal.

Apesar disso, o povo argentino tem uma espécie de compromisso moral anti-inflacionário. O Carrefour perto de minha casa em Buenos Aires, a duas quadras da Av. Córdoba, ostentava num cartaz que havia tantos meses que os preços não eram alterados. Nas lojas de vinhos de Palermo SoHo que ainda sigo no Instagram, a luta evidente é para vender e conseguir que o preço não baixe tanto. Comparados com os preços brasileiros, são ridículos os preços de vinhos argentinos com que a classe média pode sonhar. A cada post novo, tenho ganas de me dirigir ao aeroporto.

Aliás, não há nada de original nessa minha vontade. Buenos Aires está repleta de gringos que sabem que jamais teriam na Europa ou nos Estados Unidos o mesmo padrão de vida que podem pagar tranquilamente na Argentina.

Bom para nós, ruim para eles

Bom para nós, ruim para eles. Por que é assim? Afinal, no começo do século XX, a Argentina chegou a ter o décimo maior PIB per capita do mundo. Teria sido mais provável que, hoje, os melhores apartamentos com vista para o mar do Rio de Janeiro fossem todos de argentinos, e que o nosso português, em vez de ser repleto de anglicismos, tendesse para um portunhol muy fluido.

O tema do empobrecimento do país, conhecido na literatura acadêmica como “o paradoxo argentino”, tem vasta bibliografia. É atribuída a Samuel Kuznets, ganhador do Nobel de economia uma frase: “Existem quatro tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão, e a Argentina.” Esse empobrecimento pode ter causas incontroversas, como o realinhamento do mundo após a Primeira Guerra Mundial, que tirou os investimentos britânicos do país e o deixou à mercê da competição agrícola com os Estados Unidos.

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Mas a causa controversa é aquela que estará em jogo na eleição de domingo. A volta do Partido Justicialista, que tem suas origens no movimento fundado por Juan Domingo Perón, pode ser mais um capítulo do endeusamento dos políticos por parte do povo argentino. Nem o mais empedernido lulista, por exemplo, teria cogitado dar a Lula o título que foi dado pelo povo e pelo governo a Eva Perón, esposa de Juan: “chefa espiritual da nação”.

Os peronistas ganharam 9 das 11 eleições presidenciais que ocorreram na Argentina desde 1946. Estatizaram empresas, congelaram preços e salários. Cristina Kirchner, a última da sucessão até agora, deixou para Mauricio Macri inflação crescente e índices oficiais manipulados.

Macri, um dos dois não-peronistas, ex-prefeito de Buenos Aires, venceu Kirchner prometendo a liberalização. Restaurou a confiança nos índices do governo, tentou diminuir o peso do Estado na economia deixando a inflação comer os salários dos funcionários públicos. Só que a inflação continuou para todos, e os argentinos sentiram muito o baque de ter de pagar preços de mercado que antes eram subsidiados, isto é, manipulados pelo governo – como o preço da energia.

O remédio amargo durou mais do que a paciência do povo. Assim, Cristina Kirchner, a antecessora de Macri, voltará como vice-presidente. A coleção de processos de Cristina é de fazer inveja a Lula, e a pièce de resistance é a suspeita de ter ordenado o assassinato do promotor de justiça Alberto Nisman. Nisman foi assassinado horas antes de denunciar a presidente, que, para obter petróleo, teria encoberto o envolvimento do Irã no atentado terrorista contra a Asociación Mutual Israelita Argentina em 18 de julho de 1994, ferindo mais de 300 pessoas e matando 85.

Pode não admirar que um país que tratou uma presidente como “chefa espiritual” eleja como vice uma acusada de acobertar terroristas. Mas admira que, com tantos recursos, os argentinos depositem tantas esperanças nas soluções supostamente mágicas de uma tradição política fracassada, e tão poucas em si mesmos.

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Em país nenhum do mundo o famoso verso de Manuel Bandeira soa tão verdadeiro e tão amargo: “a vida que poderia ter sido e que não foi”.